“Eu não consigo entender porque alguém iria querer me matar, eu não entendo o que tem de tão assustador em mim.”
Esta frase foi dita por uma personagem do filme 22 de Julho, produção da Netflix baseada nos ataques de 2011 na Noruega, planejados e executados pelo extremista de direita Anders Behring Breivik. Essa frase me marcou e me fez pensar em tantas coisas — é evidente que estamos vivendo um processo reacionário, conservador e que legitima as violências aqui no Brasil, mas que faz parte de um processo mundial de ascensão desses discursos como resposta às próprias frustrações causadas pelo sistema econômico, político e social que estamos inseridos.
Ao votar 17 na última eleição, as pessoas que fazem parte de grupos socialmente oprimidos fizeram uma escolha pela supremacia e pela manutenção de privilégios de uma elite que jamais esteve ameaçada, mas que, ao se ver obrigada a conviver com outros grupos sociais e com suas pautas, reagiram como se estivessem. O discurso de pastores e políticos é todo calcado na negação de sujeitos “marcados”, que seriam uma ameaça para aqueles que querem manter seus “valores”. Por isso, na atual conjuntura, não posso fazer uso de meias palavras tentando não ofender ou até mesmo iluminar aqueles que estariam “do outro lado”, pois, de alguma forma, a minha existência plena, cunhada numa consciência de classe e política, já me torna uma figura a ser repudiada e temida.
Eu sou uma feminista negra orgulhosa, num país que me quer submissa e branca. Então se Maya Angelou escreveu em Still I rise, que era o sonho e a esperança do escravo, ao me colocar nesse lugar, também me torno o pesadelo dos Senhores. Portanto, não me sinto na obrigação de segurar a mão de ninguém que não tenha coragem de lidar com os fatos: o Brasil é um país intolerante. Se é para segurar as mãos daqueles que nunca tiveram seus direitos plenamente garantidos, façamos isso entendendo precisamos lidar com os dados do país em que vivemos e que escolheu Jair Bolsonaro como presidente.
A cada 23 minutos, morre um jovem negro no Brasil. São 63 negros mortos por dia, segundo o Mapa da Violência. O Brasil também ocupa o quinto lugar em morte violenta de mulheres, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Nas poucas pesquisas sobre assassinato de LGBTs no mundo, o Brasil aparece sempre como um dos primeiros, se não como líder.
Novelas brasileiras reforçaram por décadas lógicas de violência contra mulheres, homofobia e racismo com apoio massivo da população. Algumas chegaram a reforçar lógicas opressoras, como abuso sexual de empregadas domésticas pelos seus patrões. Mesmo com uma Constituição que garante direitos iguais a todos, o Brasil mantém lógicas racistas e segregadoras. O país também tem muitos casos de menores de idade que são contratadas como cuidadoras de crianças ou faxineiras, mesmo que existam leis que impedem o trabalho infantil. Falando em crianças, o Atlas da Violência de 2018 já destaca que crianças são as maiores vítimas de estupros em nosso país.
As famílias ricas brasileiras, que controlam grandes empresas, inclusive de comunicação, e que deliberam como devemos ser, viver e consumir, são ligadas a um histórico de apoio à escravidão e às ditaduras, desprezando os direitos humanos. Mesmo após viver uma ditadura que produziu efeitos desastrosos do ponto de vista humano e econômico, com desaparecidos, mortos e torturados, houve quem fosse às ruas recentemente pedir a volta dos militares no poder. Após o primeiro turno das eleições de 2018, Moa do Kantandê foi assassinado a facadas ao defender seu voto no candidato do Partidos dos Trabalhadores, uma violência sem precedentes em uma eleição. Poucos meses antes, tivemos o assassinato brutal da vereadora Marielle Franco no Rio de Janeiro, que incomodou parte da população pela ênfase dada pela imprensa nacional e internacional ao caso. Após sua morte, Marielle Franco foi alvo de calúnia e difamação.
Falando em mentiras, uma pesquisa apontou que 90% do eleitorado de Bolsonaro acreditou fake news, como por exemplo no chamado “kit gay” e que Fernando Haddad o teria implementado em escolas. Segundo os defensores da sua existência, o “kit gay” conteria material com homens beijando homens e incentivaria crianças a práticas LGBTs. O combate a essa proposta parece ter sido o que mais mobilizou a população em prol da defesa da família por meio de sua escolha partidária, mesmo depois do Supremo Tribunal Federal ter desmentindo a existência do tal kit, proibindo que essa mentira fosse espalhada, enquanto o WhatsApp continuava funcionando como terra sem lei.
Preocupação com os filhos ou apenas homofobia? No primeiro caso, seria estranho que o mesmo país que tem números altos de estupros contra crianças — segundo o Atlas da Violência de 2018, 68% dos estupros no Brasil vitimizam menores de idade, acontecendo inclusive dentro de suas casas —, tenha também uma parcela da população pedindo que o debate sobre sexualidade seja impedido nas escolas, pois são esses conhecimentos que aumentam a possibilidade de denúncias. Ignorância ou um forma de defender seus próprios abusos? Ainda, segundo o Datafolha, um em cada 3 brasileiros culpa mulheres em caso de estupros. Segundo grande parte dos brasileiros, mulheres que “não se dão ao respeito” merecem ser estupradas.
Por fim, o sociólogo José de Souza Martins, que estuda há 20 anos os linchamentos no Brasil, aponta que temos em média um linchamento por dia. Já a pesquisadora Adriana Dias, que há 15 anos pesquisa neonazistas brasileiros, indica que hoje cerca 300 mil brasileiros estão consumindo material nazista no país. Os dados são tão assustadores quanto concretos. É esse o país em que vivemos e, enquanto nos negarmos a conhecê-lo, enquanto recorrermos a negação e a eufemismos, não poderemos confrontar a dura realidade que nos cerca, cada vez menos oculta embaixo dos panos, pois agora legitimada pelo discurso oficial.
Parece que parte da esquerda comprou o discurso da “democracia racial” — mesmo tendo números assustadores de genocídio e violência contra negros, o Brasil é vendido como um país que estaria caminhando para a igualdade racial, enquanto os números e os fatos provam que parte da população não só flerta como participa ativamente dos discursos opressores. Nós, que nos identificamos como esquerda, acreditamos na ideia de que “são boas pessoas, apenas manipulados”. Mas parece que se a memória da direita brasileira é fraca, a de parte da esquerda também é: os dados já indicavam um país violento contra as minorias políticas.
É mais fácil colocar a culpa no algoritmo, mesmo que o algoritmo precise de um sinal humano para funcionar. Estamos driblando fatos e amenizando a realidade. Ignoramos a contribuição das mulheres negras para o entendimento do que é interseccionalidade de opressões. Num cenário como o nosso, ter consciência sobre o que te atinge não é o bastante para não defender o que violenta o direito de existência do outro. Ser pobre nunca significou não ser machista. Ser negro nunca significou não ser homofóbico. Ser mulher nunca significou não ser racista. Ser parte da comunidade LGBT nunca significou não ser classista.
Espero que as autocríticas não se tornem puro paternalismo que trata o outro como ser que precisa ser tutelado, e ignora que o outro, muitas vezes faz escolhas e que é preciso lidar também com isso do que apenas com mera manipulação. As pessoas são humanas, humanos fazem escolhas, humanos falham, humanos se arrependem, mas, antes de mais nada, não esqueceremos nunca que humanos defenderam e oprimiram outros humanos baseados na sua cor, no seu gênero e em sua sexualidade. A história já provou isso, então não feche os olhos e amenize fatos em nome de amizades ou laços familiares. Quem toma café com você pode sim odiar lLGBTs e fazer uma escolha política por isso. Essa é uma verdade mais difícil de aceitar do que o ódio e a frustração com um partido.
Num cenário que se desenha em cima do discurso de ódio contra minorias, não basta um trabalho de base que consista em consciência de classe se ele não vier acompanhado das pautas que erroneamente essa mesma esquerda se nega a dominar. Talvez a direita já tenha entendido que é uma questão identitária, não à toa dá ênfase a ideia de “kit gay”, de “ideologia de gênero”. O discurso é de ódio sim, e foi comprado por parcela da população, que usa o antipetismo e frustração diante da corrupção para negar o Estado, impor sua visão religiosa e perseguir aqueles que entendem como inimigos ao ferir seus ideias de controle, violência e conservadorismo. Então, por favor, não digam que vão segurar a mão de pessoas que vocês não têm coragem nem de defender a existência nomeando aqueles que ferem nossa existência como devem ser nomeados. É mais fácil comprar apenas a ideia do ódio ao PT do que entender que vivemos numa sociedade que odeia pobres, negros, mulheres e LGBTs. É mais fácil comprar o ódio ao PT, é menos feio, mas não é a única verdade.
Eu não inventei esses dados, não inventei essa realidade, tampouco inventei as desigualdades. Quem me dera poder desinventar. O que podemos e devemos fazer, juntos, é reconhecer que a ferida do nosso país é bem mais embaixo.
“A paz tá morta, desfigurada no IML, a marcha fúnebre prossegue” (Facção Central).
Stephanie Ribeiro é arquiteta e escritora.
Ilustração de Sumaya Fagury
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