A partir de temas comuns que permeiam a escrita literária, as escritoras Aline Valek e Ana Rüsche, dois nomes importantes da literatura fantástica brasileira, conversam sobre suas referências e produções. No diálogo, passaram por questões formais e por questões de conteúdo, como de que maneira tratar temas tão delicados como a memória e a violência no Brasil contemporâneo?
Aline Valek e Ana Rüsche mencionam também as suas últimas publicações, respectivamente, Cidades afundam em dias normais (Rocco, 2020) e A telepatia são os outros (Monomito, 2019).
Ana Rüsche —Antes de entrarmos em perguntas sobre a tua escrita, queria te começar com a indagação, por onde circula o diálogo literário nesse vasto mundo de papel brilhante que é a internet? Em revistas como a Deriva? Em newsletters? Em blogs ainda resistentes? Nas timelines?
Já que nós duas pertencemos a uma geração anfíbia, crescida nessa transição entre o papel e digital pré-redes sociais, creio que temos um ponto de observação histórico privilegiado. Minha percepção é que as timelines, com sua exposição obrigatória — misturando promoção de tintura de cabelo, curso de encadernação com poemas de guerra, terminam por subtrair algo vital desse diálogo. E nem sei bem o quê. Mas pode ser uma percepção errada minha também, fruto de um desgaste momentâneo da fadiga pandêmica, quanto tudo é distância, exaustão e telas (bom dia, boa tarde e boa noite, Zoom).
Aline Valek —O diálogo literário está vivíssimo na internet, mais acontecendo organicamente por aí do que centralizado em uma ou outra plataforma. Não sei se é possível centralizar, ou mesmo se é desejável centralizar. Cada pessoa é um hub. Tem muita gente trocando ideia sobre o que está lendo, debatendo sobre o que está sendo produzido, avançando discussões. Nós duas aqui, trocando palavras em um editor de texto conectado à rede mundial de computadores, estamos colocando mais tijolinhos de diálogo numa conversa muito maior que continua a acontecer, mesmo quando a gente não consegue enxergar.
Realmente, viemos de uma geração pré-redes sociais! Era outra internet, muito menos shopping. Os primeiros espaços que habitei foram os fóruns. Cada um era um universo próprio. Tive essa experiência de uma internet bem mais texto. Foi por aí que comecei a escrever fanfics, depois contos, o que depois me levou a blogar. Hoje, essa conversa pode até ir além do texto (aí entram nossos queridos podcasts!) e brotar nos lugares mais inusitados. Até no Whatsapp, que é o próprio tridente do capeta, encontrei uma experiência parecida com a que eu vivi nos fóruns, em grupos onde posso acompanhar e participar de conversas literárias que conseguem ser profundas, com trocas de perspectivas, com a possibilidade de aprender com quem traz referências diferentes das minhas. Claro, não é a mesma coisa. Tem lá suas limitações. Mas, parafraseando Dr. Ian Malcolm em Jurassic Park, a conversa encontra um jeito.
E tem uma conversa acontecendo em um outro nível, em um outro tempo. Porque nós que escrevemos estamos o tempo inteiro conversando com outros autores quando escrevemos. E o que colocamos no papel (ou na tela) depois pode se transformar em uma outra conversa, que foge ao nosso controle. É bonito demais esse processo, mesmo que seja um movimento mais lento para o ritmo alucinado das timelines sempre em busca do novo. É como mandar cartas. Você joga no mundo torcendo para que um dia chegue uma resposta.
Inevitável pensar na telepatia, que você explorou no seu livro A telepatia são os outros, e nas consequências e possibilidades de uma forma de comunicação mais direta, ou próxima. Aí te pergunto: sem intermediários, como donos de empresas de comunicação multimilionários, enfim encontraríamos um espaço mais livre para conversarmos? Ou ainda, se visitássemos as mentes uns dos outros, conseguiríamos nos entender melhor? Ou o capitalismo daria um jeito de violar a privacidade até do nosso inconsciente?
Você trabalhou um tema muito alinhado com muitas angústias dessa era de hiperconexão e hiperdesencontro. Ter trabalhado nessa história mudou a sua forma de olhar para a internet?
Ana Rüsche — Sabe que escrevi o Telepatia são os outros justo para discutir as questões da humanidade com a internet? A pergunta foi em cheio! O lance todo do chá e apropriações que surgem no livro terminaram sendo metáforas dessa questão maior, a falta dos diálogos reais, de trocas profundas e diretas. Escrevi até para esta mesma revista Deriva (olha o jabá), a respeito disso, da apropriação de tudo o que fazemos online para alimentar bancos de dados imensos, cuja finalidade última é nos enovelar numa trama para vender mais, tudo dentro desse sistema completamente irracional de produção sem fim de mercadorias e desejos. E sim, tudo isso afeta nossa forma de sentir, de tocar, de amar quem nos cerca. Leio muito sobre o assunto, embora me parece que pesquisar e estudar nunca dão conta. Daí pensei em responder nessa forma, na literária, na metáfora.
Pegando esse fio, a literatura consegue trazer respostas às crueldades que observamos?, queria te trazer uma pergunta a respeito do tema memória. Algo que orbita o teu livro novo, Cidades afundam em dias normais, é a costura entre a lembrança, o absurdo e o papel do registro feito pela arte, nesse caso, o da fotografia. Como foi trabalhar esses temas no Brasil de hoje?
Aline Valek — Acho que é bem isso, Ana: tem coisas que a gente só consegue responder na literatura. Também foi uma questão de escrever para tentar entender o que se apresenta como inexplicável pra mim, para tentar elaborar o que é difícil. E nada mais difícil do que ser brasileira.
Por exemplo, a violência é uma dessas coisas que me constrangem de tão absurdas. Por que ela acontece? Quando a gente vive num contexto violento, ela se torna parte da paisagem. Vira uma forma de linguagem. É o que acontece numa cena do livro em que uma personagem agride um aluno: é um gesto no qual ela diz que os jovens dali não conseguem entender outro idioma que não o da brutalidade. Isso foi verdade há 20 anos, continua verdade hoje.
Tanto a arte quanto a memória nos permitem pegar esse material bruto da realidade, cheio de confusão e barulho, e inventar a partir disso. Registrar (num livro, num desenho, numa fotografia) é como lembrar — e é um pouco o que Kênia, Tainara, Érica e Tiago fazem em Alto do Oeste, cada um à sua maneira. Porque nesse processo vamos moldando a realidade no formato que quisermos, preenchendo com vários significados que não estavam ali, distorcemos, até acharmos um ângulo mais interessante. Acho que mesmo quando fazemos toda essa manipulação de tornar ficção, muito da realidade acaba se revelando.
O que me leva a uma pergunta talvez abusada demais, mas já me sinto numa conexão telepática aqui: você se sente mais exposta na internet ou na escrita? O que você acaba revelando de si mesma nas suas histórias?
Ana Rüsche — Parênteses: para quem estiver nos lendo, faço uma confissão de bastidor. Transcorreram muitos dias entre a última pergunta da Aline e esta minha resposta. A pandemia, o excesso de trabalho, os milhões de minúsculos afazeres urgentes — agulhinhas de tensão que vão te espetando as costas — tudo parece nos afastar do que realmente importa. Imagina, não responder a uma pergunta da Aline Valek? Nem tenho roupa para isso. Ou tenho, um estilo de moda pijamosa, bem no espírito dos tempos de 2021. Fecho parênteses.
Com certeza, me sinto mais exposta na internet, entre um amontoado de vozes em fluxos, cujas relações quase nunca conseguimos editar e numa velocidade de diálogo que também não se acompanha. O texto, seja ficção ou não ficção, passa por alguns olhos antes de chegar à tela ou ao papel. O olhar de quem for editar. O de quem revisa, prepara. Isso faz com que o texto venha melhor embalado, com mais carinho, com mais tempo. O tempo é o mais valioso de tudo. Decanta ideias, apruma sabores.
É curioso que conseguimos nos revelar muito mais na escrita do que numa selfie. Na escrita, há personagens, cenários, camadas de metáforas como roupas diáfanas a nos cobrirem — talvez não mostre minhas curvas, minhas rugas, mas carrega minhas obsessões, meus silêncios, meus sonhos intranquilos. Na selfie, até podemos controlar luminosidade, filtros, operando um aplicativo de fotografia, arte na qual sou bem inábil, editando nossa própria imagem. Entretanto, carrega menos informações pessoais, não é curioso? É como se entregássemos, na selfie, um duplo da nossa imagem em sacrifício para guardarmos realmente o que importa a quem nos irá ler numa outra mídia, no livro, ebook. E olha que eu pratico pouca autoficção.
Mudando de assunto e trazendo um tema para fechar a conversa, hoje aconteceu algo bonito e achei alvissareiro que estejamos trocando essas palavras justamente agora. Uma amiga me indagou: “Nos agradecimentos do seu livro, é Lady Sybylla e Aline Valek?”. Selecionei o emoji com a coroa de corações, respondendo “Sim! Elas mesmo. Você sabe quem são? Admiro muito as duas”, e minha amiga, completou, “Conhecer pessoalmente não, mas admiro elas há anos. Assino newsletter, inclusive”.
Numa época de bem pouca energia, muito trabalho e sem perspectivas em seguir na literatura, a força e persistência que você e a Sybylla tinham me contaminaram. Fazendo publicações incríveis (o próprio zine!), tuitando lindamente, propondo desbravar mundos imaginários, naves espaciais, as profundezas do oceano. Enfim, vocês valentes fizeram uma grande diferença na minha vida, quando não enxergava caminhos possíveis.
Algo que penso muito é a respeito da importância de referências em nossas vidas. No início, não conhecia outras mulheres que escreviam, por conta do puro desconhecimento, pela falta das redes atuais, pelo próprio desenho do mercado editorial. Ou eram muito famosas, logo, inatingíveis; ou produziam uma literatura distante do que gostaria de fazer. Lembro até hoje do dia em que a Hilda Hilst morreu. Eu era advogada recém-formada e fui chorar copiosamente no banheiro da firma. Soluçava pela morte da Hilda e por nunca a ter conhecido pessoalmente. O que faltou para isso acontecer? A Hilda foi uma espécie de referência para mim, não tanto pela poesia em si, mas pelas atitudes, uma mulher que não se esquivava em mostrar os próprios desejos. Apreciava a coragem dela.
Quando descobri você e a Sybylla, acho que identifiquei uma força semelhante. Mulheres que não tinham muito medo de se jogarem num tipo de expressão literária menos festejada, numa literatura insólita. Daí acho que vocês são para mim referências realmente importantes. Até então, eu pesquisava ficção científica. O que é muito diferente de escrever ficção científica. E foi preciso uma geração mais jovem me mostrar essa coragem toda.
Queria então te perguntar, quais são suas referências? Quem te faz seguir escrevendo?
Aline Valek — Uma das minhas maiores referências literárias é a Elvira Vigna, que tive o enorme privilégio de conhecer e de poder conversar. A generosidade dela como pessoa me afetou tanto quanto a genialidade dela como autora. Cada vez que leio e releio seus livros, a conversa continua e me reencontro com meus próprios motivos de seguir escrevendo.
Outra referência pra mim é a Olivia Maia, que além de, sem exageros, ser uma das pessoas mais inteligentes que conheço, é uma amiga que amo demais. Saudades dos nossos passeios pelos sebos de São Paulo! Aprendo e me inspiro muito com o que ela escreve. Ela e o Alex Castro, outro querido amigo escritor, foram minha inspiração para criar minha newsletter e me influenciaram na minha forma de estar e escrever na internet.
Uma das maravilhas de escrever no século 21, apesar das doideiras da internet, é poder me conectar com pessoas incríveis que também estão escrevendo aqui, agora. Tenho muita sorte de estar cercada delas — e eu poderia seguir nessa lista indefinidamente citando apenas contemporâneas, mas ia exceder em muito o limite de palavras!
Também sou muito grata aos nossos encontros, Ana, nesses caminhos tortuosos da internet e nos vários eventos em que pudemos conversar (haja saudade)! Além da escrita, é inspirador como você cria iniciativas para fortalecer os laços entre quem escreve e quem lê.
Escrever ficção — na internet ou fora dela — acaba sendo um pretexto para gerar mais conversas, para alcançar o outro. E é bonito demais como essa conversa atravessa o tempo e toca pessoas mesmo quando não conseguimos enxergar o efeito de nossas palavras.
Poder materializar uma de nossas conversas nesse editor de texto, que em breve estará pública e online na Deriva, é uma prova disso: a escrita mantém o diálogo vivo através dos tempos, mesmo quando não podemos estar juntos no mesmo espaço. Quase telepatia, hein?
Obrigada pela troca e que essa conversa continue!
Imagem: colagem de Sumaya Fagury com fotografia das autoras Aline Valek e Ana Rüsche.
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