Reykjavík, 1° de abril de 2020
Querido Julián,
foi um prazer revê-lo ontem durante a conversa transmitida ao vivo no Instagram por sua editora. Há algum tempo tenho o desejo de lhe escrever um e-mail para contar da minha leitura de A ocupação, só havia escrito rapidamente, em meio à leitura, quando senti que o que ocorria em mim — a partir da sua escrita — era transbordamento. Depois, como quase sempre acontece, nos vemos ocupados por afazeres cotidianos que, com frequência, envolvem o sustento, e os dias vão passando e fica cada vez mais difícil sentar e escrever a um amigo e falar sobre a própria leitura. Muitas vezes, me sinto ocupada por prazos, as datas de entrega de traduções ou a matemática de quantas páginas devo traduzir por dia vão encontrando um caminho dentro de mim como cupim na madeira. Mas é preciso estar atento a certas ocupações. Os cupins, por exemplo, criam galerias na madeira e por lá se locomovem e se reproduzem. Depois, abandonam seus abrigos, possivelmente ao entregarmos um livro ou um artigo, e voam até se desprenderem de suas frágeis asas. No Brasil, se não me engano, isso ocorre entre setembro e dezembro. Por isso, vemos essas revoadas, fugindo da luz, buscando construir novas colônias em objetos de madeira, dando início a novas ocupações. Novos prazos, novos projetos, novos contratos: algo que garanta mais um mês, mais um cheque, mais um depósito. E, assim, nossa fragilidade, toda exposta, vem à tona tanto no plano físico, nesses dias em fuga do vírus corona — para que não encontre em nosso corpo um bom hospedeiro — quanto no plano econômico e financeiro, há tanto tempo chancelamos a precariedade trabalhista e nos oferecemos como madeira às estruturas cupins. Mas enfim, o que estou fazendo aqui? Tergiversando enquanto quero voltar a A ocupação.
Seu livro chegou aqui na Islândia logo após o Natal. Eu o aguardava ansiosamente junto com outros livros que pertencem à minha biblioteca e encontraram morada na casa da minha mãe, no interior de São Paulo, pois não pude trazê-los para cá. Estávamos ainda no coração do inverno no paralelo 64 graus norte. Foi uma longa e dura travessia, não tanto pelo frio, mas pela ausência de luz. Três, não mais do que quatro horas de luz por dia. Além disso, há uma condição especial de solidão e isolamento quando se vive num país tão diferente e não se domina a língua, aliás, mal é possível entender o que se ouve no rádio ou na televisão, só se decifra — com imenso esforço — o que se lê com auxílio de dicionário e tábua de declinação. Sua escrita me trouxe um pedaço de casa para a nova casa. A voz de Sebástian, o ritmo de cada capítulo, os atravessamentos. Eu vivendo na suspensão do escuro sub-ártico, agora ocupada pela doença do seu pai, pela frustração, pelo medo, pelo desejo e pela espera de uma gravidez, pela perambulação e pelos gestos do Sebástian, que me traziam de volta nacos da minha cidade. Senti-me amparada por sua narrativa, ocupada por ela, e, com isso, fui desacelerando minha leitura cada vez mais, temendo o fim do livro, temendo o fim desse elo invisível e imaginário entre as suas histórias, o meu país de origem, e o desencaixe daquele meu presente. Seriam tantos os detalhes a serem lembrados em sua narrativa, mas o que me impregnou foram os silêncios. O silêncio de Sebástian ao lado do pai, no hospital; o silêncio com que observava a nova rotina doméstica com sua mulher — o cuidado dela para com as plantas — seu despertar mais cedo, seu estar na rede sozinha lendo livros escritos por mulheres; o silêncio dos dois voltando para São Paulo durante o aborto; o silêncio-escuta de Sebástian que doa ouvidos e mãos para encarnar Rosa na página. Rosa. Foi nesse capítulo que senti o transbordamento e lhe escrevi o e-mail, aí perdi o e-mail e tive que escrevê-lo novamente. Tenho certeza que o primeiro, aquele que perdi, aquele que você não leu, estava muito mais bem escrito do que aquele que de fato chegou. Mas às vezes é assim, perdemos palavras na rede como meias na gaveta. Rosa no combate ao marido, aos ratos, depois às larvas — Rosa que “não sabia mais o que fazer, só sabia que tinha que ir embora”, nesse não saber, ocupada por algo invisível, saiu do vazio que sucedeu à intensa ocupação para o encontro com a Carmen. Me parece que o encontro é a mediação possível entre uma ocupação assustadora (e devastadora) e o vazio. Nos silêncios, fui percebendo os encontros de Sebástian com o pai, com a mulher, com Rosa, com Demétrio, Najati , Carmen, Preta. Talvez consigo, ao ocupar-se do consultório do pai, reler seus trabalhos psicanalíticos, relembrar do cão da infância. Mas acho que o Sebástian está sempre à procura de um encontro. Fico me perguntando agora se no conto “Casa tomada”, de Cortázar, ele e Irene tenham abandonado a casa ocupada justamente porque não houve encontro.
Penso em outras duas imagens fortes desse livro: o homem ruína do homem e o homem que se funde à imensidão dos outros. Confesso que não tenho nehum estofo para tecer uma reflexão filosófica a partir dessas duas imagens, porque sou poeta e tradutora e minhas ideias não conseguem fazer os saltos triplos e quádruplos dos filósofos. Mas intuo que só a partir de certa percepção da própria ruína é que podemos, de fato, tentar nos fundir à imensidão dos outros. A ruína dos outros também é nossa, em alguma medida. Esse parece ser o corredor que estamos atravessando agora, é longo e escuro como o caminho das térmites na madeira ou como os túneis de Cu Chi. Eu não queria usar uma metáfora bélica, estou enjoada de ler por todos os cantos as mesmas imagens. Mas foi uma associação livre e não vou apagá-la.
Aqui na Islândia, por sorte, ainda podemos caminhar pelas ruas, mantendo a distância segura, e isso me possibilita espiar o Atlântico Norte um pouco todos os dias. Dia desses, a maré havia recuado tanto que as pedras e algas ficaram completamente expostas. No fundo, algum raio de sol iluminava o mar e lhe conferia um tom de verde que nunca se vê por aqui. Ao horizonte, a montanha que protege a cidade dos ventos mais fortes, a Esja, começa a perder o branco, e o degelo vai formando rasuras de terra vulcânica no olhar. O fundo do mar me parecia nu, envergonhado pela primeria vez, a maré se retraiu, e lá estavam à mostra os elementos subterrâneos — um pouco como nossos medos e fragilidades que apontam quando vamos até ao supermercado, à farmácia, quando tiramos as roupas e colocamos logo para bater, besuntamos tudo com álcool e sabão, dirigimos pensando “o nariz está coçando mas não posso fazer nada”. E isso nem é uma ruína perto de tantas outras que virão à tona nos próximos meses. Temos que atravessar esse corredor. O que significa manter-se vivo, psiquicamente, fisicamente e emocionalmente, nesses tempos?
Comecei a trabalhar no centro intercultural para jovens estrangeiros e refugiados aqui na Islândia, mas, em menos de um mês, fechamos as portas para evitar contágios. Nossas atividades migraram para às redes. Propus aos meus jovens interlocutores que fizéssemos um diário de quarentena, me comprometi, com outros coordenadores, a também escrever sobre o nosso cotidiano. Um garoto me disse que seria impossível fazer esse exercício, me disse “yo no tengo imaginación” (ele é venezuelano de origem síria, por isso conversamos em espanhol) e eu respondi “mira, tengo un amigo escritor en Brasil que dice lo mismo, pero ha escrito unos libros preciosos y es un escritor muy famoso” e ele “¿ah sí?”, e então outros três se juntaram em coro e me disseram “¿nos puede enviar una foto de la portada del libro?” Bom, me dá um desconto aí pelo meu portunhol selvagem, Julián. Espero que você e seus caros estejam bem. Vou colocar um pouco de luz no fim do inverno islandês, nesse corredor infindo do presente, lá mais adiante, no futuro, vamos nos dar um abraço.
Francesca
Francesca Cricelli é poeta e tradutora. Doutora em Letras Estrangeiras e Tradução pela Universidade de São Paulo, publicou os livros ‘Repátria‘ (Demônio Negro, 2015), ‘16 poemas + 1‘ (edição de autora, 2017, 2018), ‘As curvas negras da terra‘ (Nosotros, 2019) e ‘Errância‘ (Macondo, 2019).
Imagem: fotografia da autora.
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