Não sei ao certo o ano em que tudo começou, mas sei que foi em um carnaval na praia de Icaraí. É verdade que a localização muda dependendo de quem conta a história, mas fiquemos com esta versão: numa praia de Icaraí, Adão viu Alaíde vestida de diabinha em papel crepom e se apaixonou. Foi assim que o estado do Rio de Janeiro presenciou o primeiro suspiro de amor dos dois jovens que, mais tarde, seriam considerados a glória de uma geração.
Hoje, não acredito que tenha sido amor o que Alaíde despertou em Adão naquele carnaval. Mas fiquemos com a versão oficial, que contam os tios e primos, pois o que importa é que, em um dia de carnaval, Adão se apaixonou pelo diabo e desta união deu-se o início da minha família.
Como Adão e Alaíde se aproximaram, não sei, nunca me foi contado. Só sei que, tempos depois, o pai de Alaíde a viu ao lado do rapaz, em um palanque, protestando contra o governo. Diz minha tia Mariana que vovó, em plena década de trinta, dizia aos pais sem pormenores que Adão e eu vamos ao hotel resolver nossas coisas e vocês não têm nada que ver com isso. E, mesmo que quisessem ter a ver com isso, vovó não deixaria; sempre foi uma mulher muito à frente de seu tempo. Tia Alice conta que, ainda sem se casar, Alaíde foi a São Paulo com Adão e que, por causa disso, o pai quase teve uma síncope vaso vagal e parou de falar com a filha. Pai e filha só voltaram a se falar quando a filha foi mãe. E Alaíde foi mãe quatro vezes, cada uma em uma cidade do Brasil.
Contaram-me que quando os soldados foram em casa para prender Adão, só estava Alaíde. Ela os deixou entrar, disse para que esperassem seu marido na casa — mas que só entravam deixando as armas do lado de fora: Em minha casa, não entram armas. Os brutamontes encostaram suas armas no hall e minha bisavó deixou-os entrar, serviu-lhes café, conversou com eles até que seu marido estivesse de volta, para ser preso. Imagino a cena se passando no apartamento da Visconde de Pirajá, apesar de não saber onde ela morava na época. Aliás, todas as histórias imagino naquele apartamento, pois não conheci outro. Imagino os soldados fardados batendo com força na porta. Minha bisavó, sempre muito bem arrumada com seus colares de pérola, abrindo com calma, escutando os trogloditas pacientemente, fazendo-os perder a compostura de homens da falsa lei ao obrigá-los a deixar as armas do lado fora e os convidando para tomar café. Vejo-os sentados no sofá da ampla sala, segurando com desconforto as xícaras de porcelana. E, sentada à frente, Alaíde os observaria a tomar seu café e elogiar seu gosto; e tentaria manter um mínimo de conversa com aqueles soldados, tentando encará-los como homens, visitas comuns.
Adão foi preso, exilado, perseguido. Um fugitivo durante anos a fio. Escondia-se em cidades do interior do Brasil como médico itinerante, agora sendo chamado por seu segundo nome, Manuel. Atendia a todos que precisavam, cobrando pouco, se não nada, àqueles que não tinham condições. Contam todos que o conheceram que meu bisavô era tanto um médico quanto um político maravilhoso. Não é à toa que há um hospital no Rio de Janeiro com o nome dele.
Nunca me esqueço, porém, de uma aula de história em que falávamos da ditadura no Brasil. Fui até a mesa de meu professor e disse com o orgulho que me ensinaram a ter: Meu bisavô é Adão Pereira Nunes. Ele me olhou confuso e me perguntou: Quem?. Repeti: Adão Pereira Nunes, mas ele não sabia quem era. Expliquei-lhe que foi um político importante, ajudou a fundar o partido trabalhista com Brizola, tem até um hospital no Rio com o nome dele… Mas meu professor não sabia quem era, disse que iria pesquisar. Minha vida inteira, ensinaram-me que o que carrego em meu sangue é uma importante parte da história de meu país, mas nem meu professor, que estudara sobre o assunto, sabia quem fora Adão.
Foi quando me dei conta que nem eu sabia, ainda não sei. Sei que foi exilado, que tinha amigos no Chile e em outros cantos da América Latina. Sei que era um homem duro e que mal parava em casa. Ele vivia para seu país, deixando muitas vezes sua família na mão. Sei que traiu Alaíde e que ela descobriu as cartas de sua amante. Veja, minha irmã, que beleza! Como é bonito o sentimento que Manuel causa nessa mulher. Sua irmã não entendia: Ele está te traindo, Alaíde! Mas tia Alice disse que minha bisa apenas balançava a cabeça e lamentava sobre a irmã: Ela não tem alcance.
O pouco mais que sei sobre Adão são duas ou três histórias que contam meus tios quando decidem falar do passado. O mesmo acontece com Alaíde — eu mesma só conheci a bisa Lalá. Tudo que sei é o que me contam do que corre em minhas veias. O resto é minha invenção.
***
Ter saído do Rio de Janeiro me afastou e me aproximou de minha família na mesma medida. Foi porque eu não estava lá que toda vez que ouvia alguém contar uma história sobre bisa Lalá, tia Nina ou tio Flávio, eu prendia aquelas palavras contadas com tanta casualidade dentro de uma caixinha preciosa em minha cabeça. Havia em mim essa espécie de fome desesperada de saber de onde eu vinha, de conhecer o Rio de Janeiro como quem nunca havia ido embora conhecia. Queria saber o nome das ruas na mesma medida que queria saber que foi ali, numa festa no Parque Lage, que meus pais se reencontraram depois de um ano sem se ver e passaram a noite inteira conversando sobre a existência ou não existência de uma cadeira que estava na frente deles. Queria saber o que devia ser familiar para mim. Eu precisava saber o que aconteceu depois que Adão e Alaíde se viram pela primeira vez na praia de Icaraí, mas não queria perguntar a ninguém.
Havia algo nas perguntas que faziam com que as histórias não parecessem naturais. Minha tia Biga tentou me contar como conhecera seu atual marido quando perguntei, mas nunca gravei a história. É claro que Biga me contou a verdade, não haveria motivo para ela mentir sobre isso a essa altura de nossas vidas, mas tudo parecia tão direto — era uma simples resposta — que não me convenceu o suficiente, mal lembro do que me contou. Esse é um dos segredos da memória: ela tem que emergir como algo natural, não pode ser escavada por pessoas que não sabem as perguntas certas. Aprendi isso cedo, apesar de às vezes ainda tentar uma ou outra abordagem questionadora quando o café ainda está quente ou a comida está sendo preparada. Há algo nesses momentos que dão uma abertura que pode ser aproveitada com uma pergunta específica o bastante para chamar a memória, mas geral o suficiente para não haver uma resposta que pode ser elaborada em apenas uma frase. A comida, afinal, é o veículo do amor — ou pelo menos foi isso que bisa Lalá disse a minha mãe em uma de nossas idas ao Rio.
Mas ainda assim não é a mesma coisa das vezes em que nada foi perguntado. Quando, em alguma das férias de verão que passávamos como visita, entre um grito de mate limão gelado e a oferta de uma canga do Romero Britto, tia Mariana virou para minha mãe e perguntou com seu sotaque arrastado: PB, você lembra daquele dia em Cabo Frio que você levantou em cima da mesa gritando por uma Coca-Cola?
Minha mãe, é claro, não lembrava. Ela nunca lembra de nada, ela mesma diz. Mas tia Mari sempre lembra, especialmente quando o sol está se pondo no horizonte ou o jazz toca alto na sala.
Minha tia, como sempre, ficou indignada: Como assim você não lembra, PB?! O bar ‘tava lotado e você pediu uma Coca-Cola pro garçom e ele nunca trazia! Nesse momento, tia Mari começou a imitar minha mãe pedindo timidamente uma Coca para o garçom repetidas vezes. Até que mamãe não aguentou mais e subiu em cima da mesa e berrou: SE ALGUÉM NÃO ME TROUXER UMA COCA-COLA AGORA, EU VOU – mas então eu me perdi nos gestos que minha tia fazia debaixo da barraca na praia e na cara horrorizada de minha mãe. Eu via o bar-restaurante lotado de jovens conversando alto, tanto em pé quanto sentados. Minha mãe um pouco isolada das conversas de seus irmãos e primos, todos sentados em uma mesa grande de madeira rústica, mesmo que isso não condiga com um bar de praia, a iluminação indireta do cenário que construí inteirinho na minha cabeça. Então, minha mãe não aguentaria mais e levantaria abruptamente no banco em que estava sentada, subiria na mesa e começaria a berrar.
Minha mãe, como sempre, continuou sem lembrar de nada: Você lembra de cada coisa, Mari. Minha tia, no começo, ficou indignada com a falta de memória da minha mãe de um dia tão histórico quanto aquele, mas depois já dava risada do acontecimento e de tantos outros junto com minha mãe. Eu, deitada na canga ao lado delas, ri também e guardei aquela memória junto a tantas outras que compõem o que é pra mim a formação de minha família. Mais tarde, quando todos dormissem, eu revisitaria aquele causo, tentando a encaixar em minha linha do tempo — antes dos dias pintando no parque Lage, depois dos carnavais na contramão da banda de Ipanema com vovó —, tentando chegar um pouco mais perto do que é a minha própria história.
***
Demorei um tempo para entender minha genealogia. Decidi ainda pequena que todas as pessoas que tinham mais de trinta anos quando as conheci estão na categoria “tios e tias”, enquanto as que tinham menos são minhas primas e primos. As únicas exceções, obviamente, são meus pais, meus avós e minha bisavó.
Até hoje não sei se aprendi bem; minha família é grande e confusa, fica difícil ter certeza. É fato que Adão e Alaíde tiveram quatro filhas — Nina, Abigail, Ana Rosa e Sônia, em ordem de nascimento. A mais velha não casou nem teve filhos. Tia Alice conta que Adão colocava Nina no colo e dizia na mesa de jantar: Essa aqui não vai casar, ela vai passar a vida inteira cuidando do papai. Imagino os convidados, homens importantes de terno e gravata e suas esposas com colares de pérola, rindo do comentário e Nina, ainda criança, sem entender muito bem, mas sorrindo. E, de alguma maneira, naquele sorriso havia a assustadora confirmação do que não sei se encaro como mandamento ou anunciação de seu futuro. Dizem que Nina era estonteante, assim como todas as suas irmãs. Ela era inteligentíssima e tinha todos os homens do Rio de Janeiro aos seus pés. Quando a conheci, minha tia Nina era uma mulher gorda, quase careca e alcoólatra. Eu gostava dela, mas, em tardes piores, sua figura se tornava assustadora e eu tinha muito medo dela, apesar de nunca falar sobre isso com ninguém. Eu apenas saía da sala e ia encontrar algo ou alguém com quem brincar.
Abigail casou, ou pelo menos se amancebou, com quatro homens pelo que eu saiba, tendo três filhos — Antonio, Santiago, e Mariana —, nenhum do mesmo pai ou nascido no mesmo estado. Sei que ela teve Mariana no México, que um de seus parceiros foi seu colega de guerrilha e que seu atual marido a conheceu quando ainda trabalhavam com cinema. Abigail lutou contra a ditadura militar, foi torturada e exilada, mas nunca contou para ninguém o que fizeram com ela. Sei por causa de um post no Facebook, no entanto, que ela conheceu Che Guevara em algum momento de seu exílio, mas na época, infelizmente, ele namorava a vizinha. É difícil conversar sobre o passado com ela porque é preciso saber fazer as perguntas certas, mas eu não sei quais são, acredito que nunca vá saber.
Ana Rosa, acho, casou apenas uma vez, com tio Flávio, um artista plástico de dois metros de altura que foi quem ensinou minha mãe a pintar. Ana Rosa e Flávio também tiveram quatro filhos — Manoela, Pedro, Marcelo e João. Tia Ana Rosa foi diagnosticada com esquizofrenia quando já era tarde demais. Era dela que eu tinha mais medo, porque a conheci depois que enlouquecera. Ela falava de um jeito estranho que não sei descrever, eu tinha nervoso, mesmo sem entender por quê.
Minha avó casou duas vezes, mas só teve filhos com meu avô, Roberto. Sei que ele a traía e aprendi que ela também teve seus casos. Um dia, meu avô desistiu de tudo e largou seu trabalho no banco, a mulher e os três filhos para virar pescador em Porto Seguro. Tia Biga fez um filme sobre essa história, hoje o usamos de piada contra meu avô. Minha avó é a única que não consigo dissociar a pessoa que conheci da pessoa das histórias que ouvi. Consigo vê-la vestida de anjo na contramão de Ipanema com seus filhos pequenos, trabalhando na creche que montou, morando em Paris, comprando um McLanche Feliz para mim e me sentando numa mesinha de bar para que ela tomasse sua caipirinha. Consigo ver ela acordando antes que todas numa manhã no apartamento da Visconde de Pirajá, fazendo seu café e depois sentando-se na poltrona um pouco cansada. Consigo vê-la fechando os olhos e sorrindo, feliz em poder descansar em paz em sua poltrona preferida e, então, nunca mais acordando, se dando o direito de morrer antes de enlouquecer como suas irmãs.
Imagino tia Nina descobrindo que minha avó morreu. Imagino tia Nina indo até a sala perguntar sobre o café e encontrando minha avó dormindo no sofá. Tia Nina tocaria no ombro de sua irmã, ou talvez no braço — ela ainda estaria quente, minha vó era muito quente — para acordá-la, mas vovó continuaria dormindo. Não sei se Nina acharia que vovó estava fingindo dormir, mas ela gritaria por sua mãe quando descobrisse a verdade. Ela gritaria desesperada e só quando minha bisa aparecesse no corredor, Nina começaria a chorar aquele choro feio de rosto vermelho e baba escorrendo pela boca.
Talvez tenha sido bisa Lalá que descobriu que minha avó falecera. Talvez minha prima tenha me contado isso no dia do enterro, mas não lembro direito por não querer imaginar como seria uma mãe encontrar uma filha — sua filha mais nova — morta em sua sala. Talvez eu tenha escolhido esquecer, assim como escolhi esquecer muito do que vi e ouvi de minha família. Algumas coisas, no entanto, são imagens claras demais para editar.
***
Todos os meus tios tiveram filhos, por exceção de dois que também enlouqueceram. Tiveram agregados, primos que só vim a descobrir que existiam adulta, brigas e reconciliações. É difícil acompanhar tudo. Mas em um verão numa praia do Sul, hospedada com tio Ro, devorei Cem Anos de Solidão e, naquele momento, soube que os Buendía eram também os Pereira Nunes — mesmo que quase nenhum de nós carregue o sobrenome hoje em dia. Tudo pareceu mais claro. Nosso sangue, real e ficcional, vem da mesma estirpe e minha Macondo é o Rio de Janeiro dos anos 30, 50, 80, 94, o ano em que nasci.
Minha primeira infância foi catando jasmins no caminho da creche e chamando atenção do cachorro do vizinho, Chinelo, que morava no quintal do térreo. Toda memória da minha vida no Rio são episódios confusos e raros de algo que jurei a mim mesma que lembraria, mas não soube bem cumprir a promessa. Tudo são pequenos capítulos do que criei para mim.
Eu cresci de verdade na casa vermelha, em São Paulo. Cresci acordando com os sabiás, com tardes ensolaradas deitada na pequeníssima varanda conversando com minha melhor amiga, com muitas horas no computador, com as noites deitada na rede conversando com meus pais ou meus amigos enquanto o Cruzeiro do Sul me olhava lá do alto, tomando conta de mim.
Talvez, um dia, um parente que ainda não existe misture minha história e coloque os jasmins e sabiás na mesma árvore. Talvez a casa vermelha mude para a Davi Campista ou o prédio carioca suma por completo e o Chinelo se torne o cachorro dos meus vizinhos atuais. Talvez exista uma outra casa, mais mitológica que a vermelha, uma casa como o apartamento de minha bisavó na Visconde de Pirajá. Talvez algo que eu ainda vá viver vire história no nome da minha prima ou eu vire a protagonista de uma experiência da minha mãe.
O que sei é que tudo que é mundano vai ainda se embaralhar e todos nós, vivos ou mortos, nos tornaremos pura e simples ficção. Talvez essa seja a cruz que levam todos aqueles que tendem ao Sul do Equador, e todas as nossas vidas sejam também uma história de García Márquez. Mas minha bisavó nasceu em 1914. Mais de cem anos se passaram, a solidão acabou: todos nós temos aqui e agora uma segunda chance.
Clara Browne estudou Letras na Universidade de São Paulo e hoje é escritora na internet.
Ilustração de Carolina Nazatto.
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