O maior escândalo da nossa historiografia é
Jesus Cristo não ter nascido em Belém do Pará
Lembro até hoje do choque das palavras ultrajantes
de meu pai me explicando que havia outro Belém
Belém que não é do Pará
Belém que não é o bairro
Belém que não é o SESC
Belém era, pra mim, uma espécie de Uruk
Um outro tipo de Norte
A cidade mais antiga do mundo
Mesmo antes de haver Brasil
Antes dos portugueses
Nos primórdios do mundo
Transcendendo o tempo-espaço
Lá estava Belém do Pará
O berço da civilização que conhecia
Belém do Pará, a terra de Jesus Cristo
Eu podia ver toda a história:
o Espírito Santo chegando como uma pomba dizendo:
— Maria, mulé, tu vai ter um piá
Maria grávida, o presépio como nós montávamos no natal com minha vó
E os meninos correndo solto como eu e meus primos
Enquanto algum adulto cansado irritado chamava
tudo aquilo de presepada
Jesus Cristo comia nossas castanhas
Jesus Cristo andou sob as águas do Acará
O maior escândalo da nossa historiografia sempre será
Jesus Cristo, filho de Deus, ter nascido em Belém do Pará
*
Choro mais por política do que por amor
Talvez eu não saiba amar
o amor que nos vendem
os filmes e as músicas
Aquele amor que nos destrói
até a alma, mas que nos dá
uma vida que não sabíamos
que tínhamos ou podíamos te
raté que amamos como nos vendem
Todas as vezes que chorei por amor, na verdade, chorei por mim
Talvez eu só saiba amar
o amor que é pra mim
e que ninguém vende
Porque amar a si mesma
ainda mais sendo mulher
não é bom para as empresas
não é bom para as vendas
Então não nos ensinam sobre
esse amor, temos que aprender
sozinhas chorando no escuro por
nós mesmas fingindo que é por
uma outra pessoa para não assustar
a mão ou coração invisível do mercado
Toda vez que digo:
— Choro mais por política do que por amor
Alguém acha engraçado
Alguém acha triste
Alguém me entende profundamente
Eu não sei chorar por nada além de política
Eu lembro como se fosse ontem
de ver o Congresso com chuva de
brilho e amor à tortura e aos torturadores
Eu lembro como se fosse ontem
de não conseguir tirar meus olhos
da tela como há quem não consiga
tirar seus olhos de acidentes
na estrada, mas não se enganem:
nada disso é acidente e talvez
por isso eu não conseguisse parar de ver
mesmo que as lágrimas me encharcassem
até o peito e tudo doesse mais do que
é possível colocar em palavras
Eu desenvolvi um medo profundo de fogos de artifício
por ouvi-los em momentos como esses
Eu peguei raiva do homem do bolo, da moça da loja da
esquina e dos vizinhos velhinhos do portão branco
E gritei e chorei e ameacei à noite escura que queimaria
todos os seus carros como se eu tivesse de verdade essa
coragem e desprendimento anárquico francês
Quando choro por mim, estou chorando por política
Choro pelo capitalismo tardio e por não saber
como resolver a questão
Choro pelos privilégios que tenho e não tenho e
a injustiça que é haver privilégios quando
nesse mundo nem direitos todos temos
Choro de medo e raiva e desespero
e choro de tristeza profunda
por não saber o que fazer
por me sentir um grão de areia inútil quando
tudo que eu queria era ser um grão de areia útil
Choro mais por política do que por amor
Eu não sei o que é amor se não a anarquia
Eu não sei o que é a anarquia se não o meu amor
*
Eu não entendia como era possível continuar
Aprendi tudo:
As guerras e revoltas
Os golpes e revoluções
Me ensinaram bem
Eu aprendi
Decorei datas e nomes
Lugares e rotas
As causas e efeitos
Provei saber
A nota máxima
Todos os clássicos
Meu humor ácido
Eu dizia ser lógica
Essa história sólida
Mas saber não é entender
E eu não entendia
como é possível
continuar
Como seguir quando não parece haver futuro?
A iminência da guerra
sempre a um segundo da morte
a bomba, a explosão,
a ameaça constante
os tiros, o gás
Como se faz uma revolução?
A pandemia no globo
O que chamaram desgoverno
As notícias incessantes
Como criar uma frase completa?
Como se manter sã a cada manhã?
O que acontece no meio tempo?
O corte do filme
O entre capítulos
Quem sobrevive faz o quê?
Não nos contaram porque esperavam
que não precisássemos saber?
Hoje
Aqui
Eu sei e entendo
Tudo é tão grande, tudo é tão pequeno
Finalmente entendo os modernistas
Os românticos e os marginais
É possível a continuidade da vida
Porque só quem não continua
Descansa em paz
Clara Browne é escritora e artista visual, formada pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
Imagem: colagem de Clara Browne
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