Quando os fogos de artifício anunciaram a chegada do ano de 2020, como em todos os inícios de ciclos, fizemos planos otimistas e muito esperávamos viver. Longe de nós, do outro lado do mundo, uma doença surgia. Não sabíamos ainda que ela tomaria proporções mundiais e mudaria a vida de todos com marcas, algumas delas, eternas. Começava o ano mais insólito de nossa geração. A pandemia inverteu a maneira como vivemos e aquilo que conhecemos, denunciando a fragilidade nossa e de tudo o que construímos e nos era familiar. Conhecida por tematizar o desestabilizador da subjetividade humana, penso ser digna de nota a coincidência de que o ano que marcou tanto nossas vivências seja também o ano do centenário de nascimento de uma das escritoras centrais da história da prosa brasileira e que avança, também, para um lugar de destaque na literatura mundial. Falamos de Clarice Lispector.
Dona de uma ampla e complexa obra literária, motivo de mais de setenta anos de leituras nas mais diversas abordagens — como a crítica filosófica, psicanalítica, feminista, sociológica, estruturalista e tantas outras —, os cem anos de Clarice Lispector, em dezembro deste ano, posicionam novamente a sua obra em um local de destaque e despertam a curiosidade e o interesse tanto por parte do público geral, quanto dos leitores especializados. Eventos, filmes, lançamentos e reportagens rememoram vida e obra da autora, buscando transcender como é possível as barreiras da distância e também do desalento que os tempos de isolamento nos trouxeram tão repentinamente.
Um desses eventos ocorre nos dias 19, 20 e 21 de outubro, o Colóquio Internacional: Cem Anos de Clarice Lispector, organizado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo pelas professoras Yudith Rosenbaum e Cleusa Rios Passos. O evento acontecerá de maneira totalmente virtual, gratuita e sem necessidade de inscrição. A transmissão ao vivo estará disponível no canal do Youtube USPFFLCH. A programação pode ser encontrada no Instagram @clarice100usp e também na página do Facebook de mesmo nome. O evento traz alguns dos grandes nomes da fortuna crítica clariciana, promovendo debates e mostrando o quanto é crescente o interesse e reflexão a respeito de sua obra, que conta com romances, contos, crônicas, produção jornalística e livros infantis.
A autora nasceu, pode-se dizer, em uma espécie de “entre”, isto é, no caminho. A família Lispector, em decorrência da Guerra Civil Russa, saiu da periferia da Rússia fugindo dos progroms e chegou na periferia do Nordeste no ano de 1922. Clarice Lispector veio ao mundo no meio desse trajeto, em uma pequena cidade da Ucrânia chamada Tchetchelnik, no ano de 1920. Naturalizada brasileira e, mais especificamente, nordestina, a língua portuguesa era seu modo privilegiado de expressão. Quase como uma espécie de memória antiga que se fixou, o dado do olhar estrangeiro, ou seja, daquele que olha o mundo com estranheza e desconhecimento, mas também com o frescor da novidade, parece estar no cerne das lentes que a escritora dirigia para o mundo.
Após cem anos de seu nascimento, setenta e sete anos da publicação de seu primeiro romance, pode surgir uma pergunta ao leitor: por que ler Clarice Lispector hoje? Do ponto de vista estético, o valor literário de sua obra é consolidada. Já do ponto de vista social, a autora fala sobre modelos patriarcais e conservadores, abordando as relações matrimoniais limitadoras da expressão das mulheres, os papéis que as mulheres assume (ou deveria assumir), os anseios e o confronto com os valores sociais, familiares e de pertencimento socioeconômico instituídos. Dessa maneira, de forma transfigurada, aparecem questões de vida e de sociedade que se entrelaçam nas linhas de seu texto, o que corrobora para que se decline a visão da escritora como uma autora exclusivamente do universo introspectivo. Sua obra dialoga, portanto, internamente com outros campos de discussão e, mesmo após tantos anos, permanece atual e levantando reflexões pertinentes.
Mas, sim, dos grandes interesses de sua obra foi o mergulho na vida subjetiva, no mais profundo âmago do ser humano. Desde seu primeiro romance, essa obsessão por encontrar o núcleo das coisas (o cerne, o neutro, a coisa, entre outras nomeações presentes na obra) esteve em seu horizonte de investigação. O que talvez explicaria a constância de uma inquietação em sua produção, em outros termos, de uma sensação de desadaptação e de uma busca por pertencimento, por contornos. Essa busca, porém, engendra uma impossibilidade, uma vez que não é possível encontrar um eu profundo, já que não há unidade no eu e sim cisão. Posto que o âmago é apenas uma miragem, a busca constante desse alvo fugidio é, de certo modo, frustrada.
A autora consegue chegar perto do âmago quando submete suas personagens a situações de conflito, uma vez que a desconstrução da subjetividade consolidada é condição indispensável para a geração de questionamentos que, por sua vez, configura-se como essencial no processo de revisão do estado de ser no mundo. Os conflitos se dão mediados por encontros com alteridades que potencializam as inquietações do sujeito, aliciando embates das visões da existência, dos afetos e do ego construído. O revelar-se de algo que estava, propositalmente ou não, encoberto, leva as personagens em direção ao confronto de sua própria vulnerabilidade, mostrando que a construção do sujeito, que se imagina sólido e acabado, na verdade é frágil e sensível.
Mesmo que a autora jamais pudesse imaginar que viveríamos tempos de tamanho ensimesmamento, inquietação e conflito, a obra de Clarice Lispector já suscitava questões com as quais sempre nos deparamos, porém, muitas vezes, buscamos encobrir. Os tempos atuais escancararam que é inevitável a reflexão do que de fato é pertencer, bem como o embate com a nossa transitoriedade e com esta grande alteridade, difícil e até indesejável, que é o outro e que é o mesmo.
Em nota preliminar ao livro A paixão segundo G.H. (1964), Clarice Lispector diz que ficaria contente se seu livro fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Mas eu me pergunto se será possível ter a alma formada algum dia. Talvez essa seja a grande missão que move os nossos caminhos, pois não importam os tempos, os fogos de artifício ou os planos que com tanto otimismo pensamos, tudo está sempre fadado à mudança. Gosto de pensar que a experiência de ler Clarice Lispector adverte da importância de abrir verdadeiramente os olhos para olhar além do véu do costume e do que é confortável.
Ler sua obra é sempre um desafio, já que a escritora não busca o apaziguamento de nós leitores, e sim colocar-nos em prova como faz com as suas personagens. E tal como cada personagem atravessa a experiência do existir de maneira diversa, assim também ocorre com o leitor que está disposto a se despir e desarmar dos alicerces e defesas construídas em torno de si. Não é possível sair incólume de um texto clariciano, e também não é possível viver plenamente protegido do “perigo de viver” (em alusão a passagem do conto “Amor”), pois o sujeito está sempre e inevitavelmente à beira do precipício, seja ele declarado, como em tempos de pandemia, ou implícito, que é a condição de nossa periclitante existência.
Ainda na mesma nota preliminar, a autora diz que a personagem G.H. foi lhe dando aos poucos uma alegria difícil, mas que ainda era uma alegria. Penso que assim também o é Clarice Lispector aos seus leitores: uma alegria difícil, mas ainda uma alegria.
__
Amanda Angelozzi é mestranda em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo e pesquisadora da obra de Clarice Lispector.
Imagem: Acervo IMS/Reprodução
0 Comments