Maria Portes Santana é artista, professora e pesquisadora. No ano de 2012, enquanto cursava a graduação na Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, viveu um processo difícil ao saber que seu pai fora acometido por um sarcoma pulmonar em estágio avançado: “Após dolorosos meses acompanhando a história, veio o seu falecimento e, em seguida, os meus desenhos”.
Maria, que também é arte-educadora pela ONG Corpo Cidadão, fez vários desenhos, mesclando o trabalho emocional ao artístico. Juntou a esses dois o trabalho acadêmico ao produzir o trabalho de conclusão de curso Campo de sobrevivência e, posteriormente, a dissertação de mestrado Imagens da morte: o artista diante do luto. Entre as imagens que “prolongam a vida” e as que “marcam a morte”, o olhar técnico e analítico da Maria-pesquisadora somou-se à sensibilidade e à poética visual da Maria-artista, assim como às dores, alegrias e elaborações da Maria-filha. Por meio da entrevista abaixo, conheceremos um pouco de como essas Marias se unem em uma só, que trabalhou o luto pessoal e fez dele uma oportunidade de refletir sobre o tema pelas vias da arte e da pesquisa.
O seu trabalho Campo de sobrevivência foi desenvolvido num momento muito próximo à morte do seu pai. Já Imagens da morte: o artista diante do luto foi escrito em um período um pouco posterior. Como você relaciona as especificidades de cada um desses trabalhos aos momentos em que foram concebidos?
Quando recebi a notícia de que o meu pai havia falecido, experimentei as mais diversas sensações. Dentre elas, um misto de dor, arrependimento, impotência, medo e saudade que, no momento, apenas as lágrimas davam conta de manifestar. Os dias passaram, o choque recebido com a notícia diminuiu, mas as sensações que me visitaram permaneciam presentes e cada vez mais intensas. Era difícil transformá-las em palavras. Eu não conseguia conversar sobre o que estava sentindo, embora desejasse encontrar algum recurso para o escape, algum caminho que permitisse compartilhar o meu universo mental e que, principalmente, me trouxesse algum conforto diante aquela perda.
Na ocasião, sem que a princípio eu me desse conta de que esse recurso já havia sido acessado, de que esse caminho já estava sendo percorrido, eu desenvolvia alguns desenhos baseados em fotos que encontrei no meio de pertences do meu pai. E à medida em que eram desenvolvidos, à medida em que me conectava com aquelas referências fotográficas, eu me dava conta de que através desse processo era possível ressignificar as relações travadas entre pai e filha ao longo da vida e que, mais tarde compreendi, também desencadeavam algumas das sensações experimentadas quando veio a notícia de sua morte. Eu me dava conta de que embora não fosse viável impedir a sua partida, ainda era possível revisitar papeis com registros de sua presença física no mundo. Percebia, enfim, que mesmo quando as palavras faltassem, podia recorrer aos meus desenhos, que, embalados de significados, transcendiam qualquer diálogo explicativo que eu pudesse oferecer.
Campo de sobrevivência, portanto, conjunto de imagens que mais tarde também recebeu uma parte escrita para compor o meu trabalho de conclusão do curso de artes visuais, foi o caminho encontrado para investigar sensações e sentimentos, compartilhar histórias, ressignificar relações e sobretudo, garantir a “sobrevivência” das minhas memórias.
Após a elaboração de um trabalho realizado diante de uma perda e a possibilidade de revisitar esse processo através de sua apreciação, surgiu também a necessidade de explorar e compartilhar o universo mental de quem venceu o luto e reconhece a importância da arte para travar uma pesquisa sobre as relações humanas e suas produções visuais. O luto passou, a dor diminuiu, os arrependimentos foram ressignificados, a impotência se transformou, o medo foi afastado, mas a saudade permaneceu e se intensificou.
No tempo transcorrido desde então, portanto, pude identificar algumas transformações, novas percepções e que o tema não havia se esgotado. Quando propus a pesquisa intitulada Imagens da morte: o artista diante do luto como projeto de mestrado, objetivava reunir os desdobramentos do meu triunfo diante o luto num diálogo com outras obras que, assim como o meu trabalho, investigavam imagens da morte e a relação do artista com essa temática.
Quais foram os maiores desafios que você enfrentou ao elaborar o seu trabalho emocional e artístico de luto de forma acadêmica e, de certo modo, pública?
O maior desafio da pesquisa foi conseguir expor as minhas fragilidades, as minhas dores e os meus medos diante de um público. Além disso, me preocupava compartilhar uma história que não era apenas minha e de que forma ela seria interpretada por terceiros. Eu me perguntava como sua abordagem repercutiria entre pessoas enlutadas e de que forma o trabalho poderia se encaminhar sem ser visto como autoajuda ou com objetivos inscritos na perspectiva psicológica, porque embora a pesquisa faça referência ao consolo e se desenvolva também com conceitos de outros áreas da ciência, o foco reside na produção da imagem. A imagem da morte na Idade Média, a imagem da morte nas pinturas de Munch, a imagem da morte no filme de Bergman e as minhas imagens, que, conjuntamente, materializam ritos e signos. Do ponto de vista acadêmico, existe um espaço muito bem estruturado no campo da Arte para propor uma pesquisa autobiográfica e, portanto, os maiores desafios dessa linha de pesquisa são os que paradoxalmente os potencializam: a nudez do universo mental.
Na sua dissertação, as relações entre morte e religião são muito marcantes, não só do ponto de vista espiritual, mas também em relação ao poder do clero. De que formas você acha que a religiosidade impactou seu processo de luto e sua pesquisa a respeito?
Certamente, a conexão que estabeleço com a vida do ponto de vista religioso me auxiliou e me fortaleceu em vários momentos ao longo de todo o processo: acompanhando o meu pai na doença que o acometeu, na sua morte, no meu luto e nas várias fases que vivenciei e continuo vivenciando após esses períodos. Mas embora eu tenha esse olhar para o processo, ao longo da pesquisa procurei não adentrar e não reduzir os encaminhamentos a uma perspectiva pessoal de cunho religioso. A referência ao clero e à doutrina cristã ao longo da pesquisa é feita a partir de um olhar histórico, pois alguns dos primeiros registros que se tem da relação entre o homem e a morte, tanto literário, quanto imagético, são resultantes do conhecimento que pertencia ao clero, em torno do ano 400, na Europa Ocidental. Neste sentido, e considerando a vasta produção dessa temática no oriente, no ocidente e nas várias filosofias religiosas, a pesquisa buscou fazer um recorte, visando analisar parte do conteúdo que a perspectiva cristã medieval oferece e a associando com obras que, pertencentes à outro tempo, continuam conectando o homem, a sua finitude e o porvir.
Em Imagens da morte: o artista diante do luto, você aborda a morte sob três óticas. Você poderia comentar um pouco sobre elas?
“A morte como trânsito”, a primeira ótica proposta na pesquisa em questão, buscou fazer referência à concepção que prevalece no ocidente de que a morte é um “trânsito” ou uma “viagem”, em que o “viajante” parte sem chances de voltar. Encerrou, portanto, uma trajetória. Visão esta que reflete a consciência humana para a sua mortalidade, para a sua finitude.
“A morte como lógica” é um desdobramento da ótica anterior, em que a consciência para a sua mortalidade, do ponto de vista físico, é o seu mais certo destino. O que faz o homem estabelecer ritos, criar teorias, formular crenças e travar relações com a morte.
A terceira ótica, “a morte como retorno”, tem o objetivo de desenvolver o ponto de vista anterior trazendo a possibilidade de pensar os aspectos fecundantes de uma morte, a perpetuação do saber, a continuidade da espécie, e mais: a sobrevivência da memória e a recuperação diante o luto.
Que relações você identifica entre as séries de desenhos produzidas em Campo de sobrevivência e a série Marcas da morte, que permeia o seu segundo trabalho acadêmico sobre o tema?
A série de desenhos produzida em Campo de sobrevivência foi elaborada numa tentativa de ressignificar as minhas memórias diante da relação com o meu pai e expressar todas as sensações que senti ao longo do luto. Essa série, que tem características e técnicas específicas associadas ao seu processo de criação, foi dividida em três etapas: Passagem, Pai e filha e Álbum de família.
Marcas da Morte, sequência de desenhos idealizados após o luto, figura as imagens que, ainda hoje, povoam as minhas lembranças: suas mãos e seus pés, inchados e desfigurados testemunhando a doença e a vida que se esvai. Tais desenhos foram colocados em preto e branco ao longo da dissertação. É uma referência à manifestação da memória, que ora aparece embaçada, ora sem cor, ora sem avisar, sem pedir, sem se anunciar. São as “marcas” de sua morte, que embora tenha sido denunciada pela doença, chegou sem pedir licença.
Todos os trabalhos citados se conectam à medida que o processo de criação é compreendido. São, conjuntamente, uma linha do tempo que recria as reminiscências da minha vivência através de imagens que desafiam simbolicamente a morte, num aparente triunfo sobre ela.
Como foi o processo de escolha das obras a serem analisadas em Imagens da morte: o artista diante do luto?
A primeira obra citada no trabalho em questão, denominada A mãe morta e a criança, feita em 1897 por Edvard Munch (1863-1944), foi selecionada a partir de uma relação sinestésica que se estabeleceu no momento em que a observei. No texto da dissertação eu descrevo de que forma eu me identifiquei com a figura da criança que cobre os ouvidos frente ao óbito da mãe, “numa tentativa de calar o grito da morte”. O contato com a história e a produção do artista norueguês é anterior à pesquisa, entretanto, se intensificou com a busca pelas suas obras que faziam referência à vida, amor e morte, temas aos quais a pintura referida pertence e as outras que aparecem ao longo da pesquisa também. Lendo seus críticos e analisando suas imagens, percebi como o repertório de Munch se associava à minha percepção de memória e à importância desse mecanismo na produção de arte. Além disso, reconhecia na sua abordagem técnica, uma importante referência para expressar questões tão complexas e potentes, quanto as que perpassam a morte. As obras Ars moriendi e Vers de La mort, inscritas no período medieval ao qual o trabalho se refere foram uma sugestão da orientadora Maria do Ceu Diel, que gentilmente me apresentou essa possibilidade e logo percebi a conexão com a linha de raciocínio que pretendia abordar quanto às primeiras relações estabelecidas entre o homem e a morte. O filme Gritos e sussurros (1972), do diretor Ingmar Bergman, também faz parte de uma série de filmes sugeridos pela orientadora que contemplavam a temática. Ao assisti-lo, vieram à tona várias associações importantes para desenvolver o assunto e traçar paralelos com a minha história pessoal. Sendo assim, posso dizer que o processo foi diverso, rico e cheio de conexões.
Embora inclua poemas e pequenas narrativas em sua dissertação, você afirma que “a perspectiva que se constrói nesta pesquisa deriva da imagem”. Quais as particularidades de fazer o luto e pesquisar sobre o luto a partir dessa perspectiva?
Para criar uma arte visual, o artista percorre primeiro um processo de criação. Processo este que deriva, entre outros, de pesquisas, investigações, observações e contemplações de memórias, histórias, conceitos, produções científicas, musicais, imagéticas e literárias diversas. Muitas vezes tais caminhos também perpassam a autorreflexão, o autoconhecimento e uma imersão no universo mental do propositor, para que ele se conecte com as expressões, com os conceitos, artifícios, metáforas, símbolos, ritos, signos, dentre outros, que deseja desenvolver e compartilhar. Uma pesquisa em arte, portanto, embora possa estabelecer conexões com outras áreas do conhecimento, foca no resultado visual, na estética, no arquétipo, no emblema e em todas as nuances que uma imagem implica. A dissertação A imagem da morte: o artista diante do luto compartilha o processo de criação e as conexões estabelecidas com o tema da morte, que, longe de ser um discurso apologético, a emblematiza através de imagens. Interessou, portanto, construir uma narrativa que consagra a imagem diante da morte e do luto, como produção do homem em resposta a este destino.
Ana Luiza Rocha do Valle é doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo e pesquisa relações entre museologia e estudos literários.
Imagem: Maria Portes Santana.
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