1.
Eu estive com Elvira Vigna uma única vez, durante uma tarde ensolarada de dezembro de 2016. Foi na quinta-feira, segundo dia do ciclo de painéis da Semana do Livro de Pernambuco, evento realizado em minha cidade natal, Recife, que tinha como intuito discutir as narrativas possíveis do presente. Reflito sobre esse recorte de temporalidade. O presente, confusão monumental posta entre as funções cognitivas do sujeito e os mecanismos sociais, a etapa que nos pretende como peixes em corais — o acaso unindo dois pontos da natureza de forma sombria, mortífera, dolorosa, assustadora e, ainda assim, banal, simples, direta. Em sua obra, Vigna aproxima a literatura de tal imprevisto que acontece no fundo do mar: encontro entre o que, às vezes, dilacera e o que ficou preso em um movimento de iminências; por dizer, por fugir e, também, por ficar.
2.
Georges Didi-Huberman, em O que nos vemos e o que nos olha?, pensa a experiência visual a partir de uma inquietude com o vazio. Diante da imagem, duas ações são possíveis. Uma será protagonizada pelo homem da crença— alguém que vai além do que se tem em sua frente — a outra, trata-se do homem da tautologia, o que vê apenas o que é visto, nada para mais. Escreve Vigna em Como se Estivéssemos em um palimpsesto de putas (2016), seu último romance, lançado pela Companhia das Letras: “João tem, na época do noivado, um topete fixador. Isso está documentado. Sei porque me contou. Não tudo. Bem pouco, na verdade. Mas vejo. Ele, na janela de um ônibus que passa a toda, a janela fechada para não desmanchar o topete.” Gosto de associar os romances da escritora carioca com experimentos da imagem. No contexto de Didi-Huberman, a partir de breve reflexão, narradores e personagens deslocam-se entre as duas atividades, crença e tautologia. No trecho acima, os documentos e as falas, talvez, não sejam suficientes. Então, aparece a sentença: “Mas vejo”. A visão legitima, decreta, impulsiona a palavra. Afinal, o que nos vemos e o que nos olha? Uma questão desafiadora que permanece ao longo de cada livro assinado pela escritora carioca.
3.
Elvira Vigna dedicou boa parte de sua fala, durante o evento, à memória e aos escritos de Paul Ricoeur, para o qual o mecanismo da lembrança é referente supremo do passado. Durante o processo de escrita de Como se estivéssemos em um palimpsesto de putas, o artifício memorialístico e os escritos de Ricoeur acompanharam a escritora. O reconhecimento, termo citado pelo francês (conhecido na obra de Henri Bergson), acontece quando o que foi lembrado identifica-se com o pretérito e, simultaneamente, oferece algum tipo de marca temporal. O romance foi resultado, em certa instância, do que Vigna ouviu, apreendeu de conversas, ficções e subjetividades do outro. O seu palimpsesto traz o signo do reconhecimento, do instante em que o presente — os peixes e os corais— rende-se ao anterior, às pedras aterradas sob tanta areia.
4.
Antes do início do painel — Vigna participou de um encontro comigo e com as mediadoras recifenses do projeto Leia Mulheres —, conversamos, nós duas, sobre a imprensa, o papel da crítica cultural brasileira contemporânea. Sentamos em uma escada de mármore, no jardim do Museu do Estado de Pernambuco. Eu, de vestido florido; Elvira, de blusa verde, também florida, calça preta, pressa para ir embora. No seu discurso, algo de pragmático ressoava. Em paralelo, certa nostalgia de um tempo longe, apartado de qualquer verão. O jornalismo foi a sua casa da escrita por anos e, naquela conversa, percebi o distanciamento de alguém que sabe detalhes importantes do porvir. Em julho deste ano, entendi a sua linguagem, bem como a fuga para o hotel no minuto em que terminamos o debate. Entre a imaginação e os fatos, muita coisa se perde e se reorganiza. Aqui, entrego à fragilidade da memória os detalhes de uma tarde de dezembro significativa para mim. Peixes, água salgada, putas, escola francesa de interpretação da memória, da imagem, a dedicatória sobre encontros, a partida súbita. Você faz falta, Elvira.
Priscilla Campos é jornalista, crítica literária e mestranda em Teoria da Literatura na Universidade Federal de Pernambuco.
Ilustração de Carolina Nazatto.
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