Algumas intimidades sem próximidade em volta
1.
Em 1925, Giorgio Morandi pintou um auto-retrato. À data, o artista bolonhês tinha trinta e cinco anos. A sua sombra surge projectada no ocre da parede, ele está sentado e segura na mão direita uma paleta com manchas de azul e púrpura. A cor da parede prolonga-se na paleta. Na outra mão um pincel. Morandi tem vestida uma camisa branca, um colete e umas calças pretas, que estão sujas de tinta. É difícil de explicar a expressão do rosto, em parte por causa do queixo, em parte por causa do olhar, do modo como a luz cai sobre ele, tal como é difícil de definir o que é que está em jogo ao certo nas sucessões de objectos que Morandi pintou, caixas e garrafas representadas despojadamente, em tons suaves que lembram a paleta de cor dos dias em lugares perto do mar. Se olharmos para fotografias do estúdio de Morandi, na via Fondazza em Bolonha, podemos ver um elo que se prolonga entre este auto-retrato, o estúdio e os objectos que neles estão dispersos — as diferentes caixas, garrafas e pequenas jarras em tons amenos que povoam os quadros, alguns deles nas paredes, estantes, uma cadeira, um sofá, algumas pinturas enroladas sobre outra cadeira. Entre o auto-retrato e as naturezas mortas, as sombras caem do mesmo modo. Morandi normalmente pintava de tarde, quase sempre no seu estúdio em Bolonha, embora houvesse outro estúdio na vila de Grizzana, uma curta viagem a partir de Bolonha. As naturezas mortas de Morandi são ambientes controlados, pequenos objectos encantadores, cuidadosamente ordenados contra fundos despojados, invariavelmente paredes cuja cor alterna mas pouco. Neles está quase sempre impressa a cor das tardes do sul. Um intervalo de ordem encenado, mais do que para cancelar o caos, para a representação de um momento de quietude. O mesmo é verdade sobre o espaço do estúdio, onde todos os objectos que surgem nos quadros estão cuidadosamente arrumados em estantes e outros apoios. Havia também no estúdio de Morandi uma cama, onde o pintor dormia. O estúdio de Morandi é um desses lugares de íntima quietude, onde ao longo de cinquenta anos o pintor regressava depois de dar aulas para trabalhar. A casa onde estava o estúdio era a casa onde ele tinha vivido com os pais. Durante a Segunda Guerra, lembro-me de ter lido algures, diz-se que Morandi teve de se mudar com as irmãs para a pequena vila de Grizzana, para escapar à guerra. O tumulto e a violência perturbaram-no tanto que, durante quinze anos, Morandi não regressou a Grizzana, onde até então costumava passar férias. Foi só depois deste período que ele construiu na vila uma casa, a única casa da qual foi dono e, na última fase da sua vida, passou bastante tempo a pintar aí.
2.
Recentemente a Poetry Foundation publicou “Repairwork”, um poema do autor inglês Jamie McKendrick, em que o narrador erra pela praça central de Bolonha até encontrar a oficina de um relojeiro, a quem pede que repare um velho Omega. O poema começa sobre o signo de de Chirico e do pintor indiano Bhupen Khakhar:
I took the crooked, arcade-overshadowed road
off the main square built by de Chirico
and chanced upon a watch repairer’s shop
which might have been painted by Bhupen Khakhar
for whose summer show the London weeklies
have just prepared such a frosty welcome.
É ampla a geografia desta primeira estrofe: Londres, Bolonha, Bombaim. Todos estes lugares se interceptam na praça central de Bolonha. Mas não é isto o que neste poema de Jamie McKendrick é acerca de intimidade. No poema “Dedication” de An atlas of a difficult world, Adrienne Rich falava de salas onde olhos se encontravam e desencontravam, em momentos de intimidade com estranhos. Mas intimidade é uma soma de proximidade e familiaridade que pode conter algo de impessoal, o que não é necessariamente o mesmo que distância. O estúdio de Giorgio Morandi era ao mesmo tempo um esconderijo e um espaço de trabalho, a que outros eram admitidos. O momento central do poema de Jamie McKendrick é um encontro com um estranho, com um relojoeiro. Este relojoeiro surge como uma espécie de criatura mítica, com o poder de refazer o tempo:
But there he sat at his workbench working at
what looked like tiny jeweled bits of time laid out
under his eye loupe in magnolia light.
These fragments he seemed to be reassembling
into a perfect circle, or a sphere seen from above —
it was like a miracle obligingly performed
in slow motion, or the flight of an arrow broken down
into ever smaller fractions of advancement.
O que se segue é um diálogo mantido com uma certa distância. Absorto no seu trabalho, o relojoeiro leva bastante tempo até se dignar a reconhecer a presença do narrador e o que se segue é uma conversa em que o narrador pede ao relojoeiro que concerte o vidro do relógio, partido por causa de um “…drunken punch/ which I had provoked myself enough to throw…” O relojoeiro compromete-se a reparar o relógio até ao dia seguinte, mas a narrador está tão fascinado pela arte e pela oficina do relojoeiro que admite “I would have paid extra to watch him clean the face/ with the wad of turquoise putty he had to hand,/ paid double to have Devanagari numerals/ replace the Roman, but he wanted me out.” Quando o narrador se prepara para partir vem a última frase do relojoeiro. O relógio precisava de “una revisione completa”, porque “[a] watch like this deserves/ – he changed the tense – deserved a lot more care.” O que é a intimidade aqui ao certo? O que é a intimidade em geral ao certo? O quotidiano é um dicionário das distâncias, para usar um título que um amigo meu, Paulo Rodrigues Ferreira, deu a um dos seus livros. O relógio, para o narrador do poema de Jamie McKendrick, é um objecto com uma longa história. Tanto fica implícito na última frase do relojoeiro. A intimidade é também a intimidade do relojoeiro com o seu trabalho, o espaço concentrado da sua oficina, o facto de que nada, nem um cliente, parece poder interromper a sua concentração. Há algo de mais profundo em jogo aqui, que nos podia de algum modo passar ao lado. O relojoeiro não é alguém com um emprego mas com uma arte. Os clientes da oficina entram e esperam enquanto ele faz o seu diagnóstico. Não é uma mera transacção o que está em jogo, arranjar o que o cliente quiser por um preço acordado, mas o diagnóstico do relojoeiro salvaguarda a sua liberdade de artesão e vem, neste caso, na forma de uma reprimenda (este relógio merecia mais cuidado). Há outra forma de intimidade aqui em jogo, a do leitor com a imaginação do narrador, que na verdade é a moldura em que esta cena decorre. Primeiro a imaginação visual, nas alusões a de Chirico e a Bhupen Khakhar (de que há um eco no final do poema, quando se alude a substituir a numeração romana pela Devanagari). Intimidade com estranhos: o único ponto em que o narrador e o relojoeiro se encontram é no amor pelo relógio. Para o relojoeiro a beleza da máquina, para o narrador um objecto que guarda a história do seu tempo, um objecto precioso o suficiente não para ser descartado mas concertado.
3.
Os nossos dias são atravessados por encontros efémeros. A intimidade é uma coisa que decorre num arco de tempo muitas vezes definido por guiões de situações anteriores. O poema de Jamie McKendrick subverte afinal isso. Há um guião mental para todos os encontros em situações em que algum comércio está envolvido e há depois o lado inesperado deste encontro com o relojoeiro. A descoberta de que o cuidado ou a arte de outros pode ajudar a preservar por mais um pouco aquilo que é amado mas que o nosso uso poderia ter destruído. Há também o que o poema resgata. Um quadro para ser colocado ao lado dos de de Chirico e Khakhar, o retrato do relojoeiro na sua oficina.
4.
Quando eu estava a acabar o curso, havia uma livraria perto do campus da Universidade de Lisboa que se chamava Lácio, um nome apelativo para uma aspirante a classicista. A montra estava longe de ser aquela que chamaria a atenção de leitores em busca das últimas novidades. A Lácio era uma livraria para leitores e, se não estou em erro, fechou com a morte do livreiro. Havia algo de decadente no espaço, a decadência fértil de todos os espaços que vendem livros usados, a intuição de que abrindo um livro existe o traço das mãos de outros, da posse de outros. Antes de entrar na Lácio, eu já tinha ouvido todas as histórias sobre a severidade do livreiro, de todos os meus amigos que eram leitores. Não me recordo do nome dele. Recordo-me de uma vez um amigo meu me ter contado que ele se tinha recusado a vender-lhe um livro porque, mirando-o de alto abaixo, olhando para ele, olhando de novo para livro, pausa, olhos fixos no rosto do meu amigo, agora as gotas de suor na testa, lhe declarara — esse livro não é para si, volte a arrumá-lo no lugar, por favor. Que foi exactamente o que o meu amigo, incrédulo, fez, como se uma autoridade maior tivesse profundamente entrevisto um traço da sua personalidade, uma falhazinha moral, que forçara sobre ele o peso desta sentença. Não me lembro qual pode ter sido o livro. Muito da minha relação com a literatura portuguesa passa por esta livraria, agora que penso nisso. Alguns dos nomes sagrados do meu cânone, cuja entoação é como um mantra — Jorge de Sena, Agustina Bessa-Luís, Eduardo Lourenço, Sophia, João Miguel Fernandes Jorge, Joaquim Manuel Magalhães, António Franco Alexandre. E ficava no meu caminho para casa. As janelas eram altas e amplas e o livreiro às vezes estava sentado à caixa registadora, às vezes desaparecido no interior da livraria, que tinha portas, talvez uma cave, segundas salas, como Polifemo no interior da sua gruta. Nunca consegui definir ao certo que organização, se alguma, regia a ordenação dos livros. Havia sempre muita luz e a presença intimidante do livreiro. Uma intimidade intimidante alastrava a todo o espaço, como sentirmo-nos em casa com uma certa formalidade, como crianças que tratam os pais por você. Mas como não amar um sítio onde comprámos livros amados? Era afinal o critério daquela pessoa de quem se gostava sem afecto que explicava a existência daquele acervo cuidadosamente curado.
5.
Este texto sobre intimidade pode então ser lido como uma breve crónica de algumas intimidades desprovidas de uma proximidade evidente ou imediata. No entanto, e sobre esta ideia, na história deste século, houve um instante, em Paris, no ano de 1934, em que a lente do fotógrafo romeno Brassaï pousou sobre as mãos de Léon-Paul Fargue e Louise de Vilmorin, a mão dela pousada sobre a mão dele, não exactamente fechada. Há um pequeno número de detalhes acerca desta imagem dos quais se pode fazer um inventário. Uma manga de uma camisola de malha um pouco abaixo do pulso, o detalhe da camisa por baixo dessa manga, e o que parece ser o fecho de uma pulseira. Esta é a mão de Louise de Vilmorin. No detalhe, escreveu o poeta português António Franco Alexandre, no livro as Moradas, II. 18, “habita um deus: partilho/ essa convicção simples, dura como um seixo./ de todas as palavras, só uma irá bater/ à porta do desconhecido,/ entrar no coração, dar as boas-vindas./ e todas poderão ruir, e ela ficará latejando/ no sangue das primeiras núpcias.” Há então, a nossa intimidade com as imagens. As que viajam connosco, as que nos são propostas, as que são da ordem do encontro dramático que pode ser habitado por um deus.
6.
Ainda em Paris, durante algumas semanas no Inverno de 2016, no Musée de l’Orangerie, houve uma retrospectiva de quadros americanos da década de 1930. O subtítulo da exposição era The age of anxiety. Um dos quadros em exposição era Gaslight de Edward Hopper. É um quadro simples e na verdade desprovido da urbanidade de alguns dos quadros de Hopper que nos são mais imediatamente caros. Nele um homem está junto a uma das máquinas numa bomba de gasolina, as máquinas são vermelhas, ele está vestido de preto, nós mal lhe vemos o rosto. Há qualquer coisa de um cenário rural, uma estrada do interior. Está a anoitecer. A iluminação que se vê no quadro vem sobretudo da pequena casa do posto da bomba, escoando-se pela janela. Por entre as ervas da berma alonga-se uma estrada estreita, o caminho por fazer. Esta imagem é uma das melhores metáforas para uma ideia de intimidade com o futuro que conheço. Há, suspeito, no último filme de Paul Thomas Anderson, Phantom thread, uma citação deste quadro, quando a personagem de Daniel Day-Lewis pára junto à bomba de gasolina para abastecer o carro, e o empregado do posto verifica as máquinas. Aí de novo a estrada.
7.
O videoclip de Get Free, canção do último álbum de Lana Del Rey (Lust for Life, 2017), é uma sucessão de imagens em movimento, quase todas a preto e branco. Como muitos videoclips, este é quase uma curta-metragem, com um enredo que existe a partir de uma série de colagens de fragmentos. Neles, a espaços, desfilam imagens de raparigas sozinhas ou com os seus amantes. Uma dessas imagens é animada, parece-me, pelo espírito do quadro de Hopper. Nela, uma jovem mulher com um vestido branco até ao joelho e um casaco preto, permanecendo de costas para as grades de uma ponte, dobra-se lentamente e permanece arqueada, de costas apoiadas no corrimão, de rosto virado para o ar. À distância, na mesma intermitência de preto e branco que é a cor da roupa dela, desenham-se as luzes de uma cidade. Isto para concluir que a nossa intimidade com algumas imagens, da espécie das que ficam connosco quando fechamos os olhos e sonhamos acordados em algum sofá a meio de uma tarde de domingo, é afinal da ordem da nossa intimidade com o mundo, com uma profundidade de cor que não nos oprima, que nos lembre que essa intimidade com o mundo afinal tem um alicerce fundo na sua estranheza, com todo os espaços a que não pertencemos mas em que, às vezes, por generosidade ou sorte, nos é permitido entrar, olhar em volta, apercebermo-nos tocados por alguma coisa que não estava lá antes mas que fazia falta. A intimidade, então, como uma das coisas que nos mantém vivos.
Tatiana Faia nasceu em Portugal. É escritora, editora e pesquisadora. Atualmente vive e trabalha em Oxford, na Inglaterra.
Ilustração de Celeza Ramalho
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