Antes de comentarmos a obra Dom Casmurro, de Machado de Assis, é necessário tratarmos a escola literária em que esta está inserida, o Realismo. As obras deste período tendem a prender o leitor ao real usando do senso comum; ao descrever o real, o autor visa a atenção do leitor (verossimilhança romântica) e por isso a opção pela observação e tomada de consciência — tão bem articuladas.
Além destas, há de se considerar o plano da enunciação, a memorialística (narração em primeira pessoa), e o plano do enunciado, um conteúdo de fábulas e tramas. Elementos que por si já deveriam nos provocar se há necessidade de entrarmos na questão de defender um ou outro personagem — se é que realmente devemos defender ou apoiar um dos lados, Capitu ou Bentinho.
Essa hesitação se deve, primeiramente, ao fato de o nosso narrador ser autodiegético, ou seja, tipo de narrador menos confiável, uma vez que conta sua própria história. Portanto, conta a partir do seu ponto de vista (não há voz de outros a respeito dos mesmos fatos narrados). Não se tem (e é impossível ter) garantias. Não somente não existem testemunhas como ainda há possibilidade de que o narrador esteja inventando toda a história, tanto por ser um “eu” enciumado, como por estar distante temporalmente dos fatos (a memória é falha!). Mas para quê inventaria?
Inventaria para se engrandecer como pessoa; inferiorizar algumas outras, no caso Capitu e a sociedade economicamente desfavorecida; por vingança; para salvar a sua honra; ou mesmo pelo simples fato de querer exercitar sua imaginação por não ter nada a fazer — um típico burguês. Independentemente do motivo, devemos questionar o anunciado porque não era Bentinho escritor e, sim, como sabemos, um ex-seminarista que se tornou advogado — nisso podemos acreditar que houve uma intenção ao escrever: talvez treinar a retórica. Segundo Silviano Santiago em Uma literatura nos trópicos (2000), Bentinho “aprendeu” com o seminário a moral e os bons costumes, e como advogado aprendeu o aspecto forense e a arte de persuadir.
Esses dados biográficos do narrador, que por ele mesmo nos são apresentados, levam a crer que, ao escrever o livro, tinha uma intenção provinda de seu ciúme doentio. Com isso se serve de seu poderio (o de estar narrando) para inferiorizar não apenas Capitu, mas a classe baixa que buscava ascensão ao misturar com a burguesa.
Consequentemente inferioriza sua esposa, que vem dessa classe baixa; e por fim, busca na sua persuasão forense conseguir apoio, busca acreditar e ser acreditado no desenvolvimento de suas ideias férteis. Assim com salienta Santiago: “(…) é muitas vezes persuadindo o outro que se chega a persuadir a si mesmo de alguma coisa”.
É na persuasão de Casmurro, na sua verossimilhança, que é ressaltado o seu egoísmo, esse sentimento é a única verdade do livro, pois não é o narrador quem diz ser egoísta, percebemos nas entrelinhas do texto, seja quando, por exemplo, diz amar Capitu, mas desvalorizava-a constantemente, seja quando deseja a morte do filho e, quando essa morte realmente ocorre, não percebemos nem remorso nem outras formas de sofrimento.
Dessa maneira, podemos pensar que Bentinho inferioriza as pessoas porque tem ele próprio complexo de inferioridade, tentando “melhorar” sua autoestima ao diminuir os demais. Também somos levados a perceber seu aniquilamento diante do ciúme que o destrói: o ciumento “vê coisas”, tem delírios que podem ser lidos na chave da paranóia, distancia-se da realidade e acredita piamente naquilo que imagina ou supõe.
No entanto, seus atos são conscientes e férreos, seu coração é seco, busca vingança. Ele menospreza o filho que acredita ser fruto de uma traição, denigre a moral de Capitu enquanto nos conta o quanto a amava. Devemos mesmo acreditar em suas palavras? É como se existissem duas instâncias narrativas que se contradizem, e nessa discrepância podemos ler a célebre ironia machadiana.
Estejamos atentos, pois é com base nos procedimentos narrativos de memorialística que Bentinho constrói a personagem Capitu e consegue, por meio da verossimilhança, colocar em dúvida o caráter de Capitu, tentando apresentá-la com seus “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”.
“Capitu, apesar daqueles olhos que o diabo lhe deu… Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada.”
Para construir a personagem nos moldes que queria, para que, no fim do livro, pudesse expô-la de tal maneira que tivesse a empatia do leitor em relação ao ato de abandonar esposa e filho sem nenhuma explicação plausível, foi preciso gastar mais da metade do romance para apresentar Capitu como essa figura “demoníaca”, apresentando atos suspeitos de Capitu desde menina. Começa no segundo capítulo, “Do livro”, a reprodução, no Engenho Novo, da casa de Matacavalos; neste capítulo expõe os medalhões pendurados na parede: de César, Augusto, Nero e Massini, todos traidores — na semiótica, a tentativa de atrelar Capitu a estes.
No Capítulo 13, “Capitu”, Bentinho nos apresenta o primeiro “fingimento” dela: ele descobre que Capitu o ama. Já no Capítulo 18, “Um plano”, comenta que ela age calculadamente e de forma espontânea: “mas deixe estar que me há ela de pagar”, palavras de Capitu referente à mãe de Bentinho ao saber que esta pretendia colocá-lo no seminário.
Assim, sucessivamente, Bentinho cria a imagem ambígua de Capitu diante do leitor, apresentando-a desde criança quando ainda eram apenas amigos, passando pela adolescência quando ambos não aceitavam a ideia do seminário porque se amavam, e depois, enfim, chegando ao casamento.
Somente depois da chegada do tão sonhado filho é que a semente do ciúme teria lhe crescido no coração. Eis então o predomínio da imaginação sobre a memória. Santiago ressalta esse aspecto ao analisar o romance: ao narrar, Bentinho não tem certeza dos nomes dos autores das diferentes citações e confessa sua falta de memória: “creio haver lido Tácito… se não foi ele foi outro autor antigo”; “minha memória não é boa”.
Tomar parte de um dos lados, de Capitu ou Bentinho, implicaria, segundo Santiago, uma traição por parte de nós leitores. Sim, pois estaríamos condenando ou absolvendo Capitu e considerando, desse modo, Bentinho um alucinado ou não. Nesse sentido, devemos levar em consideração apenas esse narrador “sexagenário, advogado de profissão, ex-seminarista de profissão…”, nas palavras de Santiago, que ao construir a personagem Capitu parecia ter, desde o início, a intenção de persuadir ao leitor a condená-la. O narrador sempre tenta delegar a culpa e a responsabilidade a terceiros quando julga Capitu, mas a injúria maior ele entrega ao leitor (sim, a nós leitores!). Mostra-se um típico burguês que não assume suas falas, seus atos e, muito menos, os corrige.
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