Me perguntem como fiquei amigo de Marcelo Moutinho e a resposta é: não sei. Lembro da primeira vez que o vi, do lado de fora do sebo Baratos da Ribeiro, quando ainda ficava na rua de Copacabana, durante o lançamento de uma coletânea. Dias depois, fui assistir a uma mesa de Edney Silvestre na biblioteca da rua Farani e lá estava Marcelo – mais tarde ele me diria que tinha sido o organizador daquele evento. Mas isso tudo são fragmentos. Quando vi, já nos falávamos todo dia.
As coisas que nos unem – o Fluminense, o amor pelas ruas, o fato de torcermos para escolas de samba irmãs [ele, Império Serrano, eu, Portela] –contribuíram para desenvolvemos uma forma de comunicação muito particular e amável, como acontece nas melhores amizades. Dito isso, era meio óbvio que acabaríamos trocando figurinhas literárias e rapidamente virássemos leitores um do outro. Basta completar um texto para imediatamente nos remetermos, aguardarmos a opinião, fazermos as mudanças necessárias.
Foi com uma dose extra de carinho, portanto, que vi nascer A lua na caixa d’água, seu novo livro de crônicas. Sem as armas da ficção – como atestam os ótimos Ferrugem e Rua de dentro, seus livros de contos –, Marcelo exerce aqui a melhor faculdade que os mestres desse gênero brasileiríssimo nos forneceram: o olhar. Gosto muito de como ele vai do particular ao geral, da rua à casa, do coração ao boteco. Porque está tudo interligado – fazem parte do Marcelo tanto quanto de cada um que se dispõe à contaminação pela (des)ordem urbana.
A entrevista a seguir é uma tentativa de jogar luz sobre certos aspectos de A lua na caixa d’água – e a produção de Moutinho de forma geral. Enquanto não podemos ir às ruas, sugiro que vocês procurem sua obra. Porque o país é este e a hora é agora.
Mateus Baldi –Você é um escritor das ruas. Sua matéria-prima reside na observação das frestas do cotidiano, uma tradição brasileira que tem em Machado de Assis, João do Rio, João Antônio e Rubem Fonseca alguns de seus maiores expoentes. Como teve início a sua relação com as ruas e em que momento você decidiu que seu projeto literário seria calcado nessa chave de interpretação do mundo?
Marcelo Moutinho – Não sei se houve propriamente um momento de decisão nesse sentido. À medida que fui escrevendo e publicando meus livros, os temas, o olhar, as obsessões, se consolidaram. Isso se deu no esteio de um processo, não como um norte pré-definido. Agora, o interesse pelos vínculos entre a arte e a cidade sempre existiu. Já no curso de pós-graduação que fiz ao terminar a formação em Jornalismo, meu trabalho monográfico apontava para essa questão. Pesquisei a relação dos filmes do cineasta alemão Wim Wenders com o espaço urbano, a partir de três localidades: Berlim, Lisboa e Paris – não a capital francesa, mas a cidadezinha situada no Condado de Lamar, no Texas, com seus 25 mil habitantes. Tenho fascínio pelo que as ruas têm de legível, pelos discursos que as cidades engendram ao conjugar a lógica geométrica, espacial, com a presença humana, que explode a rigidez dessa aparente racionalidade. João do Rio, que foi um grande flâneur carioca, já dizia que “as ruas pensam”. Sobretudo no campo da crônica, há uma perspectiva que é quase etnográfica. Ao caminhar pela cidade com os sentidos aguçados, como defendia Walter Benjamin, o cronista busca a estranheza no que parece familiar, e familiaridade no que lhe soa insólito. Assim, consegue iluminar aspectos que costumam passar despercebidos pela lente da rotina. Para evocar a expressão que você usou na pergunta, é uma interpretação do mundo que parte das miudezas, das desimportâncias, do que aparentemente é banal.
Mateus Baldi –A lua na caixa d’água é seu segundo livro de crônicas. Como se iniciou a sua relação com o gênero? Qual é o prazer de escrever, nos anos 2020, um estilo que cada vez mais parece minguar das páginas de jornais e revistas?
Marcelo Moutinho – A relação se iniciou com a coleção “Para gostar de ler”, que foi um tremendo sucesso no fim dos anos 1970. Lançada pela editora Ática, a série trazia antologias com textos de grandes cronistas, como Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos… Venho de uma família pouco letrada, em cujo núcleo a literatura era algo estranho, e a leitura daquelas crônicas me abriu os horizontes para um universo completamente novo. Quanto ao prazer de escrever, acho que é muito mais o prazer de ter escrito. Porque volta e meia o prazo de entrega do texto chega antes da ideia — sobretudo nesses tempos de pandemia, que restringiram drasticamente nossas escapadas ao meu campo de observação por excelência, que é a rua. Quando o tema surge logo, aí é bastante prazeroso. A crônica tem uma pegada mais solta, mais leve, do que o conto. E de fato, como você diz, majoritariamente migrou dos jornais para a internet. São raras as exceções, que só confirmam a regra. Mas não chega a surpreender que, numa época tão cheias de opiniões e certezas berradas, ela tenha perdido o valor. A crônica é a antítese dessa estridência.
Mateus Baldi– Você transita muito bem entre o conto e a crônica. Seus primeiros livros de contos lembravam bastante crônicas mais elaboradas. Muitas crônicas de A lua na caixa d’água, por sua vez, poderiam se transformar em contos. Como é o jogo intelectual de escrever uma crônica ou um conto? Como pensar a linguagem e os procedimentos estéticos de cada uma? Já houve casos em que algo iniciado como conto virou crônica, e vice-versa?
Marcelo Moutinho – Para mim, são dois canais bem diferentes. Só aconteceu uma vez de um texto que nasceu como crônica virar conto algum tempo depois. Acho que essa proximidade que você aponta, pelo menos no caso dos meus livros, tem muito mais a ver com a ambiência das histórias, o tipo de personagem, o recorte geográfico, do que propriamente com o registro formal. Sob esses aspectos me parece haver, de fato, pontos de contato. O próprio processo criativo é bastante distinto, inclusive quanto à demanda de tempo. Na maioria das vezes, o conto demora muito mais para ficar pronto, prescinde de uma elaboração maior, que vai da ossatura da trama aos diálogos, passando por questões como a definição física e psicológica dos personagens, o fio da história (linear? não linear?) e a escolha do narrador. Então diria que quase sempre a ideia já sinaliza o gênero no qual será desenvolvida.
Mateus Baldi –A lua na caixa d’água parte de uma homenagem a Aldir Blanc, mas o compositor carioca não é o único fio que conduz o livro: o jogo entre interior versus exterior, sem falar na sua filha, Lia, são recorrentes, chegando a pautar a divisão das crônicas. Como você chegou a esse esquema e como foi a tarefa de dividir os blocos de texto?
Marcelo Moutinho – Como faço em todos os livros, arquitetei uma estrutura. Gosto quando os livros de narrativas curtas, sejam contos ou crônicas, têm essa espécie de costura temática. No caso de A lua na caixa d’água, há três partes. Na primeira, estão os textos que tratam da infância — a minha e a da Lia, muitas vezes espelhadas —, do universo familiar num bairro do subúrbio, sob o olhar da criança. A segunda representa o movimento da casa para a rua. Traz as crônicas que falam da cidade e de seus personagens, sejam conhecidos do grande público ou não. Estão lá, por exemplo, o cantora e compositora Dona Ivone Lara, o jornalista Jota Efegê, o jogador Zico, mas também Agnaldo, o garçom que, após uma amalucada campanha de frequentadores do bar onde trabalhava, acabou por carregar a tocha olímpica nos Jogos do Rio de Janeiro. A unidade final funciona como uma síntese das duas primeiras. É composta por um só texto, uma carta que escrevi para Lia em 2015, quando ela nasceu. O Rio completava então 450 anos e fiz o exercício de imaginar que cidade minha filha encontraria cinco décadas depois. Quando os 500 anos do Rio coincidirão com os 50 dela. Digo, entre outras coisas, que gostaria que as livrarias ainda existissem e que as pipas continuassem a desenhar suas linhas coloridas pelo céu da Zona Norte. É como um epílogo que conjuga a experiência individual e a aventura da coletividade. E, claro, uma declaração de amor à cidade e à própria Lia.
Mateus Baldi – O futebol, o samba, o carnaval, o subúrbio. Seja na ficção ou nas crônicas, seus temas aparecem de forma bastante explícita. Você calcula o quanto de cada um vai entrar em cada livro ou é uma produção que surge a partir de certa demanda da realidade?
Marcelo Moutinho – Se por um lado gosto de planejar a estrutura do livro, pensar sua força-motriz, não faço cálculo algum com relação a quanto de cada tema vai entrar. Esses assuntos aparecem de forma muito espontânea, porque compõem o meu rol de afetos mais intensos, o recorte do mundo com o qual gosto de trabalhar. Mas não instituo como obrigação. Aliás, acho muito ruim quando a literatura – seja por autoimposição do autor, seja por modismos – fica refém de pautas.
Mateus Baldi –A lua na caixa d’água se encerra com uma espécie de pós-escrito, uma carta para sua filha. Esse final coroa todo um percurso que Lia faz nas mais de 150 páginas anteriores. Como você decidiu escrever o crescimento dela e que cuidados tomou para não cair nas enormes armadilhas que esse gesto implica?
Marcelo Moutinho – A presença da Lia nas crônicas escritas para revistas como a extinta Vida Breve e o jornal Rascunho acabou sendo levada para o livro porque a experiência da paternidade – ou da maternidade – nos coloca diante de um espelho com duas faces. Uma delas aponta para o futuro, para a perspectiva de acompanhar o crescimento da minha filha, de pensar como ela vai ser, o que vai fazer, no amanhã. A outra face mira o passado, já que a vivência com uma criança nos recoloca no espaço da infância, carreia a lembrança da casa de nossos pais, do cotidiano ao lado deles. A rigor, o livro faz esse mesmo movimento. Ao tratar da minha vida em Madureira, estabelece uma espécie de linha histórica. Meus pais, eu, Lia. É incrível observar as interseções – um jeito de sentar, uma expressão recorrente, a forma de posicionar o corpo na hora de dormir. Lia tem me possibilitado, também, uma redescoberta do mundo. É muito bonito isso. Como observa o Luiz Antonio Simas na orelha do livro, muitas vezes, ao crescer, o adulto se adultera. Perde a capacidade de espanto. E ela, a cada dia, vem restaurando em mim essa capacidade. Já ouvi que A lua na caixa d’água é um livro sobre perdas. Diria que sim, mas que é igualmente um livro sobre o triunfo da memória diante da morte.
Mateus Baldi –Você vem cada vez mais se aproximando da não-ficção – A lua na caixa d’água e sua pesquisa sobre a atriz Zaquia Jorge são bons exemplos. A ficção perdeu a graça? Como escrever ficção, como ainda criar histórias num país que deseja cotidianamente a morte do bom delírio?
Marcelo Moutinho – Não perdeu a graça, não. Continuo sendo um leitor ávido de ficção. Como escritor, é que tenho dado um tempo. Falta ânimo mesmo. Agora em julho publico, pela Malê, uma antologia de contos inspirados nos arquétipos dos orixás, com 18 autores de diferentes cantos do país. Mas no papel de organizador, não de autor. Pretendo terminar a pesquisa sobre a Zaquia Jorge e publicar sua biografia. Ela brilhou no teatro de revista, nas chanchadas, foi pioneira ao abrir um teatro fora das áreas de elite da cidade, virou tema de uma canção de imenso sucesso e enredo de escola de samba. É absurdo que uma artista com trajetória tão admirável seja praticamente desconhecida no Brasil. Pretendo também continuar a escrever crônicas e livros infantis. Há um com lançamento programado para outubro e outro já contratado para o ano que vem, ambos pela editora Oficina Raquel. Talvez um dia volte aos contos, não sei. Marques Rebelo já dizia em 1959 que, no Brasil, uma história precisa ter no mínimo 300 páginas para ser considerada profunda. Isso só piorou. Aqui, se você não escreve romance, em geral é visto como um eterno jogador do time de aspirantes.
Foto: Marcelo Moutinho por Leo Aversa.
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