Representação e identidade abolicionista em Machado de Assis
A corte brasileira instaurada no Rio de Janeiro do século 19 contava com o escritor Machado de Assis, considerado, já naquela época, gênio da literatura, ilustre criador da Academia Brasileira de Letras, Ministro de Estado, senhor de escrita elegante, comparada aos escritores europeus. Todos os adjetivos atribuídos ao bruxo do Cosme Velho são reproduzidos em nosso pais até hoje, acrescido de outros, como “maior escritor brasileiro” e “um dos escritores mais criativos da literatura”, segundo o crítico literário Harold Bloom em Gênio: os 100 autores mais criativos da história da literatura (2003). Reconhecido mundialmente pelo trabalho sobre os cânones da literatura mundial, Bloom destaca Machado, único brasileiro de sua lista, como o número 25 entre os 100 mais criativos escritores, o que trouxe muito orgulho para o cenário intelectual brasileiro. Bloom também apresentou outra informação sobre Machado, menos bem recebida por parte dos intelectuais e da elite do nosso país: a afrobrasilidade do escritor — “escritor afro-brasileiro” e “maior literato negro surgido até o presente”, foram as palavras proferidas por uma autoridade do cânone mundial, que estremeceram parte da crítica literária conservadora do Brasil.
É preciso destacar que Bloom não foi o primeiro. Em Machado de Assis: ficção e história (1986), publicado quase 20 anos antes, Jonh Gledson já fala de um Machado de Assis negro, chamando atenção para a temática abolicionista nas crônicas machadiana. A genialidade do trabalho literário do “mulato” e “filho de escravo”, como Machado era chamado à boca pequena na corte carioca de sua época, foi parcialmente reconhecida por diversos críticos e historiadores de literatura, como Silvio Romero, José Verissimo e Araripe Junior, contemporâneos do escritor e homens de ideias conservadoras. Mas esses pensadores não deram muito valor aos escritos machadianos que abordavam a condição das pessoas negras escravizadas.
Mesmo grandes críticos como Antônio Candido, em História da literatura brasileira (1956), e Alfredo Bosi, em História concisa da literatura brasileira (1970), que reconhecem e louvam a verve literária excepcional de Machado de Assis, não mencionam a negritude e tampouco a vasta dedicação do escritor ao tema da abolição, com exceção dos apontamentos sobre o tema realizados por Roberto Schwarcz em Ao vencedor as batatas (1977) e Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis (1990), em que o estudioso fala sobre essas questões, mas com um viés contextual da obra machadiana e não como traço de subjetividade.
Essa discussão surge timidamente em meados de 1990 e ganha corpo nos anos 2000 com os estudos acadêmicos sobre o Machado de Assis afrodescendente, consciente de sua identidade negra e não alienado do seu tempo. Destaco duas obras relevantes para essa nova visão do autor: Machado de Assis afro-descendente: escritos de caramujo (2009), de Eduardo de Assis, e Machado de Assis e a escravidão (2010) organizado por Gustavo Bernardo, Joachim Michael e Markus Schäffauer. O primeiro livro apresenta uma antologia de textos machadianos (poemas, crônicas, crítica teatral e trechos de romances) que abordam a questão da escravidão e/ou das pessoas negras na época do escritor. O segundo é uma coletânea de textos acadêmicos, produto de um colóquio dedicado à obra do autor, realizado na Universidade de Hamburg, na Alemanha, em 2008, como parte das comemorações do “Ano de Machado”, em que se comemorava o centenário de morte do escritor. Em doze artigos, pesquisadores brasileiros e alemães tratam da relação de Machado com a questão escravista em vários momentos de sua obra literária.
Na esteira dos estudos sobre o posicionamento político-ideológico do autor em relação à escravatura brasileira, destaca-se a tese de doutorado de Ana Flávia Cernic Ramos: As máscaras de Lélio: ficção e realidade nas “Balas de Estalo” de Machado de Assis (2010), em que a autora apresenta um Machado de Assis militante pré-abolicionista e atento às questões políticas do Brasil.
A pesquisadora destaca os embaraços sofridos por Machado ao assinar textos nos jornais da época, o que justifica a adoção do pseudônimo Lélio — atitude comum entre os escritores da época. Por meio do caráter híbrido próprio da crônica, o autor usa e abusa de sua pena literária e satírica para denunciar o sistema escravocrata do Brasil. Ele faz isso a partir de um personagem teatral — ora, nada mais apropriado para a situação do que Lélio, figura recorrente nas Commedia dell‘Arte italianas do século 16, que aparece também nas comédias de Molière.
Machado vai assumir nas crônicas um tom jocoso, falará sobre política num tom farsesco, como também vemos em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e ambíguo, como em Dom Casmurro (1899). Chamo atenção para essas marcas machadianas que denunciavam sua autoria nas páginas da Gazeta de Notícias, o que levantou suspeitas de que a pena por trás de Lélio seria de Machado. Alguns estudos em torno desse personagem/pseudônimo indicam que ele queria mesmo ser revelado.
O escritor publicou suas crônicas no Gazeta de Notícias entre os anos de 1883 e 1886, período de transformações políticas no cenário brasileiro em vários aspectos, transição do Império para a República, implementação da Lei do Ventre Livre (1871) e da Lei dos Sexagenários (1885). A relação de Machado com essas leis era de ordem direta. A fiscalização da lei, bem como o cadastramento dos nascidos a partir daquela época, ficava a cargo do Ministério da Agricultura. Um levantamento histórico comprova o engajamento do escritor, que era funcionário desse Ministério, em fazer cumprir a lei mesmo quando os senhores de escravos não queriam nem ouvir falar dela. “Machado de Assis, como chefe da segunda seção da Diretoria da Agricultura, foi peça fundamental na luta cotidiana pela aplicação correta da lei. Machado lidava diariamente com questões sobre a aplicação do fundo de emancipação e da realização da matrícula”, escreve Ana Flávia Cernic Ramos.
No caso da Lei dos Sexagenários, Machado acompanhou o debate na câmara dos deputados e escreveu algumas crônicas no Gazeta de Notícias. Convido vocês a fazerem a leitura dessas crônicas, na seção de anexos da tese acima referida, entre as páginas 374 e 408. Apreciem e tirem suas conclusões.
Mirando o horizonte histórico atrás de nós e voltando o olhar para o espelho presente, a sensação é de que, embora tenhamos avanços e recuos, o século 21 ainda não conseguiu quebrar obstáculos ligados à gênese étnica, social e histórica de Machado. O debate em torno do nosso escritor mais lido, festejado e cultuado fica prejudicado por um espaço de indeterminações e inferições sobre seu posicionamento frente ao crime da escravidão. Conhecer a obra e o pensamento de Machado de Assis em sua integridade é nosso direito inalienável. Reconhecer nosso caráter misturado, nossa herança afro-ameríndia é imprescindível para autoestima do nosso povo.
Reler as entrelinhas machadianas, com uma lupa sobre a sua ironia fina, é um gesto de valorização da memória do povo brasileiro. A literatura é portadora dessa memória: ela traz o passado para o presente, permite reavaliar o lugar ocupado pelas pessoas negras nas literaturas produzidas no Brasil, se encarrega pela construção de novas formas de existência, através dos textos ficcionais, para além dos tempos históricos.
Sejamos Narciso de nossa cultura: reconhecer que também somos Machado, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Maria Firmina dos Reis, Conceição Evaristo, Luiz Gama, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Esmeralda Ribeiro, Patativa do Assaré, Cecilia Meireles, Sergio Vaz, Dandara, Ailton Krenak, Lima Barreto, Bispo do Rosário, Chiquinha Gonzaga, Abdias do Nascimento, Glauber Rocha, Ruth de Souza, Jorge Amado, Lélia Gonzalez, Dom Salvador, Gonzagão, Sônia Guajajara, Tom Jobim, Marielles, Chico Buarque, Caymmi, Gilberto Gil, Manuel Bandeira, Milton Santos, Carolina de Jesus, Caetano, Elis Regina, Joãos, Marias, Terezinhas e Zulmiras, e tantas outras subjetividades que nos constituem. Um Brasil de Zumbi, Guaranis e Portugueses. Nosso inteiro é repartido, essa integridade multifacetada do brasileiro precisa ser revelada, as personalidades precisam ser nomeadas, isso só é possível por meio da revisão da nossa história, buscando o princípio da verdade de quem somos e onde queremos chegar.
Machado de Assis tinha consciência do seu projeto literário, esse ensaio aponta apenas algumas das muitas entrelinhas deixadas por ele. A tarefa machadiana, e a nossa, requer sensibilidade para ir além das dimensões já conhecidas. Cabe a nós buscar o que está encoberto pelas brumas.
Tiago Souza da Cruz é professor de Língua Portuguesa e Literatura e mestrando em Literatura e Vida Social na Universidade Estadual Paulista (Unesp).
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