“Apresento um tipo de identidade que é sempre negociada na sociedade brasileira — me chamam de moreninha, afirmam que não sou negra — ‘Um defeito de cor’ foi um meio encontrado para buscar por minhas raízes negras e do entendimento da história do negro no Brasil”. Tomo as palavras de Ana Maria Gonçalves como ponto de partida para compreender as motivações da autora em escrever o romance, considerado uma das principais obras da literatura brasileira contemporânea.
Publicado em 2006, o livro é o segundo romance da autora mineira. Gonçalves conta que, a partir de uma experiência de “serendipidade”, decidiu abandonar suas atividades em agências de publicidade para se dedicar a um velho sonho: viver de escrever.
A obra embaralha ficção e realidade — é resultado de um extenso trabalho de pesquisa realizado por meio de fontes preciosas, tais como historiadores, escritores, professores, sociólogos e antropólogos — e essa pesquisa é minuciosamente desdobrada em mais de 950 páginas.
Um defeito de cor é narrado de forma apaixonante por Kehinde, ou Luísa Andrade da Silva (nome de batismo brasileiro). A história começa em sua infância, em 1810, no Reino do Daomé (onde hoje se situa o Benim, na África), quando, aos oito anos, é capturada por mercadores de escravos e enviada ao Brasil, mais precisamente para a Bahia.
A narrativa abarca cerca de oito décadas, da infância à velhice, período em que Kehinde realiza inúmeros feitos — entre eles, a compra da sua própria liberdade. Todavia, há algo doloroso que a mantém presa: a busca incessante por seu filho que foi vendido como escravo quando ainda era adolescente. Seu ex-marido, um português bon-vivant, entrega o próprio filho em um mercado de negros para saldar uma dívida do jogo. Essa é a trama central dessa obra que pode ser em pensada a partir de alguns círculos concêntricos:
Uma autobiografia de Kehinde
“São coisas difíceis de dizer, porque também são difíceis de lembrar”— confessa Kehinde. É a forma que encontra para expressar o quão aflitivo pode ser ter passar a própria vida a limpo — porque é disso que também se trata o livro. Um diário, ou ainda, uma longa carta de pedido de desculpas de uma mãe, que precisa preencher as lacunas dessa separação, que busca acomodar a dor da violenta ausência.
Há certos trechos desse “diário” que são difíceis de serem lidos, especialmente os que retratam os castigos que os escravos eram submetidos na época. Algumas passagens me causaram reações físicas e emocionais de mal-estar, e precisei interromper a leitura em alguns momentos.
A história pela perspectiva da negritude afro-brasileira
Embora a própria autora não o defina dessa forma, Um defeito de cor também pode ser visto como um romance histórico, uma vez que descreve o período escravagista, bem como o início do pensamento abolicionista. A independência do Brasil, segundo Kehinde, era de grande interesse de seu grupo, pois “os negros acreditam que se o Brasil se libertasse de Portugal, do qual era quase escravo, nós também poderíamos pedir nossa liberdade”. O assunto estava presente nas rodas de conversas entre figuras importantes da época, entre elas o “sinhô” José Carlos, dono da primeira fazenda para a qual a Kehinde foi enviada. E é ele que apresenta a questão da liberdade de maneira direta aos negros: “O sinhô mandou que o capataz Cipriano explicasse que a liberdade do Brasil nada tinha mudado para os escravos, que os pretos não eram um país, que não pertenciam de fato a nenhum país e, quando muito, alguns poucos poderiam ser considerados gente”.
Há outros trechos importantes, entre eles, se destaca a Revolta dos Malês (1835). Kehinde e pessoas próximas a ela, como o professor Fatumbi, ocupam um papel importante nesse evento — da elaboração do plano a execução.
Um retrato dos costumes e da cultura africana
Há relatos fascinantes, especialmente os relacionados às diferentes culturas e costumes religiosos do continente africano. A maneira com que Kehinde experimenta a apresentação de uma roda de capoeira é um deles: “O Mestre Mbanji disse que capoeira é como uma conversa, um faz uma pergunta de supetão e outro tem que ter a resposta pronta e ganha quem faz a pergunta que o outro não consegue responder (…). O Mestre Mbanji chamou isso de mandinga, coisa que o branco não entende, que não nasce com ele, só com preto. Porque a mandinga também é a humildade, é fazer-se de fraco quando não é (…).”
O não-pertencimento
O sentimento de não-pertencimento experimentado por Kehinde está presente em toda a narrativa. A obrigatoriedade de assumir um novo nome ao chegar às terras brasileiras (era proibido de usar o de batismo africano), ter que se converter a uma religião que não é sua, além de submeter a viagens constantes, tanto entre continentes, como dentro do próprio Brasil, contribuem para essa sensação: “aquela fuga não era justa, nada era justo, principalmente os brancos irem até a África nos separar de nossas famílias para depois não nos quererem mais, desejando nos ver longe, de volta a um lugar do qual nem nos lembrávamos direito. Livres, nós não servíamos para mais nada (…).”
O retorno para Uidá, na África, também apresenta um novo conflito: Kehinde descreve como os “brasileiros” (africanos que retornavam do Brasil para a África) levam uma vida completamente diferente e separada dos seus povos de origem, além do preconceito mútuo que permeava as relações entre esses grupos.
A maternidade
A maternidade, presente em vários momentos do livro, é descrita pela perspectiva da neta: “lamento não ter aproveitado mais a companhia da minha vó, de não tê-la visto e conhecido a não ser através dos meus olhos de criança”; de filha — e o desejo de ser e agir diferente: “A Aina lembrou que, por ser mãe de ibêjes (gêmeos) eu poderia dançar no mercado, como fazia minha mãe (…) mas cheguei à conclusão de que seria uma das últimas alternativas, pois sentia vergonha (…), eu me sentia superior, mais capaz do que ela”; e, sobretudo, como mãe.
Kehinde reflete constantemente como teria sido a vida do seu filho vendido (assim como ela na infância), o que ele sentia e se um dia seria capaz de perdoá-la. Existe a culpa por não estar fisicamente presente quando a tragédia aconteceu e seu “diário” volta para apoiá-la a lidar com esses sentimentos. Em uma de suas viagens pela busca do filho, a narradora chega até o Rio de Janeiro. Lá, conhece o senhor Mongie, dono de uma livraria, de quem se torna amiga: “Passei horas agradáveis com o Senhor Mongie, que também era curioso para saber da minha vida, das minhas lembranças da África, da Bahia e do Maranhão, e disse que dariam um livro. Vai ver que ele tinha razão, porque acho que é exatamente isso que estou fazendo agora, um livro só para você”.
São várias as camadas possíveis para ler, interpretar e nos reconhecer – como povo de origem brasileira — em Um defeito de cor. É intrigante — e desconfortante — perceber como aspectos relacionados a preconceito, desigualdade e disputas de interesses são heranças que nos perseguem, se atualizam e seguem presentes em nosso dia a dia.
Ana Luiza Negrini é graduada em Comunicação Social e aluna do Curso de Formação em Psicanálise do Centro de Estudos Psicanalíticos.
Imagem: colagem da capa de Um defeito de cor (Editora Record).
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