Você chegou quando normal é nascer em respeito ao tempo de quem espera, não ao de quem nasce. Portanto, a ausência de intervenções para prevenir, anestesiar ou abreviar a humana força que fez você brotar para minhas mãos não foi vista com naturalidade por muita gente. Na narrativa do seu nascimento, protagonizada por sua mãe e você, o único corte foi o do cordão, o que eu, coadjuvante, só fiz quando ele parou de pulsar. Quando você já estava um. Pouco antes, uma tempestade lavara aquela tarde de março.
A festa do seu primeiro aniversário foi a despedida do tempo de sempre. A última vez em que reunir afetos livremente não punha a vida em risco. Desde que o tempo agonizou, você deixou de conviver com avós, tios, primas e a criançada toda. Deixou a creche. Ficamos sua mãe, você e eu. E como há muito a vida não demandava tanto cuidado, sua mãe tem trabalhado demais. Minha rotina de letras tem alguma flexibilidade, logo coube a mim cuidar de você durante a maior parte do dia.
Àquela altura, ouviam-se ao menos três dissílabos seus, “mamá”, “papá”, “ága”, mas logo você deixou de falar. Dizem que isso se deve à privação do convívio com as crianças e as tias da creche, habilitadas para estimular seu aprendizado. Bem que tentei ampliar seu vocabulário, mas minha pedagogia de improviso não surtiu efeito, e meus intervalos de silêncio, maiores desde que o tempo combaliu, talvez não tenham feito bem a você.
Calendários têm tido pouca valia. Ao olhar para eles, sou tomado pela mesma indignação da filha pequena de uma amiga quando percebeu que a quarentena não acabara após o quadragésimo dia. A vida passou a ser regida por cores. Elas nomeiam fases cuja natureza deu um verdadeiro nó nos ponteiros do relógio. A vermelha é a primeira, mais restritiva e, até aqui, duradoura. Quando enfim avançamos no que parecia um arremedo de escala cromática do tempo, foi preciso recuar e estamos aqui, de novo, meu filho, bem longe da azul derradeira. É mais ou menos como seus semicírculos coloridos sobrepostos. Quando – após empilhar o vermelho, o laranja e o amarelo – encaixamos o verde, antepenúltimo antes do topo azul da pirâmide, você não se aguenta e derruba tudo, aí é preciso recomeçar da base. Nem as estações do ano têm servido de parâmetro de ciclo. Não me lembro de um só dia de inverno rigoroso. Em contrapartida, sinto como se preso à insônia de uma noite de verão abafada e sem ventilador. Nem os meses. Nos primeiros dias de janeiro, houve, e como houve, quem disputasse palmo a palmo a areia das praias enquanto caixões se tocavam em valas comuns, abertas de última hora. Celebravam a virada como sempre, quando, na verdade, adiavam-na ainda mais. Estamos em março e sequer há previsão de virada. E não há garantia de que será vivenciada simultaneamente por quem estiver no mesmo fuso horário, pois a contagem regressiva será de mortos, e a morte, exceto a do poder, não tira o sono de todos os governos. Por isso tudo, vestir-se de branco – salvo por heroico dever de ofício – não vai cair bem; nem um brinde de espumante, até porque meio mundo continuará atolado no vermelho.
Foi vital tentar estabelecer uma rotina doméstica para disfarçar a agonia do tempo. No começo, trocava sua fralda assim que você acordava, mas, pouco depois do café, você fazia cocô, e lá ia eu trocar de novo. Decidi então trocar só uns quinze-vinte minutos após tirar a mesa, mas nem sempre dá certo, porque, ao contrário do governo, você não faz cocô todos os dias, então a espera prolongada pode resultar em vazamento de xixi. No fim, ficou assim mesmo, um tanto arriscado, porém mais cômodo. Em geral, no meio da manhã, eu inventava alguma atividade com livro, me empenhava em mostrar e nomear figuras, mas você queria mesmo era avançar, rasgar, retroceder, morder, avançar, amassar, rasgar, mastigar, retroceder, amassar as páginas. Frustrado e às vezes irritado, eu interrompia a atividade e guardava o livro. Peguei então o livrinho de banho, cujas páginas são de um plástico mole, mas esse não caiu no seu gosto. Ainda vou pegar o jeito, prometo.
Quando a rotina encenada não me servia de alento, com um misto de esperança e renitência, inúmeras vezes me pegava em frente a telas, o que era inútil, mais que isso, nocivo, pois novos boletins traziam tudo de novo. O tempo não dava sinais de melhora. Prostrado no chão, eu apoiava as costas no assento do sofá, ali onde, com a ajuda das mãozinhas, você começou a ensaiar passos de um lado a outro com incontida felicidade. Intervalos de sentido então se interpunham ao colapso do tempo, não o andamento que sua mãe e eu penávamos para dar aos dias, mas manifestações genuínas do curso natural da vida. Nos seus passos, o tempo reagia. Fosse quando tempo pra mim era tempo sem você, não teria testemunhado seus primeiros passos.
Antes universo a ser desbravado, a casa não tardou a limitar seus desafios. Com bracinhos ao alto e cabelos – agora loiros! – ao vento, você foi logo desembestando pelos cômodos, e não demorou – nada demora em você – a parar frustrado em frente à porta que dá para o mundo. A princípio, resisti, mas a birra, a insistência em me trazer sorrindo suas sandálias e o arsenal de lenços desinfetantes me persuadiram. O quarteirão de casa é sossegado, quase inóspito no meio das manhãs, lá fomos. Deve ter sido no primeiro dia em que caminhamos de mãos dadas pela rua que nosso descompasso fez você cair. Com aquele bico tremido, você esboçou choro enquanto eu me desculpava e desinfetava suas mãos rezando para que você ainda não as tivesse levado ao rosto ou à boca. Me empenhei então para ralentar o passo até encontrar nosso andamento, não digo seu, pois certamente você também cedeu. Se o tempo escapar dessa, se houver mesmo futuro, quem sabe um dia seremos como aquelas duas senhoras que encontramos perto do parque. Para que a mãe ainda ande, a filha arqueia levemente o dorso, prende junto ao peito aquele braço sulcado pela teimosia de viver e busca imprimir o andamento comum possível. No nosso andamento, filho, descobri na praça ao lado um pessegueiro – ao menos a fruta parece pêssego – e, na esquina do parque, uma mangueira frondosa, bem carregada. Aliás, a necessidade de frutas na sua dieta e o preço abusivo de algumas delas me fizeram tomar gosto por mangas, eu que nunca tive paciência pra descascá-las. No nosso andamento, não tropeço mais nas placas de concreto levantadas pelas raízes das árvores nem piso na merda. Se o tempo sarar, certeza vou repetir esses pequenos desastres, mas talvez não censure quem anda devagar.
Volta e meia, sua mãe e eu tentamos inventar algo para nos dar a impressão de que ainda existem sábados e domingos: um jantar melhorzinho, uma esticada rápida com você até o parque maior, aquele do aquário de carpas e do palco grande, nunca tão grande. Mas aquele fim de semana de agosto. Na quinta ou sexta, você começou a ter febre alta. Após o banho, notei manchinhas vermelhas pelo seu corpo. Não devia ser nada, só reação da pele delicada ao banho quente, dizia sua mãe. Você sorria, brincava. Na sexta, ela testou positivo para o vírus e teve então de ficar no quarto, de onde saía, de máscara, apenas para amamentar. Fiquei não sei onde. O lar – única ideia, embora àquela altura já um tanto debilitada, que ainda tínhamos do tempo de sempre – havia colapsado. Na verdade, lembro ao menos de ter ido só ao supermercado, pois algo essencial – afora a ilusão de normalidade – urgia. Quando aferiam minha temperatura, notei à frente mais flores à venda do que o costume e sobre elas um letreiro de FELIZ DIA DOS PAIS. Era véspera. Evidente, eu sabia da data, mas ela me fora obliterada pela agonia daqueles dias. Achei o letreiro ultrajante. Domingo faria dois anos do almoço no qual anunciamos ao meu pai que você estava a caminho. Não lembro o que comprei, certamente o essencial não estava ali, o essencial me fora suspenso, me seria banido? Lembro sim os dentes cerrados para não desmoronar patético aos olhos dos clientes de quem me esforçava para manter distância. No caminho de volta, vidros devidamente fechados, soquei o volante, esbravejei, transbordei pela primeira vez desde que o tempo adoecera. O mal que solapou o tempo não podia levar você, não podia levar sua mãe. No fim, o teste dela era falso positivo e seu quadro, meu filho, era de roséola, dessas viroses comuns na sua idade, dessas que não param o mundo.
Sim, o calendário anuncia seu aniversário, mas desta vez não vou brigar com a agenda do Google como no meu, quando, ao ler a data, não me sentia na iminência de completar mais um ciclo; sentia-me, sim, mais velho, mas a velhice – jamais tão nítida no corpo – era obra tão somente da inércia forçada. Quando digo seu aniversário, quando festejo seu aniversário (embora não como gostaria), sinto um raro e precioso alívio de não me consolar com o autoengano, pois você, malgrado tudo, tem passado. Não digo que você e o calendário estejam em plena sintonia, pois, se brincar, de março a março, você excedeu um ano. Mas não tenho dúvida de que o tempo ainda pulsa, respira, resiste em você, meu filho, que não para nem retrocede.
Wilker Sousa é doutorando em Teoria Literária pela Universidade de São Paulo e autor de ‘as digitais das sombras’ (Patuá).
Imagem: “The persistence of memory”, pintura de Salvador Dalí (1931). Acervo MoMA.
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