Baseado em uma história real. Pela sinopse da série A vida e a história de Madam C.J. Walker (2020), disponível na Netflix, a espectadora e o espectador possivelmente se sentirão atraídos por uma opção de entretenimento com um toque de realidade.
“Uma afro-americana que venceu a pobreza, construiu um império de produtos de beleza e se tornou a primeira milionária pelo próprio esforço”. Realmente, nós negros brasileiros, cerca de 54% da população, uma maioria há tanto tempo silenciada e invisibilizada na cultura midiática e audiovisual do país, estamos sedentos por representatividade. E o mercado percebeu que não é mais possível ignorar um público massivo e exigente, não por acaso os catálogos de streamings oferecem diversas produções onde negros são destaque.
A minissérie, dividida em apenas quatro episódios (não muito longos) é baseada na biografia escrita por A’Lelia Bundles, descendente da empreendedora Sarah Breedlove —reconhecida por Madam C.J Walker, que no início do século 20 produziu e comercializou produtos para tratamento estético de cabelos crespos, e se tornou a primeira mulher milionária dos EUA, sendo até listada no Livro dos Recordes por esse feito.
A narrativa, permeada por situações que expõem racismo, machismo, traição, violência, além de questões controversas, como a suposta rivalidade entre Walker e Addie, uma mulher negra de pele mais clara – fato negado pela autora da biografia, apresenta uma óbvia mensagem de superação. Se ser mulher negra na diáspora até hoje é difícil, se ainda nos subestimam e nos desacreditam, imagine em um período tão recente de pós-abolição no continente.
É encorajador e inspirador ver uma mulher preta criar, produzir e ser bem sucedida. Não à toa o título original da produção no EUA é Self-made: inspired by the life of Madam C.J Walker. A tradução para o português brasileiro, porém, retirou o conceito “por si mesmo”, e isso já é revelador de muitas diferenças culturais entre os dois países.
Permeada pelo espírito liberal norteamericano, a série reforça a ideologia da meritocracia, de que basta acreditar e se esforçar que você pode se tornar milionária, de que dificuldades não podem servir de desculpa para possíveis fracassos. Além disso, com viés personalista, Walker se apresenta como uma mulher extraordinária, à frente do seu tempo, o que, reconhecidamente ela foi, porém e todas as outras mulheres negras? E se não tivermos a mesma força e coragem?
Um produto audiovisual tem poder para nos motivar, mas também nos distanciar dos modelos impostos. O fato real se distancia da ficção. E esse é o risco de assistir o seriado fora de seu contexto original. Produzida por negros e para negros norteamericanos, incluindo a atriz Octavia Spencer, vencedora de Oscar que protagoniza Madam Walker, e LeBron James, ídolo do basquete, a minissérie dialoga com a cultura da comunidade negra dos EUA, uma minoria que sempre precisou se fortalecer “por si mesma”.
Conceitos como blackmoney estão sendo importados há pouco tempo por aqui no Brasil. Nosso histórico de miscigenação nos permitiu outras estratégias de luta e resistência. Nossas práticas de se aquilombar são mais coletivas e menos individualistas. É sempre bom ver a trajetória de uma mulher preta vencedora (não deixem de assistir), porém não precisamos acreditar que este é o único caminho possível. E que bom, pois somos muitas e diversas.
Lívia Lima é jornalista, graduada em Letras e mestre em Estudos Culturais na Universidade de São Paulo. Integra a Agência Mural de Jornalismo das Periferias e é co-fundadora do coletivo Nós, mulheres da periferia. Animadora Cultural do Sesc São Paulo, atualmente é responsável pela programação de Audiovisual e Tecnologias e Artes do Sesc Belenzinho.
Imagem: cena de ‘A vida e a história de Madam C.J. Walker’ (2020).
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