Entrevistamos o escritor carioca Victor Heringer, nascido em 1988 e autor dos romances O Amor dos Homens Avulsos (Companhia das Letras), lançado em agosto de 2016, e Glória (7Letras), publicado em 2012, que foi finalista do prêmio Jabuti.
Também escreveu um livro de poemas, O Automatógrafo (7Letras), e um de contos, o Lígia (e-galáxia). Atualmente, publica uma coluna quinzenal na Revista Pessoa chamada Milímetros e é apontado como um dos escritores brasileiros mais talentosos de sua geração.
Deriva — Em seu primeiro romance, a história se passa em ruas tradicionais do bairro da Glória, no Rio de Janeiro. No segundo livro, o cenário é o fictício bairro do Queím. Qual foi a principal diferença para você, como autor, em criar uma história fixada em um mapa real e outra orientada por um mapa imaginário?
Victor Heringer — O Rio de Janeiro, para mim, são dois mapas sobrepostos. Nasci e vivi na cidade, mas é o mapa afetivo do Rio que se mantém na minha mente: o beco na Lapa sobre o qual Bandeira escreveu seu famoso poema, as ruas em que morei, os caminhos que fazia para as casas de quem amei, as ruas nos livros que li etc. Então, entre a Glória do Glória e o Queím d’O Amor dos Homens Avulsos, há uma diferença bem pequena para mim. O Queím é o Rio mitológico da minha infância. É a visão dupla que me ocorre quando passeio na zona Norte da cidade, as lembranças da minha avó e suas entidades, dos pavores e das inocências infantis. O caso é que, quando escrevo um livro, também inscrevo seus espaços imaginários no mapa real: há, por efeito do puro passar de páginas, um Queím escondido na zona Norte do Rio de Janeiro, assim como há miudezas do Glória no bairro real. É uma maneira de estar no mundo.
Deriva — A linguagem do primeiro livro é mais formal do que a de O Amor dos Homens Avulsos. Fazer essa mudança de tom foi um desafio?
Victor Heringer — Cada livro demanda uma voz diferente. Encontrá-la faz parte do processo, que é uma incorporação não só dos personagens, mas do tom, dos ritmos e de todos os demais elementos do livro. É claro que, ao longo dos anos, sua própria personalidade (incluindo o seu “tom” pessoal) vai se diluindo na escrita, o que significa que, quanto mais maduro um ficcionista, mais ninguém ele se torna. E ser ninguém é poder se tornar qualquer um, qualquer coisa, qualquer livro.
Deriva — Em Glória, temos o romance dentro do romance dentro do romance. Quais são suas melhores memórias de metaficção, como leitor, e como você acredita que elas influenciaram a sua obra?
Victor Heringer — Mais do que a metaficção, o que me interessava ao escrever o Glória eram as inúmeras camadas de ficção possíveis, dentro e fora do livro. Queria investigar como a ficção está ligada ao que chamamos de realidade e à construção da identidade individual, o que acabou virando também uma dissertação de mestrado sobre ironia e subjetividade. Mas tudo começou com a ironia, sobretudo a ironia machadiana, que tem uma linhagem bem conhecida, de Luciano de Samósata, passando pelo Tristram Shandy, até Donald Barthelme, por exemplo – todos autores de que gosto muito. No fundo, a metaficção é um truque na manga do ironista.
Deriva — “A metaficção é um truque na manga do ironista”. Como você vê essa relação entre metaficção e ironia?
Victor Heringer —A metaficção é um rótulo interessante, diz respeito a certos livros que problematizam a ficção na própria superfície textual. Mas, no fundo, todo livro pensa o ato de escrever, basta ler com atenção. Tornar esse pensamento explícito, o que geralmente é feito por meio da inserção de um “livro dentro do livro” na trama, é uma técnica como qualquer outra (o fluxo de pensamento, o diálogo, a rima etc.). Neste caso, porém, serve muito bem ao ironista, pois deixa claro que há muitas camadas ficcionais envolvidas na ficção e, por extensão, na realidade. É um truque ótimo, mas que, como qualquer outro, se desgasta com o tempo. Grande parte do prazer em escrever está em encontrar novos expedientes e processos: é o que costumo chamar de alegria formal.
Deriva— Qual elo entre ironia e subjetividade você apreendeu especificamente em Machado de Assis? E como esse elemento esteve presente ao escrever Glória?
Victor Heringer — O primeiro livro que pedi para comprarem para mim foi um Dom Casmurro desses de banca de jornal, quando ainda mal sabia ler. Algo na capa, talvez a foto barbuda do autor, me encantou. Anos mais tarde, descobri a família intelectual à qual ele pertencia: Machado era filho de Laurence Sterne (como admite em Memórias póstumas de Brás Cubas), tataraneto de Luciano de Samósata, irmão dos irônicos alemães… Sou um agregado dessa família, vivo de favor num quartinho qualquer.
A relação da ironia com a subjetividade, eu só vim a compreender depois. Escrevi o Glória e a dissertação de mestrado mais ou menos ao mesmo tempo, então há linhas que se entrecruzam nos dois textos. O que me interessava entender era como, após a “morte do sujeito” (assassinado pelo pensamento ocidental no século passado), poderíamos falar em subjetividade, identidade etc. O velho sujeito decerto está morto, mas é nessa ruptura funerária que se vislumbraria o que chamei de “sujeito irônico”. Mais do que “dizer uma coisa querendo dizer outra”, a ironia é um deslocamento constante entre o que é e o que não é ao mesmo tempo. E o sujeito reinventado só poderia ser lido também como deslocamento e contradição.
No fim das contas, a ironia, esse ímpeto furioso de negação e afirmação, acaba borrando a fronteira supostamente bem guarnecida entre a “realidade real” e a ficção, entendidas grosseiramente como verdade e mentira. A conclusão, trocando em miúdos, é que o sujeito irônico ressurge como arte, verdadeiro justamente porque é ficcional. Daí vem a diluição da minha própria identidade nos livros.
Deriva —Você valoriza a história, a geografia e a cultura brasileira tanto em seus romances como em suas crônicas. Também em suas postagens nas redes sociais, viagens e passeios, o Brasil parece ser um tema recorrente. Você poderia comentar um pouco sobre a importância desse movimento — voltar-se para dentro de nossa conjuntura — em sua vida como escritor?
Victor Heringer — Ser brasileiro, sobretudo ser carioca, foi algo que tive que aprender. Nasci no Rio de Janeiro, mas passei a infância deslocado entre cidades e países, sobretudo a Argentina e o Chile. Durante alguns anos, tive a certeza de que viveria para sempre em Santiago e me naturalizaria chileno. Quando voltei ao Brasil, na adolescência, demorei a perder o sotaque, me sentia chileno. No Chile, me sentia argentino; na Inglaterra, brasileiro; no Peru, onde estou agora, começo a sentir que não sou é nada, talvez um apátrida com documentos e alguns idiomas misturados na cabeça. Ou seja, logo cedo me dei conta de que não existe muita solidez na identidade, ainda mais na identidade nacional, fonte de tanto chauvinismo. O olhar para o Brasil, portanto, é sempre de espanto: desse desconforto nasce o carinho pelo lugar. Seria assim em qualquer outra parte.
Ilustração de Beatriz Leite
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