Hoje vou matar meu irmão. Era assim que eu planejava começar esse texto: com uma frase impactante que resumisse tudo. Queria contar uma história para encerrar você. Não é para isso que as narrativas servem? Não são elas um jeito de explicar o inexplicável, de colocar ordem, organizar no tempo e no espaço experiências tão absurdas quanto essa ideia de que você não existe mais? Não é assim que fazemos: sujeito, verbo, predicado; passado, presente, meio e fim alinhados para dar sentido ao mistério?
Passei tempos planejando isso: eu criaria um personagem de você, um sujeito construído com blocos de memórias, punhados de fantasias, amalgamados com as palavras que eu iria encontrando no meio do caminho até concretizar tudo isso. Eu moraria um pouco dentro dessas cenas que construiria para nós. Elas seriam uma espécie de refúgio, um lugar para te encontrar em paz, uma casa imaginária onde você estaria vivo, mesmo que eu não conseguisse ver você. Um lugar sem aqueles nós que te levaram, sem as marcas que eu vi na sua pele inchada.
Escrevi essa história muitas vezes mentalmente, mas nunca coloquei nada no papel. Talvez por pura incompetência. Talvez porque o papel só aceite verdades e eu acabei me deixando levar pelas fantasias da sua ausência, criei além da conta.
Mas hoje foi diferente. Eu não quis escrever. Eu precisei escrever. Não olhei o calendário, mas, assim que despertei, pensei em você. É o dia do seu aniversário, mas eu me confundi. Achei que fosse o dia da sua morte.
Estava desperta, mas permaneci resguardada sob a camuflagem das pálpebras. Sempre gostei de brincar com essa sensação. Ficar acordada de olhos fechados é algo que me agrada. Sou eu que não vejo o mundo, mas parece que é o contrário: ninguém, nem nada pode me ver. E, assim, tenho liberdade total para fazer qualquer coisa. Sentir, imaginar, criar. De olhos bem fechados é como me sinto mais livre, mais viva.
E foi assim que lembrei de você. Olhos fechados, corpo deitado, alma livre.
Morrer era algo que você desejava, eu sei. Acompanhei isso desde o início, percebi essa vontade em você quando éramos ainda bebês, eu acho. Você ali, mamadeira na mão, observando invejoso o peito que eu abocanhava, o leite que ela fabricara para mim, exclusivamente meu, e ao qual você não teve direito. Doeu, eu sei. Eu percebia nos seus olhinhos. Você nunca acreditou, mas, já naquela época, eu queria trazer você para perto, dizer que não me importaria se você se aninhasse ali com a gente, se tomasse para você o outro seio já farto.
Mas você nem se arriscava. Ficava sentadinho no sofá ao lado, olhando atento enquanto eu mamava. Só se aproximava ao final, quando eu, já bêbada, me entregava ao sono e deixava espaço no colo cansado que ela, agora, guardava para você, o filho mais velho criado como segundo. O filho-remédio, a criança que veio para assentar o terreno, para tornar fértil o solo árido. A criança planejada para apaziguar desejos nunca satisfeitos, para contemplar carências, tapar buracos.
Eu sinto muito.
Senti sempre. Percebia você, percebia a tristeza verdadeira mesmo quando a gente parecia feliz. Sabia que você não queria estar aqui, que preferia não ter vindo, que, se sua existência tinha começado com um erro, outro erro tinha sido dar sequência a ela. O melhor que teriam feito, você emanava, era cancelar tudo enquanto ainda era invisível, passar uma borracha na soma malfeita.
Mas não foi assim, não é? Trouxeram você para cá. Você chegou empacotado. Ela parecia atordoada. Desejara você enquanto ainda não sabia de mim. Desejara tanto que recebeu em dobro, mas, agora, não sabia se queria mais. Como uma menina mimada que pede uma boneca ao Papai Noel, à madrinha, aos pais. Ganha todas e não tem onde guardar, se aborrece com a conquista fácil, parte para um novo pedido. Dessa vez, um pedido de alívio.
Dele eu lembro pouco. Acho que fez farra porque era o que esperavam. Distribuiu charutos, ficou bêbado com licor ruim, roncou. Sumiu na sua existência incômoda.
Você mal chegou e já começou a planejar ir embora. Era um “bebê-anjo”. Quase não chorava e, quando acontecia, era discreto, fazia baixinho, acho que por obrigação. Fazia pouco cocô, não chorava de cólica, comia de tudo (até o que não gostava, aposto!), deixava tudo em ordem, como se ninguém tivesse passado por ali.
Sua presença era tão sutil que me assustava. O seu quarto me amedrontava. Era extremamente organizado. Brinquedos por ordem de tamanho na prateleira, tapete lisinho, estendido sobre o carpete verde escuro ao lado da cama em perfeita simetria, as portas do armário de madeira escura sempre fechadas, as cortinas cerradas mesmo em dias de sol. Você gostava da penumbra. Eu não.
O que mais me assustava era sua cama, o único ponto claro em todo o quarto. Iluminado não porque recebia mais luz. O ambiente era sempre escuro, ou pelo menos é assim que lembro dele. Mas a cama tinha luminosidade própria. Acho que era por causa do edredom branco e fofinho que a vovó fez para você, dos lençóis muito limpos, esticadinhos, do travesseiro estático, que parecia colado para sempre no mesmo lugar, até quando você estava deitado ali, dormindo ou entediado, olhos para o teto, mãos sobre o peito.
Eu tinha medo de entrar no seu quarto, de chegar perto da sua cama. Tinha medo da tentação que eu sofria de revirar tudo, abrir as cortinas, a janela, espalhar brinquedos sobre o tapete, fazer uma cabaninha com o edredom, uma rampa para carrinhos com o travesseiro, abrir as caixas que você escondia embaixo da cama e libertar aquelas bonecas lindas que eu nunca soube de onde você tirava.
Nunca tive coragem de fazer nada disso. Temia que minha iniciativa afugentasse você, que se sentisse traído, invadido, obrigado a exercer um papel que nunca foi seu e que, então, decidisse fugir dele antes da hora. Eu tinha medo de apressar as coisas, de gastar o tempo, de te incomodar a tal ponto que seria insuportável. Tinha medo de te ver subtraído nas caixas de Playmobil, diluído nas poções do laboratório de magia, encerrado em casinhas de Lego.
Por isso passei tanto tempo sem saber se eu te agradaria mais te chamando para a vida ou respeitando sua vontade de se afastar dela. Eu sabia o quanto era insuportável para você estar aqui, mas eu gostava tanto que estivesse. Suas piadas me distraiam, por instantes eu me iludia, achava que tinha passado, que agora você estava gostando daqui.
Eu adorava quando você brincava com meu cabelo, fazia as tranças mais lindas que eu já tive (nunca mais consegui fazer tranças depois de você), elogiava minhas mechas, mas imaginava como eu ficaria ruiva, loira, cacheada. Pintava minha boca, meu rosto, meus olhos com as maquiagens dela. Exagerava em tudo, fazia graça. E a gente ria, como a gente ria! Até que o riso se esvaía em suspiros, se diluía no líquido salgado que umedecia nossas bochechas. E, cansados, nos calávamos.
E, aí, eu entendia tudo. Eu sempre tentava entender. Eu sempre tentava respeitar suas vontades, seu sofrimento, a sua resistência em permanecer, mesmo quando parecia insuportável.
Eu achei que tivesse entendido também quando vieram me contar que te encontraram. Senti um alívio, alegria até. Vibrei em silêncio porque entendia que aquela era uma conquista para você. Seria injusto chorar. Querer te manter aqui era puro egoísmo. E foi isso que senti durante tanto tempo: não me permitia sofrer porque sabia que, agora, você estava em paz. Por eu não conseguia estar?
Por isso alimentei durante anos essa vontade de escrever você. Achei que pudesse organizar sua existência em uma história com começo, meio e fim. Sobretudo fim. Queria criar um personagem para dizer: vejam, este foi meu irmão, ele era assim, ele pensava essas coisas, ele queria isso, ele conquistou, ele se foi. Fim. Acabou. Podemos ter paz.
Só que eu falhei. Comecei mal e, agora, não encontro o final. Talvez ele não exista mesmo, talvez você seja esse ser que nunca foi por inteiro e, por isso, nunca vai deixar de ser. Talvez agora a gente só tenha começado uma nova etapa, uma fase em que, em vez de compreender e aceitar o seu desejo de sumir, invento histórias para ter você sempre por perto.
Giuliana Bergamo é jornalista, com mestrado em Literatura e Crítica Literária na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
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