A livre adaptação das notas do diário de Einar Wegener/Lili Elbe é a linha de partida do belíssimo filme A garota dinamarquesa (2015), de Tom Hooper. Trata-se da história de um homem que diz ter uma mulher dentro de si e que, aos poucos, vai se transformando: primeiro os gestos, então as roupas e a cirurgia de mudança de sexo. Por fim, a morte. Belo, delicado, brutal.
O filme tem um diálogo paralelo, silencioso, que opera através do que está previamente estabelecido com aqueles que interagem entre si. O que se fala sem palavras se diz com os olhos. Muitas trocas ocorrem através do campo escópico. Duplas e duplos se articulam nos ditos sem som: o jovem casal de artistas, Einar e Gerda Wegener; o próprio pintor com suas telas, pincéis e tintas; Einar/Lili e suas roupas, maquiagens, performances. Tudo se capta pelo olhar e se revela através dele. Demanda e desejo entre ver e ser visto.
Percebemos a intimidade do casal já na cena de abertura do filme. Em uma exibição das telas de Einar, os dois trocam risos que traduzem o que pensam e sentem da situação, revelando o entendimento mútuo e a compatibilidade entre ambos. Também são ousados e à frente do seu tempo. Gerda não mede esforços para conseguir o que quer: foi ela quem o abordou, beijou e tomou para si. Recebe críticas recorrentes a seu trabalho — retrata mulheres, mas parece não ser capaz de dizer nada além dos corpos estáticos nas telas. Gerda também não consegue engravidar, conceber um filho com Einar. A chegada de Lili transforma essa situação.
Einar, às voltas com seus tormentos, parecia tentar dar conta disso em suas pinturas. Tinha um lugar social de destaque e muito desejo pela esposa. Suas telas carregam um enigma pessoal, algo que escapa às palavras, mas que a arte permite transmitir. Está absorto nos momentos de criação e na obstinação, buscando a cor perfeita para retratar a natureza do campo, de seu passado, dedicando-se a cada pincelada com precisão. A arte parece tentar dar suporte para o que se passa além dos sentidos.
A revelação vem quando posa para a esposa como substituto da modelo ausente. Mais do que uma brincadeira, o tato, sentido que quebra a fixação do olhar, fez as vezes de destacar o real dos destinos do corpo, sem a necessidade de interpretá-los, apenas registrá-los. Ali nasceu Lili. Ou melhor, dali saiu Lili, como a escultura internalizada na pedra de mármore se revela através da ação do cinzel, voltando a encantar e fixar o olhar que busca um espelho.
No jogo dos elementos cênicos, o trabalho de direção é muito delicado. O trato em mostrar que a construção do que a cultura chama de homem ou mulher, feminino ou masculino, está na linguagem, nos signos que podem materializar algo que opera na esfera do inaudito, invisível e imaterial, como bem nos apresenta Alain Didier-Weil em seu livro Invocações. O que não pode ser simbolizado, que está aquém/além de um significante, existe de forma tão intensa, que levaria o corpo a manifestar-se sem precisar de mediações. Ainda que o real só se revele posteriormente à condição da linguagem, esse ‘não sei o quê’ ativador da potência humana se dá de forma imprevista e inegável. No trabalho de criação artística, isso acontece, bem como nos seres falantes, pois há o anterior da fala, na sonoridade da voz materna, capaz de fazer viver o corpo mais mortificado pelos sintomas neuróticos. Não é uma lembrança, mas sim um registro que não esconde o afeto.
O jovem pintor se debruça nas cores e formas para transpor para a tela a imagem da paisagem da sua infância. Insiste em por para fora uma lembrança preciosa. Difícil transferir integralmente para o quadro algo tão pessoal e subjetivo como a memória. Na obstinação de chegar à imagem perfeita, consegue expressar algo de singular. Por via da pintura, um objeto parece ter encontrado um lugar no mundo. Porém, o encontro fortuito com o gozo feminino se dá através do toque na seda e o que estava dormindo desperta. Einar ouve a voz mais profunda do seu ser através do toque do tecido, e vê a sua imagem pela perspectiva do desejo. O que faltava se desvendava ali. O velado se revelou. As peças de roupa feminina parecem dar sentido a um ponto particular que a pintura não tinha conseguido atingir. Ele goza ao poder experimentar-se nA mulher.
A partir daí, não há mais volta. Um despertar de um novo sentido, para decifrar e demarcar quem ele/ela é, está ativado. A fascinação sobre o próprio gozo de se olhar como mulher é tal que Einar/Lili parece não notar quando o olhar concreto do Outro a percebe de modo diferente. O encontro com o Outro agora não se dá através da relação com as mulheres e com seu universo, mas sim através do que pode ou não permitir no encontro com os homens. Aceitar o flerte ou a agressão, aprender como seduzir ou como se proteger. Na construção de Lili, percebemos o percurso de tornar-se mulher.
Lili nasce para Einar, e também desperta em Gerda seu gênio. Algo pode ser então veiculado através da potência de sua pintura, o verdadeiro erotismo de sua arte. Gerda encontrou seu mojo. Mas, aos poucos, o casal se distancia. Gerda não pode mais trocar olhares com Einar, pois agora outro corpo se apresenta (Lili), e esse parece bastar-se. Lili busca a intimidade na descoberta de quem é. A investigação é outra, com um outro Outro.
Deslocamentos do feminino, do gozo que vai além de qualquer medida ou possibilidade de sentido, funcionando na busca incessante de tentar se fixar em algo que apazigue o sujeito. A mulher em Gerda toma lugar de mãe, através dos cuidados e carinho com que acolhe e protege Lili. Para a cultura, Lili é uma aberração porque não se enquadra nem de um lado e nem de outro. Fica entre, deslizando. Revela um ponto forte de angústia do ser falante. O estranho e enigmático do corpo, do que o afeta, provoca desejo e não o define.
Tentamos nos ajeitar com nosso desejo, mas nem sempre encontramos uma forma completa de nos satisfazermos. Vamos dando conta disso através de um corpo possível, com os limites que estão impostos a ele. As tentativas de “tratamento” parecem retalhar algo que milita pelo desejo de existir. Não operam em nada a não ser o aumento da dor de ser. A passagem por inúmeros psiquiatras, que buscam solucionar algo que já é a solução, confirmam a Lili que, para estar em sua plenitude, só lhe falta um corpo de mulher.
As intervenções no real do corpo visam estabelecer uma imagem que garanta a totalidade de gozo. O bate e rebate de espelhos, que não refletem nada além de si mesmo, fracassa. Fica essa bela e sensível história, contada através do precioso diário de Einar/Lili, que tentava traduzir o que é ser mulher, em suas infinitas possibilidades, até o limite da vida.
Simone de Paula é psicanalista e especialista em Semiótica.
Ilustração de Carolina Nazatto
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