Clarice Lispector é uma escritora que tem a habilidade de colocar em seu texto as contradições e ambiguidades que constituem o ser humano individual e coletivamente. Esse talento se manifesta especialmente no que diz respeito à descrição do embate psíquico, na disputa com a linguagem e no olhar atônito como entrevê o mundo através de suas personagens. Laços de Família, livro de contos lançado em 1960, dezessete anos depois de seu primeiro romance Perto do Coração Selvagem, mostra uma escritora que procura evidenciar questões referentes à condição da mulher na sociedade. Além disso, o que une os diversos contos da obra são os laços que muitas vezes acorrentam os membros de uma família a uma existência que, quando analisada de forma mais atenta, trazem uma sensação de estranheza e espanto diante da realidade.
Nesse ponto, podemos pensar em Construções em Análise (1937), quando Freud afirma que o trabalho do psicanalista é semelhante ao do arqueólogo, por estar em busca de objetos arcaicos, restaurações e construções substitutas de uma falta original. É nesse lugar de buscas e faltas que o encontro com o texto literário, assim como alguns sonhos, tem algo de físico, desperta memórias corporais adormecidas e tocam em locais até então desconhecidos pelo sujeito. Ler e escrever envolvem uma relação primitiva que foi elucidada por Freud em outro de seus artigos que fala sobre literatura, O Inquietante ou O Estranho (1919). Ao analisar o conto O Homem de Areia, de E.T.A. Hoffmann, como uma narrativa que provoca sensações de estranheza nas pessoas, ele nos diz que o estranho ocupa uma categoria do que é íntimo, conhecido, familiar e, ao entrar em contato com um âmbito tão secreto acaba adquirindo características assustadoras e angustiantes. Também ressalta que muitas situações aparentemente estranhas na vida real, não causam a mesma sensação na literatura, o que muitas vezes depende daquele que escreve, este sim o perito em causar desconforto ao tocar esse lugar de busca primordial.
Os personagens de Laços de Família estão presos a um cotidiano convencional e repleto de estereótipos, que tentam esconder de si mesmos para continuar sobrevivendo. Mas, em um determinado momento, onde acontece a epifania na maioria dos contos, a vida aparentemente pacata se vê diante de um conflito. Algo à primeira vista muito simples, como um cego mascando chicletes, uma mulher verdadeiramente pequena ou um ramalhete de rosas perfeito. Um fato aparentemente insignificante que destrói por alguns momentos o mundo dessas pessoas, para construir algo novo e talvez mais consistente no lugar.
No conto A Imitação da Rosa, Laura é uma dona de casa, à primeira vista comum. Aos poucos, nas entrelinhas da narrativa, subtende-se que acaba de retornar de uma temporada internada em um sanatório. Ela espera o marido Armando chegar do trabalho para que juntos se dirijam à casa de Carlota, uma amiga de infância, pela primeira vez desde que voltara do hospital. Para manter a cabeça no lugar, Laura tem a intenção de deixar a casa impecavelmente arrumada, perfeita como ela precisava ser, evitando dar qualquer sentido aos objetos que a rodeavam.
“Laura tinha tal prazer em fazer da sua casa uma coisa impessoal; de certo modo perfeita por ser impessoal.”
Tudo na vida dela segue um método desde que voltara do hospital. É como se deixando tudo organizado do lado de fora, Laura conseguisse imprimir um pouco de ordem ao que está dentro. Então segue as ordens do médico e toma um copo de leite todos os dias em determinado horário, mesmo que esteja sem vontade, para evitar algum sintoma de ansiedade. Porém, ao mesmo tempo, o médico lhe diz para não se preocupar tanto e deixar as coisas acontecerem naturalmente.
“Aquele copo de leite que terminara por ganhar um secreto poder, que tinha dentro de cada gole quase o gosto de uma palavra e renovava a forte palmada nas costas, aquele copo de leite ela o levava à sala, onde se sentava com muita naturalidade, fingindo falta de interesse, não se esforçando — e assim cumprindo espertamente a segunda ordem.”
Laura sabe que tem alguma coisa errada, está ciente que algo se contradiz, mas encontra uma estratégia para não desequilibrar a sua ordem. Porém, sabe que não pertence ao planeta Terra, e nunca será uma pessoa perfeita aqui. Ela é uma pessoa perfeita no planeta Marte, esse lugar estrangeiro e desconhecido, ao mesmo tempo atraente e assustador. Vendo que está tudo arrumado e procurando não se cansar para o jantar de logo mais, Laura adormece. Ao acordar, ela se depara com o ramalhete de rosas que tinha comprado pela manhã na feira por insistência do vendedor — “e ela se tornava sempre tão tímida quando a constrangiam”.
Fica espantada diante da beleza e perfeição das rosas, que não tinha observado anteriormente. Ela pensa então que, já que as rosas são tão bonitas, deve levá-las para Carlota, em agradecimento ao jantar. Mas por que entregá-las, se elas são tão bonitas, ela também não tem o direito a algo belo em sua vida? Esse é o grande dilema de Laura. Ela decide então que Maria, sua empregada, deve levá-las para Carlota antes que ela e o marido fossem ao jantar. Maria arranca as rosas das mãos dela, não deixando nem uma pétala a qual Laura pudesse se agarrar. Quando Armando abre a porta, encontra a casa no mais completo silêncio. Ao acender a luz, se depara com Laura vidrada, olhando para o local onde outrora estiveram as rosas e repetindo: “Voltou, Armando. Voltou… Não pude impedir. Voltou”. As rosas tinham ido embora e a desordem não resolvida havia retornado. O conflito se instaura no momento em que Laura se dá conta da existência do ramalhete de rosas. A fragilidade é trespassada pela imagem da perfeição da flor no momento da epifania, habitual no texto de Clarice.
Freud, no desenvolvimento da teoria psicanalítica, não se preocupou em estruturar uma teoria da personalidade propriamente dita. Porém, entre os seus escritos, diversos elementos evidenciam a forma como ele acredita ocorrer a constituição do sujeito. De acordo com ele, o que marca o funcionamento do psiquismo humano é o conflito. Existe a realidade interna, composta por forças desejantes, pulsões violentas, que se mostram antagônicas dentro desse universo inconsciente. E a realidade externa, onde se encontra o outro, o objeto, envolvido na cultura e na linguagem. Em Além do Princípio do Prazer (1920), Freud fala sobre os eventos relacionados ao prazer e ao desprazer, descrevendo o princípio do prazer como decorrente da necessidade de constância, evitando a dor e o sofrimento, enquanto o que está além dele é da ordem da compulsão à repetição, fenômeno derivado da pulsão de morte.
O conceito de pulsão de morte, apresentado na segunda tópica, modifica profundamente as formas anteriormente apresentadas de estruturação do aparelho psíquico. Até esse momento, a teoria psicanalítica tinha como pressuposto a ideia de que o psiquismo buscava o alívio para a tensão interna sendo regido pelo princípio do prazer. Em 1920, Freud define a pulsão de morte como “uma tendência inerente a todo organismo vivo de retorno a uma situação anterior”. O sujeito repete algo que, apesar de não ser prazeroso, precisa sustentar-se.
No caso narrado em A Imitação da Rosa, Laura tenta a princípio negar a realidade de seu conflito através de uma rotina padronizada. Mas a equação gera dividendos acima do que ela é capaz de suportar. O conflito entre as forças pulsionais antagônicas se manifestam quando Laura se depara com a rosa. É como se a flor a desafiasse, funcionando como um espelho para a situação em que se encontra. Não por acaso a rosa é colocada como um símbolo que representa o ideal de mulher que Laura pretende ser. Ao mesmo tempo, sua sexualidade não existe, ela é apenas mais um móvel entre os vários que existem na casa. Ela pretende não se importar com a aparência, porque o que interessa é não estar desequilibrada. Mas a rosa está ali, olhando e dizendo que não é verdade. A rosa com suas pétalas simetricamente perfeitas, sem manchas, como Laura gostaria de ser se pudesse apagar o passado em que perdeu o juízo. O ramalhete que ela não pode entregar a Carlota, porque se desfazer das rosas seria a mesma coisa que entregar os pontos e dizer que pretende continuar naquela vida medíocre da qual não se sente participante. E ela se prende a esse detalhe até o último instante.
De acordo com a psicanálise, o corpo é vivenciado pelo psiquismo como uma extensão dele. O corpo é revestido pela pulsão e consequentemente, pela sexualidade o que traz a presença de um corpo erógeno, que deve ser interpretado, desejado e fonte de prazer para o psiquismo. Quando Laura nega esse desejo do seu psiquismo em utilizar o seu corpo para vivenciar o mundo com prazer, sua mente cobra o preço por essa barreira. Diante da beleza da rosa, começa a se questionar que lugar ocupa, onde está seu desejo, perguntas que tentou abafar a todo custo sucumbindo a uma rotina de dona de casa. São questões inconscientes que ultrapassaram o obstáculo imposto pelo ego e que provocam uma ruptura.
Laura habita em uma prisão onde o seu principal algoz é ela mesma em busca de uma perfeição inalcançável. Esconde seus questionamentos em meio aos afazeres cotidianos, se abstém em prol da criação dos filhos, na tentativa de ser uma “mulher ideal”. A tentativa de sanar de uma forma rápida e indolor o que está sentindo não impede que em um determinado momento o conflito retorne mais forte, mais decidido a ser solucionado. E, então, essa mulher vai balbuciar para quem estiver mais próximo: “Voltou, voltou…”.
Texto de Tatianne Dantas
Ilustração de Beatriz Leite
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