Para onde vão as coisas que perdemos?
Para os alunos de Hailsham em Não me abandone jamais, romance de Kazuo Ishiguro, o que se perde tem um destino: Norfolk, uma “espécie de depósito de objetos perdidos”. Ruth, uma das protagonistas, pensava que “quando perdíamos algo precioso e não conseguíamos encontrá-lo, mesmo depois de ter procurado por tudo quanto é canto, não precisávamos ficar completamente arrasados. Porque restava aquele último pingo de consolo de pensar que um dia, quando fossemos grandes e livres para circular pelo país, poderíamos ir até Norfolk”.
Quem sabe, Lila e as Tinas da tetralogia napolitana de Elena Ferrante também estivessem por lá. E, talvez, a necessidade dos personagens dessas duas histórias seja se desligar da esperança dos reencontros. E aceitar que algumas coisas terminam para que outras comecem.
A analista russa Sabina Spielrein escreveu um texto chamado “A destruição como origem do devir”. Nele, a autora diz que “nenhuma alteração pode acontecer sem o aniquilamento do estado antigo”. Devir é vir-a-ser, transformar-se, tornar-se.
Como tornar-se? Como ser humano? Afinal, o que nos distingue? Essa é a grande questão de Não me abandone jamais. Os protagonistas — Kathy H., Ruth e Tommy — são clones, derivados de pessoas “normais”. São criados para doar órgãos vitais e cuidar daqueles que doam até completarem sua missão e morrerem. A sociedade utiliza de seus corpos e evita vê-los como pessoas. São apenas fábricas de órgãos.
E, também, é uma questão importante da tetralogia napolitana: como Lenu e Lila poderiam se tornar as pessoas que gostariam de ser? Elas também lutam com a sensação de que seus corpos estão a serviço dos outros. E batalham para serem vistas com valor, como seres humanos.
No romance de Ishiguro, os protagonistas escutam um boato: um casal que se ame sinceramente poderia solicitar mais alguns anos de vida. É o ato de amar que prova que eles seriam humanos.
E a capacidade de amar seria medida pela capacidade de criar. Através de seus trabalhos artísticos, poderiam provar que têm alma. Que são pessoas. Na tetralogia, algo semelhante aparece. A escrita passa a ser uma possibilidade de existência, uma potência. É o que descobrem ao ler Mulherzinhas, de Louisa May Alcott. Poder também é uma palavra que permeia os dois livros e as adaptações para o cinema e para a televisão.
Todas as histórias são sobre o amor. Quem pode — e como pode— amar. Quem pode — e como pode — viver. São histórias de perdas e de como cada um lida com o que não se encontra mais disponível.
Acreditar ou não em Norfolk?
Alessandra Nicoletti é radialista formada pela Fundação Armando Alvares Penteado e graduada em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Imagem: cena do filme ‘Não me abandone jamais’ (2010), de Mark Romanek.
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