No início do verão na Islândia, dizemos uns aos outros “gleðilegt sumar og takk fyrir veturinn” — feliz verão e obrigada pelo inverno. A data em que se celebra o começo do verão é variável, pois segue o antigo calendário lunar islandês. Embora soubesse dessa ocorrência — sim, pois aqui conta-se o fim do inverno com a última lua invernal — nunca entendi plenamente seu significado antes de me mudar para Reykjavík. Dizia: “Mas por que não há primavera, por que pulamos para o verão, se ainda faz frio?”. Quando medimos o tempo e as estações com outras convenções, sentimos uma estranha insegurança. Que tempo é esse que é o mesmo e parece ser outro? Talvez baste que cesse a neve e haja mais horas de luz para sentir que é chegado o verão, quando se vive na Islândia.
O que ocorre com a contagem das horas e dos dias num mundo em quarentena? Haverá alguma perspectiva real para reverter esse quadro? Nessa perspectiva, nos vemos medindo o tempo de outra forma, como diria a poeta Lubi Prates — nesse gesto contínuo e íntimo, outro Sísifo, de cortar as unhas e observar o crescimento dos pêlos e cabelos.
Reuni aqui o trabalho de poetas e tradutores de diversos cantos e tempos para tentar expandir nossa leitura do agora. Esse esforço só foi possível por contar com a generosidade de Andrei Cunha, Guilherme Magalhães e Luciano Dutra.
Começamos com Henry Parland (1908–1930), poeta finlandês de expressão sueca traduzido por Dutra, para movermo-nos até o Japão com Ki no Tsurayuki (872–945), que encontra nossa língua na meticulosa trascriação de Cunha, e então para Portugal, ao encontro de João Luís Barreto Guimarães (1967—), poeta e médico, que nos últimos tempos tem nos presenteado com versos e boletins sobre o combate ao vírus em Portugal, de onde seguimos para Cuba passando por Miami, onde encontramos Legna Rodríguez Iglesias (1984—) e seu tradutor, Guilherme Magalhães, ambos enraizados num novo lar no microcosmo de Coral Gables, e de lá voltamos para a Islândia, com um longo poema de Linda Vilhjálmsdóttir (1958—), que, em quinze partes, nos fala da travessia pela quarentena nessa ilha; passamos então ao Brasil e encontramos Lubi Prates (1986—), Mariana Ianelli(1979—), Mateus Baldi (1994—) e Nina Rizzi (1983—), com quem sobrevoamos cenas de São Paulo, Rio de Janeiro e Fortaleza: entram em nosso mapa de leitura os amantes de Wuhan, que talvez repitam o que “é ancestral”, pois “o gesto de agachar, / se reconhece”, e cada poema com sua língua roçando na outra a nos lembrar “]a língualheia que já não é minha[” — o lontano ficando longe e movendo-se do continente para outra ilha, ao encontro de René Rodríguez Soriano (1950–2020), da República Dominicana, mas radicado no Texas, que nos deixou recentemente, atingido pelo novo-velho vírus, mas cravando em versos o ditame “façamos a vida com a vida/ da própria vida”; talvez em resposta ao último porto de poemas, de novo em Cuba, com Sergio García Zamora (1986—), que em seu diário de bom encarcerado se pergunta: “O que fazer se perdi as chaves de mim mesmo”?
Poemas de:
1. Henry Parland (Finlândia)
2. Ki no Tsurayuki (Japão)
3. João Luís Barreto Guimarães (Portugal)
4. Legna Rodríguez Iglesias (Cuba)
5. Linda Vilhjálmsdóttir (Islândia)
6. Lubi Prates (Brasil)
7. Mariana Ianelli (Brasil)
8. Mateus Baldi (Brasil)
9. Nina Rizzi (Brasil)
10. René Rodríguez Soriano (República Dominicana)
11. Sergio García Zamora (Cuba)
Seleção e traduções de Francesca Cricelli, Luciano Dutra, Guilherme Magalhães e Andrei Cunha
[Henry Parland]
Nascido em 1908, Parland foi um poeta finlandês de expressão sueca. Ao lado dos contemporâneos Edith Södergran, Elmer Diktonius e Gunnar Björling, é considerado um dos pioneiros do modernismo na poesia em língua sueca, com seus poemas de uma concisão desconcertante que funcionam como comentários lacônicos e bem-humorados da vida no norte da Europa no início do século 20. Em vida, teve publicado apenas o livro Liquidação de ideais (Idealrealisation, Helsinque, 1929). Sua poesia completa foi reunida num volume publicado pela Sociedade de Literatura Sueco-Finlandesa (Dikter, Helsinque, 2018).
Poemas da gripe
I.
Nesse velho caminho
em que antes andamos
dá-me a tua mão — acho
que algo alcançamos
No fundo dos teus olhos
vislumbra-se uma trilha
que na ferida do meu
coração se enrodilha
No fundo dos teus olhos
eu vejo ali um caminho.
Vem, nesse canto mudo
uma flor dá um risinho.
II.
Ergui muros de mentira,
muros negros, altíssimos
dentro deles me senti
protegido do olhar de Deus.
Agora eles ameaçam desabar
e me sepultar sob as ruínas.
Não sei — — se devo fugir.
III.
Os dias crescem,
uma fila de alvos espectros, — — —
os pequenos em procissão na vanguarda
e os grandes reverentes atrás.
Almas do além,
que a cada ano voltam
e desaparecem.
IV.
Nalgum lugar longínquo a leste
há uma estrada
onde as almas mortas vagueiam
a passos cansados.
Nalgum lugar longínquo a oeste
um oceano silencia;
lá o sol repousa à noite:
um sepulcro de calmaria.
Nalgum lugar longínquo a leste
uma estrada inacabada
que lentamente se volta a oeste
sob passos ainda mais cansados.
Influensadikter
I.
På denna gamla väg
vi redan gått
ge mig din hand — jag tror
vi slutet nått
I dina ögons djup
skymtar en stig
och mot mitt hjärtas sår
den kröker sig
I dina ögons djup
en väg jag ser.
Kom, vid dess tysta rand
en blomma ler.
II.
Jag byggde opp murar av lögn,
skyhöga, svarta murar
innanför dem kände jag mig
säker för Guds blickar.
Nu hota murarna att störta in
och jag blir begraven under spillrorna.
jag vet icke — — om jag skall fly.
III.
Dagarna växa,
en rad vita spöken, — — —
de små tåga i spetsen
och de stora lydigt efter.
Gengångare,
som årligen återkomma
och försvinna.
IV.
Nånstans långt borta i öster
det finns en väg
där döda själar vandra
med trötta steg.
Nånstans i fjärran väster
tiger ett hav;
där vilar solen om natten:
en stilla grav.
Nånstans långt borta i öster
en ändlös väg
den kröker sig sakta mot väster
under allt tröttare steg.
V.
Nånstans långt borta i öster
det finns en väg
där döda själar vandra
med trötta steg.
Nånstans i fjärran väster
tiger ett hav;
där vilar solen om natten:
en stilla grav.
Nånstans långt borta i öster
en ändlös väg
den kröker sig sakta mot väster
under allt tröttare steg.
(Traduzido do sueco finlandês por Luciano Dutra)
[Ki no Tsurayuki (紀 貫之)]
Nascido em 872 e falecido em 945, é uma das mais importantes figuras literárias da história do Japão, além de diretor da Biblioteca Imperial. Os poemas a seguir pertencem ao Kokin’wakashû (Coleção de poemas japoneses antigos e modernos), do início do século 5, e são de autoria de Ki no Tsurayuki, um dos compiladores da coletânea e que também escreveu o célebre “Prefácio em hiragana”.
42 A CAMINHO DO TEMPLO HATSUSE, O POETA CHEGOU A UMA CASA ONDE COSTUMAVA SE HOSPEDAR. AO BATER À PORTA, O DONO DA CASA MANDOU DIZER, FAZENDO TROÇA, QUE A SUA “ESTALAGEM” ESTAVA “SEMPRE ÀS ORDENS”. O POETA PEGOU UM RAMO FLORIDO DE AMEIXEIRA E MANDOU QUE ENTREGASSEM AO HOMEM COM ESTE POEMA
nada sei das pessoas nem
de seus corações inconstantes
mas nesta aldeia sempre
a ameixeira em flor
tem o perfume de antes
人はいさ 心も知らず ふるさとは 花ぞ昔の 香ににほひける
hito wa isa / kokoro mo shirazu / furusato wa / hana zo mukashi no / ka ni nioikeru
89 COMPOSTO PARA UM CONCURSO DE POESIA REALIZADO NO PALÁCIO TEIJI
flores da cerejeira
que o vento despetala
memórias flutuam
no céu sem água
cheio de vagas
桜花 散りぬる風の なごりには 水なき空に 波ぞ立ちける
sakurabana / chirinuru kaze no / nagori ni wa / mizu naki sora ni / nami zo tachikeru
342 O IMPERADOR PEDIU UM POEMA DE FIM DE ANO
no ano que se vai
tive alguns pesares
mas tudo passa
o brilho do espelho
meu reflexo nele
ゆく年の をしくもあるかな ますかがみ 見るかげさへに くれぬと思へば
yuku toshi no / oshiku mo aru kana / masukagami / miru kage sae ni / kurenu to omoeba
(traduzido do japonês por Andrei Cunha)
[João Luís Barreto Guimarães]
Nascido em 1967, em Portugal, é poeta e tradutor, divide o seu tempo entre Leça da Palmeira e Venade. O tempo avança por sílabas (2019) reúne cem poemas selecionados pelo autor, dos dez livros que publicou até o momento. É o seu quinto livro pela Quetzal, após a publicação dos primeiros sete títulos na Poesia reunida (2011), Você está aqui (2013), Mediterrâneo (2016, ao qual foi atribuído o Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa) e Nómada (2018). Sua obra está representada em antologias poéticas e revistas literárias de numerosos países, tendo Mediterrâneo sido publicado em espanhol e em italiano, Você está aqui em italiano e O tempo avança por sílabas em croata.
Nómadas
Só o amor pára o tempo (só
ele detém a voragem)
rasgámos cidades a meio
(cruzámos rios e lagos)
disponíveis para lugares com nomes
imprønünçiåveis. É preciso percorrer os mapas
mais ao acaso
(jamais evitar fronteiras
nunca ficar para trás)
tudo nos deve assombrar como
neve
em Abril. Só o amor pára o tempo só
nele perdura o enigma
(lançar pedras sem forma e o lago
devolver círculos).
Litania ao azar
Ninguém que saber do azar. Todos
lhe voltam as costas (entrando
com o pé direito
batendo
com o punho na mesa
fugindo aos cacos do espelho). Toda
a gente
faz de conta que nunca
o conheceu (nunca uma chave perdida
uma nódoa na gravata o
guarda-chuva
e o vento). Ninguém se aproxima dele
(evitando gatos pretos) faz
pena ver o azar sozinho
(debaixo da escada) largado
à sua sorte.
Mecânica de um abraço
How long shall I hold this hug?
(Tess Gallagher)
O que encerras num abraço quando
abraças alguém não é
um corpo: é tempo. Nesse demorar suspenso
(enquanto deténs outra vida) há
um corpo que é teu enquanto o reténs
nos braços
(porquanto o tens para ti
suspendendo o movimento)
enquanto páras o tempo pelo
tempo
de um abraço. Mas a
força dos teus braços é mais fraca do
que a do tempo e
tens de ser tu a ceder
(tens de ser tu a largar) porque
o tempo não aceita estar parado tanto tempo e
exije que o soltes para
tornar ao movimento.
[Legna Rodríguez Iglesias]
Nascida em Camagüey, Cuba, em 1984, é poeta e escritora de prosa e teatro. Ganhou os prêmios Iberoamericano de Cuentos Julio Cortazar (2011), Casa de las Américas (2016) e Paz para Poesía (2016). É autora de coletâneas de poesia como Hilo+Hilo, Chicle (ahora es cuando) e Transtucé e dos romances Las analfabetas, Mayonesa bien brillante e Mi novia preferida fue un bulldog francés.
Bom dia cão
bom dia osso
bom dia galinha
bom dia guaxinim
bom dia antílope
bom dia ovelha
bom dia tartaruga
foi você
o primeiro animal
do universo
uma tartaruga
pequenina
mordendo
o mesmo dedo
que eu quero
morder
a morder
foi dito.
Buenos días perro
buenos días oso
buenos días gallina
buenos días mapache
buenos días antílope
buenos días oveja
buenos días tortuga
fuiste tú
el primer animal
del universo
una tortuga
pequeñita
mordiendo
el mismo dedo
que yo quiero
morder
a morder
se ha dicho.
Os poemas reunidos aqui, em conjunto ou separados,
estão sendo escritos com a esperança de algo.
Voltar a ver alguém, talvez.
Voltar a ver a todos.
Pessoas com as quais sonho diariamente,
E nesses sonhos as organizo e escondo,
se não as mordo.
Bom dia, Coral Gables
Coral Gables. Cinco e vinte e sete
de quinze de fevereiro. Faz um mês
que matei uma pessoa. Ou talvez
era um peixe agitado no chão da toalete.
Matei-o com um punhal. Ou era um facão
que brandi uma única vez.
Não fazem falta mais golpes
se você acredita que matar é um tira e põe.
Coral Gables. Tem árvores por todo lado.
É um vale de árvores tão amplo
como amplo pode ser um prado.
Prédios e casas. Nenhum rancho
onde possa fazer um café de estrada
nem pendurar meus brinquedos em um gancho.
Los poemas reunidos aquí, en conjunto o separados,
están siendo escritos con la esperanza de algo.
Volver a ver a alguien, talvez.
Volver a verlos a todos.
Personas con las que sueño a diario,
y en esos sueños las organizo y escondo,
si no las muerdo.
Buenos dias, Coral Gables
Coral Gables. Las cinco y veintisiete
del quince de febrero. Hace um mes
que maté uma persona. O era um pez
que aleteaba en el suelo del retrete.
Lo maté con punzón. O era machete
aquello que blandí solo una vez.
No hacen falta más golpes si tú crees
que matar significa saca y mete.
Coral Gables. Hay árboles afuera.
Es um valle de árboles tan ancho
como puede ser ancha una pradera.
Edificos y casas. Ninguén rancho
donde hacerme um café de carretera
ni colgar mis jugetes en un gancho.
***
E assim, como uma fórmula física,
ou química, ou matemática,
eu queria que a última palavra deste livro,
a palavra que seria a gota d’água,
fosse precisamente essa, Miami.
Miami Future
Para mim, todo o sonho e a solidão
pois para minha boca são pães tenros.
Aproximam-se alguns pássaros maternos.
Uma águia seguida de um falcão.
Para mim, todo o ócio e a transgressão,
porque são igualmente pães, menos eternos,
e igualmente quentes. Pães e alimentos.
Uma águia seguida de um falcão.
Deveria ser linda e omnisciente.
Deveria ser Rainha do Salame.
Veja o rio e atrás verás a ponte.
Deveria esquecer sobre o tatame
os anos que me faltam na mente.
Deveria esquecer Miami.
Y así, como una fórmula física,
o química, o matemática,
yo quería que la última palabra de este libro,
a palabra que le pusiera la tapa al pomo,
fuera precisamente esa, Miami.
Miami future
Para mí todo el sueño y el dolor
porque son a mi boca panes tiernos.
Se acercan unos pájaros maternos.
Un águila seguida de un azor.
Para mí todo el ocio y el error,
porque panes igual, menos eternos,
y calientes igual. Panes y cuernos.
Un águila seguida de un azor.
Debería ser linda y omnisciente.
Debería ser Reina del Salami.
Ves el río y detrás verás el puente.
Debería olvidar sobre el tatami
los años que me quedan en la mente.
Debería olvidar todo Miami.
(traduzido do espanhol por Guilherme Magalhães V. S. Oliveira)
[Linda Vilhjálmsdóttir]
Nascida em 1958 em Reykjavík, é poeta, dramaturga e romancista que atuou por muitos anos como auxiliar de enfermagem. Seus poemas são presença constante em jornais, revistas e coletâneas desde 1982. Seu primeiro livro, Por um fio (Bláþráður, 1990), foi seguido de outros sete: As crianças de gelo (Klakabörnin, 1992, que recebeu o prêmio de literatura do jornal DV), Valsas da última singradura (Valsar úr síðustu siglingu, 1996), Hotel Hekla (Hótel Hekla, 1999 — em colaboração com o poeta Anton Helgi Jónsson), Todas as belas palavras (Öll fallegu orðin, 2000). A borboleta de geada (Frostfiðrildin, 2006), Liberdade (Frelsi, 2015, que também recebeu o prêmio de literatura do jornal DV e o Prêmio dos Livreiros da Islândia, além de ter sido indicado ao prêmio de literatura do Conselho Nórdico de 2017) e Letrinhas miúdas (Smáa letrið, 2018). Sua poesia contundente e de forte jaez político rendeu-lhe o prêmio Poeta Europeu da Liberdade de 2018, concedido durante o festival homônimo realizado na Polônia.
Naturezas mortas
1
a coluna de mercúrio
do termômetro rebentou
e a temperatura já não se move
nem acima nem abaixo
de trinta e oito graus celsius
2
caminhei até o topo da coxilha
e de lá desci até o mar
topei com um cavalheiro na meia idade
que dava voltas em volta da igreja
de bicicleta
uma dama respeitável com máscara cirúrgica
no centro de saúde
e na avenida beira-mar dei uma volta enorme
para desviar de um velhinho cordial
de bengala
não cumprimentei a ninguém
3
perscrutei
os corredores por entre as prateleiras
para verificar a circulação de pessoas
na seção de produtos coloniais do mercadinho
depois disparei feito uma ladra
com a lista de compras
entre as prateleiras
e despejei os produtos no cesto
eu e a caixa do mercadinho
nos olhamos nos olhos desconfiadas
enquanto calculávamos mentalmente
a distância entre nós
ela com luvas descartáveis azuis
eu com luvas brancas
4
os corvos deixam-se planar
na ventania
e o ostraceiro vai de lá para cá
à beira da praia, recém chegado de volta
no horizonte vislumbra-se
um navio da capitania dos portos
e no céu cinzento
navegam núvens azul-islândia
na areia há rastros por tudo
mas quase ninguém à vista
5
um
poeminha eterno
a uma distância razoável
que comova as pessoas
apesar dos pesares
6
o ar
tão cristalino
nesses dias
que o vapor do hálito do sujeito
que caminha
na direção oposta à minha
faz pensar
no termo
emergência climática
7
a primavera
se mantém na alta atmosfera
feito um distante sonho infantil
8
uma andorinha
alegra os corações
em meio ao invernico de abril
9
organizar
os bolsos do casaco
antes da ida ao mercadinho
lençinhos de papel lencinhos umedecidos
luvas descartáveis e chaves
no da direita
carteira telefone
e lista de compras
no da esquerda
inusitadamente resignada
com a mania de organização
nesses dias
apesar da tendência
de estacionar a dois metros de distância
do carro mais próximo no estacionamento do supermercado
10
assisto consciensciosamente
à missa pela tevê
acendo velas às duas da tarde
e aperto um lencinho umedecido entre as mãos
enquanto os sumos sacerdotes
nos guiam pelo ritual da epidemia
diretrizes de como lavar as mãos
proibição de aglomeração quarentena e isolamento
estatísticas de contágios doentes e mortos
e estimativas sobre a vida futura da humanidade
apesar de a situação estar piorando
a fé no poder da coletividade
aumenta
11
na capital
da cultura ocidental
os profissionais de enfermagem
se vem obrigados a escolher
quais
entre os doentes graves
receberá
respiração artificial
e quem
não
12
isso me faz pensar
na tenda de espera lotada
do doutor Stemmy
em Kochi no Kerala às vésperas do natal
os mais fracos sentandos em mochinhos
e os demais aglomerados em pé esperando
a educação encarnada
na umidade e no aperto insuportáveis
entravam de dois em dois
para verem o médico mulher com filho
mulher acompanhando o marido
filha com mãe e outras com pai
as mulheres vestindo saris
braceletes de ouro e moedeiros com enfeites
os homens vestindo lunguis
ou calças cáqui e camisas de manga curta
todos descalços
e as alpargatas humildes empilhadas
na calçada escaldante
do lado de fora da tenda
13
os dedos dos pés crispados
enquanto sento em frente ao computador
e os dedos das mãos crispam-se automaticamente
nos bolsos dos casacos e no sofá em frente à tevê
abaixo a cabeça
quando chegam as notícias do norte do país
14
ser
ou não ser
estático
ou determinado
eis a questão
15
atravesso a península
a trilha rumo ao sul
a praia rumo ao norte
há uma membrana sobre o lago
e sobre ela revoa
uma formosa turba de gaivotas
rápido demais
para que aquele desenho formoso
fixe-se na câmera do telefone
os pássaros
mantém-se dois a dois
pela praia
dois ostraceiros pisoteando na areia
dois patos nadando no mar
dois pilritos planando
reanimam o dia
(traduzido do islandês por Luciano Dutra)
Kyrralífsmyndir
1
kvikasilfurssúlan
í hitamælinum rofnaði
og nú bifast hitinn
hvorki upp né niður
fyrir þrjátíu og átta gráður á selsíus
2
gekk uppá holtið
og þaðan niður að sjó
mætti miðaldra herramanni
sem hringsólaði kringum kirkjuna
á hjóli
virðulegri frú með skurðstofumaska
við heilsuverndarstöðina
og á sæbrautinni tók ég stóran sveig
framhjá vingjarnlegu gamalmenni
með staf
heilsaði engum
3
renni augunum
yfir gangana milli rekkanna
til að tékka á mannaferðum
í nýlenduvörudeild búðarinnar
skýst síðan eins og þjófur
með innkaupalista
milli hillnanna
og ryð vörum ofan í körfuna
við afgreiðsludaman
horfumst tortryggnar í augu
meðan við metum í huganum
bilið á milli okkar
hún með bláa latexhanska
ég með hvíta
4
hrafnarnir láta sig fjúka
í rokinu
og tjaldurinn spígsporar
í fjöruborðinu nýkominn heim
úti við sjóndeildarhringinn
glittir í varðskip
og á gráleitum himni
sigla íslandsblá ský
það er sporaslóð í sandinum
en varla maður á stangli
5
eitt
eilífðar smáljóð
í hæfilegri fjarlægð
sem snertir mannsbörnin
samt
6
loftið
svo tært
þessa dagana
að andgufa náungans
sem kemur gangandi
á móti mér
kallar
fram orðið
loftlagsvá
7
vorið
heldur sig í háloftunum
eins og fjarstæðukenndur barnæskudraumur
8
ein lóa
gleður hjörtun
í hretinu
9
endurraða
í úlpuvasana
fyrir búðarferðina
klínex sprittklútar
latexhanskar og lyklar
til hægri
veskið síminn
og innkaupalistinn
til vinstri
óvenju sátt
við skipulagsáráttuna
þessa dagana
þrátt fyrir hneigð
til að leggja í tveggja metra fjarlægð
frá næsta bíl á planinu við krónuna
10
horfi samviskusamlega
á sjónvarpsmessuna
kveiki á kerti klukkan tvö
og spenni greipar um sprittklútinn
meðan æðstuprestarnir
leiða okkur gegnum farsóttarritúalið
reglur um handþvott
samkomubann sóttkví og einangrun
tölur um smitaða sjúka og látna
og spána um framhaldslíf mannkyns
þótt ástandið fari versnandi
er trúin á samtakamáttinn
vaxandi
11
í höfuðstað
vestrænnar menningar
er hjúkrunarliðið nauðbeygt
til að velja
hver
á meðal fárveikra
fær að anda
í vél
og hver
ekki
12
verður hugsað
til troðfulla biðstofuskýlisins
hjá doktor Stemmy
í Kochi í Kerala rétt fyrir jól
þeir veikustu sátu á kollum
en aðrir stóðu saman í kös og biðu
kurteisin uppmáluð
í óbærilegum raka og þrengslum
þau fóru tvö og tvö saman
inn til læknisins kona með barn
kona með manninum sínum
dóttir með móður og önnur með föður
konurnar klæddar í sarí
með gullarmbönd og skrautlegar buddur
karlarnir í lungipilsum
eða kakíbuxum og stutterma skyrtum
allir berfættir
og fátæklegt skótau í hrúgu
á sjóðheitri stéttinni
utan við skýlið
13
tærnar eru krepptar
þegar ég sit við tölvuna
og fingurnir kreppast ósjálfrátt
í úlpuvösunum og sjónvarpssófanum
set hausinn undir mig
þegar fréttirnar bresta á að norðan
14
að vera
eða ekki vera
staðföst
eða staðfastur
það er málið
15
geng þvert yfir nesið
stíginn í suðurátt
fjöruna í norður
það er skæni á tjörninni
og þar yfir sveimar
fagurskapað mávager
of kvikt
til að fegursta munstrið
festist á símamynd
fuglarnir
halda sig tveir og tveir
saman í fjörunni
tveir trítlandi tjaldar í sandinum
tvær syndandi endur í sjónum
og tveir svífandi sendlingar
lífga upp á daginn
(traduzido do islandês por Luciano Dutra)
[Lubi Prates]
Nascida em 1986 em São Paulo, é poeta, tradutora e editora. Tem três livros publicados: coração na boca (2012), triz (2016) e um corpo negro (2018). Esse último recebeu uma bolsa Proac de criação e publicação (na categoria poesia), foi finalista do sexagésima-primeira edição do Jabuti e do IV Prêmio Rio de Literatura e encontra-se no prelo na Argentina, na Colômbia, nos EUA, na Espanha e na França. Tem diversas publicações em plaquetes, antologias e revistas nacionais e internacionais. Organizou os festivais literários para visibilidade de poetas, [eu sou poeta] (São Paulo, 2016) e Otro modo de ser (Barcelona, 2018), além de participar de outros festivais literários no Brasil e noutros países da América Latina. É sócia-fundadora da editora nosotros, editorial e é editora da revista literária Parênteses. Dedica-se a ações que combatem a invisibilidade de mulheres e negros. É doutoranda em Psicologia do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo.
Dei o que tinha (fragmentos)
1.
te dou de comer
na palma da minha mão.
é ancestral
o gesto de agachar,
se reconhece:
me curvo ao chão
então, você vem,
faminto.
não distingue
entre o que é comida
e quem eu sou.
penso domar a fera,
as pontas dos meus dedos se vão.
não distingo
se é dor ou prazer
me transformar em seu alimento.
voltarei amanhã,
você sabe.
2.
sequer havia luz,
mesmo assim,
aprendi a te alimentar
primeiro.
antes de qualquer verbo
ou nome:
não havia chamado,
ainda não há.
embora sequer houvesse luz
e tendo, ainda, olhos
preservados por você,
me guiei pelo cheiro da sua boca
entreaberta.
agachado,
com minha pata de bode,
te dou de comer
antes de seguir, veloz.
3.
esse chão
criamos nós
a partir do nada que havia:
era apenas linguagem.
na palma da sua mão
dei o que eu tinha,
cuspi a palavra terra
que você moldou com sua saliva.
fez-se lama.
nomeamos assim,
essa porção ínfima
onde deitamos.
[Mariana Ianelli]
Nascida em 1979 em São Paulo, lançou recentemente Manuscrito do fogo, uma antologia de 20 anos de poesia (1999–2019). Escreve a cada dois sábados na revista digital de crônicas Rubem. É editora da página “Poesia Brasileira” do jornal Rascunho.
Oração das mariposas
Agradecemos pelo esquecimento concedido
Pelos dias que passamos iludidas
Pelos olhos de coruja que se abrem em nossas asas
Quando pousamos sobre um tronco para dormir
Na forma de uma calma assimilada
Sem que nos vejam olhos de caça ou de cobiça.
Pelo indeterminado da nossa hora
Por serem ainda remotos e escamoteáveis seus sinais,
Por sermos subtraídas de nós mesmas tão gentilmente
Que ir morrendo ainda nos dói mais de beleza que de terror.
Agradecemos pela trégua, embora falsa
Convincente para nós que permanecemos distraídas
Em sérias fugas, penteando, penteando a areia
No oco de um silêncio quase feito de bondade
Como de uma mãe que se finge alheia e longe
Só para ser cúmplice do nosso desejo de existir.
Escrevo para você
Ontem a chuva quis honrar velhos deuses
E fez subir os córregos sobre as ruas
O dia virar noite dupla com as debandadas
E agora dentro da palavra penumbra
Ressuscitada por estranhas circunstâncias,
No silêncio de um dia seguinte
Que não pôde se desgarrar da noite passada,
Escrevo para você de próprio punho, e sonho
Que uma chama muito fina mosqueia de luz
Esta página, e que, com apenas um gesto,
Meu ou seu, ela poderia lamber uma cidade.
Os amantes de Wuhan
Até quando? É a pergunta que nubla
Uma cidade na clausura
Desolada pelo terror de um ar irrespirável.
O comércio foi suspenso.
Os abatedouros aquietaram-se.
Os que ainda se arriscam pelas ruas
Praticam a ciência dos fantasmas.
A espera tem cachos de olhos nas janelas
Mas na casa dos amantes
Todos os olhos já se fecharam.
Nunca foram tão obedientes
Às exortações das autoridades.
Ocupados feito monges
Justificados pela peste
Estão se percorrendo milimetricamente
Pelos poros, por noites encadeadas
Num único dia sem fim, eles estão se amando
E não têm tempo a esperar que o tempo passe.
[Mateus Baldi]
Nascido em 1994 no Rio de Janeiro, é jornalista e escritor. Criou a plataforma Resenha de Bolso, voltada para a crítica de literatura contemporânea, e colabora com veículos como a revista Época e o jornal O Estado de S. Paulo, entre outros.
Diálogo surdo-mudo
estávamos sentados na areia quando
ela levantou e disse quero tudo que é meu por direito,
e eu encarei o oceano vazio, esse horizonte profundo
gotejando na poça uma luz escura.
para a correnteza, nadar não importa muito,
ela prosseguiu, sorrindo como quem insiste
no naufrágio, no delírio. é tudo o mesmo barco
sem fundo, estamos sobre um casco de navio
fracassando contra o fim do mundo.
de pé, ela abriu os braços, feliz, e por fim disse,
sabe, acho que, de tanto insistir,
um dia eu me afogo nisso tudo.
It’s summertime and lovin’ is easy
escuto o barulho do meu dente em tua veia
e não ligo, é tudo imprevisto nesta terra sinistra
que nada tem de minha.
escuta, meu bem,
a vida vale sim a vida,
mas não esta vida, alguma vida
que não a minha, que não a sua
mas alguma vida —
é preciso existir, resistir, ficar junto
que amanhã o céu se abre num caminho turvo
e pronto, foi-se o mundo.
em verdade, mui saudoso, daqui te digo
que a nossa hora é agora.
daqui pra frente, prometo, é só delírio:
o tempo dos deuses acabou.
Longe
teu coração frio
as lágrimas que me levam
para longe
mais longe do que seus olhos
de raiva e desprezo
tudo, como as nuvens cinzas,
o amor e os pássaros que vão,
até isso vai passar
Lontano
il tuo freddo cuore
le lacrime che mi portano
lontano
più lontano che tuoi occhi
di rabbia e di disprezzo
tutto, come le nuvole grigie,
l’amore e gli uccelli che vanno,
anche questo passerà
(“Lontano” foi traduzido do italiano por Francesca Cricelli)
[Nina Rizzi]
Nascida em 1983 em Campinas, é poeta, tradutora, pesquisadora, professora e editora. Integra a coletiva “Pretarau”: Sarau Das Pretas e é uma das articuladoras do Sarau do B1 em Fortaleza. Publicou os livros de poesia tambores pra n’zinga (Orpheu/Multifoco, 2012), A duração do deserto (Patuá, 2014), Geografia dos ossos (Douda Correria, 2016), Quando vieres ver um banzo cor de fogo (Patuá, 2017), e Sereia no copo d’água (Jabuticaba, 2019). Coedita a revista Escamandro – poesia tradução crítica, e escreve regularmente em seu blogue a poema.
versão em linha reta de poema de emily d.
nessa tão curta vida – só uma hora pra tanta beleza, comoção, desespero. quanto – quão pouco ao nosso alcance. (dilacera.)
]olhando o jardim pelo buraco da fechadura[
. mabel biscoitos doces
estalando na língua
. mabel textura
lisura y esponja
. mabel
a mochila sempre pronta
2º capítulo no país das maravilhas
. mabel
o verde que já é seco
a rosa que já não é rosa
]imensidão . mangueira[
um rasgo na memória um rasgo seu nome lábio
um rasgo meus pés que afundam
. mabel . mabel . mabel teu nome se transfigura
. ma belle
me in be
. mabel . mabel . mabel
. maybe
]a língualheia que já não é minha[
otra casida a federico, otra
apesar de dizer:
“fica ainda”
“fica ao meu lado”
isso não passa de poesia
— teus passos me caminham pela
[noite
delicada
— vi
o
l e n t a
[René Rodriguez Soriano]
Nascido em 1950 em Constanza, na República Dominicana, e falecido em 2020, em Houston, Texas, foi um escritor, poeta, ensaísta e professor universitário que emigrou para os Estados Unidos nos anos de 1990.
Da vida
venha empurremos a tarde
até o abismo da noite
busquemos bem juntos as lembranças
que uma madrugada
semeei nas carnes dessas terras
aproxima-te
façamos o começo do mundo
com suspiros sem serpentes
sem maçãs nem evas nem adãos
façamos a vida com a vida
da própria vida
Desde la vida
ven empujemos la tarde
hasta el abismo de la noche
busquemos muy juntos los recuerdos
que una madrugada
sembré en las carnes de estas tierras
acércate
hagamos el comienzo del mundo
con suspiros sin serpientes
sin manzanas ni evas ni adanes
hagamos la vida con la vida
desde la vida misma
Avó
cento e quarenta e tantas rugas
cinco filhos mortos
mil lágrimas derramadas
cada novembro
uma herança escura
e dois netos com punhais
cinco metros de terra no meio
esperando o tabelião
e uma certidão de óbito
Abuela
cientoscuarentitantas arrugas
cinco hijos muertos
mil lágrimas derramadas
cada noviembre
una herencia oscura
y dos nietos con puñales
cinco metros de tierra de por medio
esperando al notario
y una acta de defunción
A cor de uma mulher
Uma mulher tem a cor do grito
que a parte em duas
El color de una mujer
Una mujer es del color del grito
que la parte en dos
(traduzido do espanhol por Francesca Cricelli)
[Sergio García Zamora]
Nascido em 1986 em Esperanza, Villa Clara (Cuba), é poeta e filólogo. Seus livros incluem Tiempo de siega (prêmio Poesía de Primavera 2009, Ediciones Ávila, 2010); Poda (prêmio Calendario 2010, Casa Editora Abril, 2011); El Valle de Acor (prêmio Fundación de la Ciudad de Santa Clara 2011, Editorial Capiro, 2012); Día mambí (prêmio Digdora Alonso 2011, Ediciones Vigía, 2012); Libro del amor feliz (Premio Emilio Ballagas 2012, Editorial Ácana, 2013); Las espléndidas ciudades(prêmio Eliseo Diego 2012, Ediciones Ávila, 2013); La violencia de las horas (prêmio José Jacinto Milanés 2012, Ediciones Matanzas, 2013) e Caballería insurrecta (prêmio Manuel Navarro Luna 2012, Ediciones Orto, 2013). Recebeu o prêmio Rubén Darío em 2016 e o prêmio da Fundação Loewe (categoria jovem) em 2016. Seus poemas foram publicados em Honduras, Porto Rico, México, EUA e Espanha.
Alma vil
Não deixava trabalhar.
Eu era uma criança nos teares de Deus
que não deixava Deus trabalhar.
Queria ser o grande Fiandeiro,
mas confundia os destinos.
Não o deixava trabalhar em paz.
Então Deus entregou-me a Poesia
pois para manter tranquila uma criança
damos-lhe qualquer coisa
para brincar.
Ánima vil
No dejaba trabajar
Yo era un niño en los telares de Dios
que no dejaba trabajar a Dios.
Quería ser el gran Hilandero,
pero confundía los destinos.
No dejaba trabajar en paz.
Entonces Dios me entregó la Poesía
porque si deseamos tener tranquilo a un niño
se le da para que juegue
cualquier cosa.
A educação sentimental
À noite o Demônio, Senhor das Moscas, introduzia um alacrão em cada sapato meu. Uma vez ou até duas vezes me picaram, mas o veneno não subiu além dos joelhos, quero dizer, o veneno me manteve ajoelhado para que aprendera a princípio a ser humilde e então astuto, e então a desacreditar, a desacreditar até do interior dos meus sapatos, obscuro e pestilente assim como quase todo o interior das coisas. Alegrei-me, quanto pode de fato alegrar-se uma pessoa, de que foram alacrães, nunca tarântulas nem víboras pois teria sido ridículo dançar a tarantela, ridículo dar três passos e cair morto. Numa manhã de inverno, ao esvaziar meus sapatos, caiu areia sobre o piso (Sahara) e sobre a areia vermelha caíram escorpiões vermelhos. Então sem previsão me foi devolvida a inocência: se o Demônio, Senhor das Moscas, correu tão longe para buscá-los é porque já não há nos interiores do país animais com tanto pungência.
La educación sentimental
De noche el Demonio, Señor de las Moscas, introducía sendos alacranes en mis zapatos. Una vez y hasta dos me aguijonearon, pero el veneno no subió más allá de las rodillas, quiero decir, el veneno me mantuvo arrodillado para que aprendiera en principio a ser humilde y luego a ser astuto, luego a descreer, a descreer incluso del interior de mis zapatos, oscuro y pestilente como el interior de casi todo. Me alegré, cuanto se puede en verdad uno alegrar, de que fueran alacranes, nunca tarántulas ni víboras porque sería ridículo ponerse a bailar la tarantela, ridículo dar tres pasos y caerse muerto. Una mañana invernal al vaciar mis zapatos cayó arena sobre el piso (Sahara) y sobre la arena roja cayeron rojos escorpiones. Entonces sin previsión me fue devuelta la inocencia: si el Demonio, Señor de las Moscas, corrió tan lejos a buscarlos es porque ya no quedan en los interiores del país animales con ponzoña.
Diário do bom encarcerado I
O que fazer se perdi as chaves de mim mesmo. O que fazer se sou uma criança que se debruça sobre o poço noturno? Cárceres, só vejo cárceres. Calabouços concêntricos onde cada um é uma vez réu e outra carcereiro. Do lado de fora é outuno, mas do lado de fora de uma prisão sempre é outono. Apodrecer como o outono, todos os poetas deveríam apodrecer como o outono. Todos os poetas a gosto em suas celas de costume. Todos os poetas com suas correntes longuissímas que não percebem. Fora alguém chora, mas do lado de fora. O que fazer se perdi as chaves de mim mesmo. O que fazer se nunca nasci do outro lado dos muros. Agora fecharam definitivamente todas as portas e não sobra ninguém, ninguém que possa me olhar por dentro.
Diario del buen recluso I
Qué hacer se he perdido las llaves de mí mismo. Qué hacer si soy un niño que se asoma al pozo de la noche. Cárceles, solo veo cárceles. Calabozos concéntricos donde cada uno resulta a la vez reo y carcelero. Afuera es otoño, pero afuera de una prisión siempre es otoño. Podrirse como el otoño, todos los poetas deberían podrirse como el otoño. Todos los poetas a gusto en sus celdas de constumbre. Todos los poetas con sus cadenas larguísimas que no sienten. Afuera alguien llora, pero afuera. Qué hacer si he perdido las llaves de mí mismo. Qué hacer si nunca he nascido al otro lado de los muros. Ahora han cerrado definitivamente todas las puertas y no queda nadie, nadie que pueda mirarme dentro.
(traduzido do espanhol por Francesca Cricelli)
[Francesca Cricelli]
Nascida em 1982 em Ribeirão Preto, é poeta, pesquisadora e tradutora literária. Doutora em Letras Estrangeiras e Tradução pela Universidade de São Paulo, publicou os livros Repátria (Demônio Negro, 2015), 16 poemas + 1 (edição de autora, 2017, 2018), As curvas negras da terra (Nosotros, 2019) e Errância (Macondo, 2019).
[Andrei Cunha]
Nascido em 1973 em Pelotas, é tradutor literário de japonês (com traduções publicadas de Tanizaki Jun’ichirô, Inoue Yasushi, Sei Shônagon, Tawada Yôko e Nagai Kafû) e professor de língua e literatura japonesa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em 2019, lançou Cem poemas de cem poetas: a mais querida antologia poética do Japão, uma tradução integral do Ogura hyakunin isshu, pela editora Bestiário/Class de Porto Alegre. Os poemas aqui apresentados foram traduzidos para o livro Poemas do Japão Antigo: seleções do Kokin’wakashû, no prelo.
[Guilherme Magalhães V. S. Oliveira]
Nascido em 1984 em São Paulo, é professor de Filosofia e doutor em Educação. Dedica-se ao ensino e à pesquisa, mas também ensaia traduções acadêmicas, com especial interesse por literatura, poesia e teorias experimentais (autoficção, música, alucinógenos etc.). Sob diferentes pseudônimos, publicou ensaios em revistas de ativismo e literatura, além de artigos acadêmicos na área de Filosofia da Educação.
[Luciano Dutra]
Nascido em 1973 em Viamão, Rio Grande do Sul, é tradutor de literatura nórdica e vive em Reykjavík, na Islândia. Mantém a página Um poema nórdico ao dia no Facebook.
Imagem: Colagem de Sarah Wickings
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