Querido amigo,
Você lembra de quando tínhamos uns catorze, quinze anos e você veio comer pizza na minha casa? Sei que tiveram muitas vezes, mas estou falando daquela em que estávamos só nós dois. Depois da pizza, fomos conversar na rede — e, por conversar, quero dizer ficar em silêncio com nossos pensamentos, porque aquela era a época em que mal conseguíamos falar quando estávamos juntos, eu mal conseguia dizer o seu nome. Você me perguntou se eu queria escutar música, eu disse que sim. Você me ofereceu seu fone, mas estávamos longe. Então, eu levantei e fui pra rede em que você estava. Deitei do seu lado, coloquei o fone e tentamos nos ajeitar. Meu pé estava frio, você comentou. Eu pedi desculpas e comecei a me ajeitar de um jeito que meu pé não te tocasse, mas você disse “não, tudo bem”, e me abraçou um pouquinho mais. A gente ficou ali ouvindo música até que caímos no sono — ou, pelo menos, eu caí. Acordei com você atendendo o celular, sua mãe estressada do outro lado da linha, dizendo que era tarde e ela estava na porta de casa pra te buscar.
Era uma madrugada de verão, se não me engano. Era uma madrugada de verão da mesma forma que era uma madrugada de verão quando lembrei dessa história, dez anos depois. Estava lendo uma cena parecida — os melhores amigos deitados dividindo o fone de ouvido caíam no sono — e lembrei disso. Você lembra também? De como a gente nunca conseguia falar nada, como se tudo que estivesse dentro da gente fosse tão Maior que as palavras não serviam. Talvez você ainda acredite nisso, que palavras não podem expressar o que você sente, mas espero que você pelo menos tenha parado de citar Olavo Bilac pra defender o seu ponto que nem você fez no nosso anuário do último ano de escola.
Eu não lembrava de nenhuma das suas respostas pras perguntas do anuário. Fui ler porque lembrei da noite na rede. Coloquei toda a discografia do Pink Floyd e li as nossas respostas. Você sempre soou como você, dizendo que as pessoas que importam são aquelas que passaram pelo seu violão (“elas sabem”) e que seu maior sonho era sentir, sem nem explicar o que isso significa. Mas eu sabia, ainda sei. Sei o que você queria dizer sobre sentir — nós debatemos isso vezes demais —, sei que passei por seu violão.
Você lembra que, no meu aniversário de quinze anos, você compôs uma música pra mim? Não tinha letra, era só o violão e um título em inglês, porque era a época que a gente fazia esse tipo de coisa. Você escreveu uma carta junto com o pendrive e colocou uma vírgula errada entre “te amo” e “muito”. Eu te zoei por isso. Era o meu jeito de conseguir lidar com você dizendo que me amava e, principalmente, de lidar com aquela música que era tão eu que chegava a doer. Eu odiava que você me conhecesse tão bem para ter composto aquilo, eu odiava mais ainda que a música era triste como eu só era sozinha no quarto escuro.
Não lembro mais da melodia, assim como você provavelmente não lembra dos acordes. Talvez, se ouvíssemos hoje em dia, achássemos a música ruim, mas nós tínhamos quinze anos e sentimentos demais. Talvez você tenha composto uma música pra cada garota que você amou e a minha tenha sido a pior de todas, talvez isso seja porque você nunca soube direito o que fazer com seus sentimentos por mim.
Você me disse: “Eu acho que a gente se ama e não sabe o que isso significa”. A gente estava sentado no banco de uma pracinha lá pra perto do Tomie Ohtake e essa foi a única vez que você admitiu em voz alta que me amava. Talvez isso seja um exagero meu, talvez você lembre de outras vezes que me disse isso, mas eu só lembro dessa. Lembro de como tive raiva que você estava assumindo que eu te amava também, de como você estava certo, de como me machucava você não saber o que significava me amar. Nesse dia você me falou que, se fosse na noite do meu aniversário, se fosse naquela hora em que você olhou as polaroides penduradas na minha parede e tinha uma sua de uma noite que ficamos bêbados demais no karaokê, algo poderia ter acontecido. Que ali, naquele único momento, poderíamos ter dado forma aos nossos sentimentos; mas quando você disse que ficava emocionado por estar na minha parede, eu só revirei os olhos e isso foi o suficiente pro momento acabar.
Eu não devia me surpreender. Eu precisei fazer uma plaquinha pra você me beijar a primeira vez, a única vez. Você nunca me contou se pendurou a placa no seu quarto para lembrar do momento ou porque aquilo te enchia o ego, mas pelo menos você teve o decoro de tirar da parede quando sua antiga namorada foi na sua casa a primeira vez. Isso você me contou, se não me engano, na mesma tarde na pracinha lá pra perto do Tomie Ohtake. Eu nunca te contei, mas foi nesse dia, quando eu estava no ônibus voltando pra casa, que decidi que nunca mais queria falar com você na minha vida.
Eu sei o quanto fui cruel com você, o quão confuso você ficou quando disse que não queria que você me dirigisse mais a palavra dois meses depois de você dizer que me amava, mas aquela foi a única forma que encontrei de parar o que quer que a gente tinha. Você olhou pro chão e não disse nada quando te contei isso na tarde que visitei a sua casa no ano passado. Sua atual namorada disse que fazia sentido.
Depois que eu já estava meio bêbada, ela sentou na nossa frente e nos perguntou se podia nos dizer algo meio estranho. Todo mundo pra quem eu contei essa história achou que ela ia me convidar pra um ménage com vocês dois. Admito que, por um breve segundo, também achei que isso pudesse acontecer e fiquei levemente em pânico. Mas mesmo assim respondi “claro, fala aí” e ela nos olhou nos olhos e disse que nunca entendeu porque nós dois demos errado.
Eu disse o que eu achava, que depois de um tempo a gente não conseguia mais se ver como a pessoa que éramos no presente e acabávamos nos tratando como quem costumávamos ser e isso não dava certo. Eu sempre quis te dizer isso, que eu não te culpava, que havia uma explicação. Eu disse que era sempre excelente estar com você, mas assim que a gente se despedia, ficava um sentimento ruim dentro de mim, e demorou até o dia que você me disse que me amava mas não sabia o que aquilo significava, que não sabia como me amar, para eu entender que você me via como a garota de quinze anos que eu fui e que eu te via como o garoto de quinze anos que você foi, e aquilo era insustentável. Eu não dei tantos detalhes assim na hora, é claro, mas expliquei porque de repente criei uma briga sem sentido com você e isso era tudo que eu sempre quis te dizer, que mesmo naquela época, eu ainda gostava de você, que eu não te culpava ou guardava mágoa por nada.
Você olhou pra mim, depois pra cerveja que estava na sua mão, e disse que aquilo fazia muito sentido. Eu continuei minha reflexão olhando mais pra sua namorada do que pra você porque foi ela quem trouxe o assunto e aquela situação já era esquisita demais, apesar de que acho que todos nós nos saímos muito bem. Eu queria ter perguntado o que você achava, qual a teoria que você desenvolveu ao longo de todos esses anos, se era algo mais elaborado do que “a gente se ama e não sabe o que isso significa”.
Sua namorada fez muitas perguntas. Eu perguntei pra você o que eu podia contar, você respondeu “tudo”, então eu contei. Ela já sabia de todas as histórias, tudo que era sobre nós dois, ela sabia, e aquilo me deu uma paz no coração. Foi quando eu finalmente tive a certeza de que eu fui importante pra você como você foi pra mim. Até aquele dia no seu apartamento, eu não sabia o quanto os sete, oito anos de sabe-se lá o que tivemos eram uma grande viagem da minha cabeça. Eu não sabia o que era invenção minha e o que era verdade, mas saber que você contou tudo pra sua namorada me certificou de que tudo foi real. Essa era a única coisa que eu queria saber desde que tínhamos catorze anos. Nós dois vamos fazer vinte e quatro esse ano.
Eu queria poder dizer que lembro de tudo, mas isso é uma mentira. Eu não lembro nem de metade do que vivemos. Mesmo que eu tenha tentado guardar tudo, mesmo que no meu quarto tenha uma caixa lotada com memórias da época em que a gente ainda acreditava que podíamos colecionar visões de mundo e que um bando delas tenha a ver com você. Agora, eu preciso me esforçar pra lembrar de onde vem aquele papel com a sua letra que só diz “o poeta é um fingidor”. Tudo que lembro é que, quando li, eu sorri. Tudo que lembro é que, em algum momento, eu te chamei de poeta mesmo que as palavras e formas sempre tenham sido a minha área. Você errou a vírgula quando escreveu que me amava muito. Eu parei de errar pontuação contigo aos dezesseis anos. Mas eu te chamei de poeta e você lembrou disso por muito tempo, talvez você ainda lembre, talvez essa seja uma das coisas que você não tem que fazer esforço pra lembrar como eu tenho. Mas talvez você tenha se esquecido que você me chamou de poesia. “Você é tipo a poesia.”, você me escreveu pelo MSN, “É, é isso. Você é a poesia, o mundo não está preparado pra te conhecer”. Você escreveu na minha antiga porta — aquela em que todos os meus amigos escreviam bilhetinhos — que eu era a sua poesia, assim mesmo com pronome possessivo, e por causa disso eu acreditei por tempo demais que eu não podia aparecer de surpresa na vida das pessoas, que era preciso algum preparo porque o mundo não estava pronto pra me conhecer. Mas tudo isso eu lembro com esforço, preciso me esforçar pra essas coisas voltarem à cabeça. Na maior parte do tempo, elas ficam escondidas em algum depósito dentro de mim que preciso ativamente abrir para revisitar.
A história que li que me fez pensar naquela noite na rede em que dormi ao seu lado enquanto dividíamos o fone de ouvido era sobre melhores amigos de escola que se amavam mas não conseguiam admitir para si mesmos porque muito havia acontecido até o momento em que eles se reencontraram dez anos depois de perderem o contato. Aquela história me fez sentir sentimentos demais e, por isso, no dia seguinte, coloquei toda a discografia do Pink Floyd e abri minha caixa de memórias para procurar indícios de você. Foi quando li o que você escreveu no nosso anuário e encontrei o papel rasgado escrito “o poeta é um fingidor”.
Antes dessa carta, te escrevi milhões de outras em que eu te dizia tudo aquilo que eu sentia que faltava dizer, mas nunca te enviei nenhuma. Na mudança de quarto, inclusive, joguei tudo fora. Nada do que escrevi foi sobre ou para você. Tudo sempre foi pra mim mesma, sobre mim mesma. Todos os momentos que tentei guardar, todos os que consegui. Tudo que congelei e descongelei e congelei com uma nova perspectiva na minha memória, com novos espaços preenchidos, com novas informações, novos sentimentos. Tudo sempre foi pra mim e sobre mim, e desde a última vez que te vi no seu apartamento, percebi que há muito tempo que tudo isso passou.
A vez que você chegou mais cedo no meu aniversário e eu pedi pra você fechar o zíper do meu vestido porque eu ainda estava me arrumando. A vez que eu escrevi num papel todas as coisas que eu queria te dizer e a primeira era “vai se foder”, e você riu que eu tinha que me lembrar disso. A vez que a gente perdeu a quadrilha da festa junina no sítio de um amigo porque ficamos sozinhos conversando sobre sentimentos. A vez que você me levou num restaurante bonito do lado rico da Augusta pra gente beber vinho. A vez que você disse que pensava muito em como lidar comigo, mas que não queria me namorar e eu fiquei ofendida com a ideia de que eu queria namorar você — “deus me livre”, eu disse, “a gente nunca daria certo”—, e você nunca pareceu tão aliviado. Todas essas coisas passaram. Todos os pedacinhos da nossa história passaram, eu os transformei e ressignifiquei a ponto de que posso olhar pra tudo e dar adeus sabendo que amei tudo isso, e que essa história vai muito além de você e quem você foi comigo.
Foi quando peguei os pedaços de memória que sobraram na minha caixa que, pela primeira vez desde os nossos catorze anos, quis te escutar. Essa é a primeira carta que te escrevo não porque preciso, mas porque eu quero. Essa é a primeira carta em que, na real, tudo são exemplos para que você me conte do que você lembra, do que de mim você transformou em você. Quais foram os momentos que você congelou e descongelou e congelou de novo com outra perspectiva? Dessa vez, eu fiquei curiosa, como se a minha história tivesse se transformado em nossa agora que eu soube que você também a viveu. Agora que não importa, essas perguntas viraram só curiosidade e eu quero saber. Tudo que um dia foi real se tornou pura narrativa — e por mais que você nunca tenha sido um poeta, que as palavras nunca tenham sido seu forte, você sempre foi e sempre será um narrador; todos no mundo somos.
Eu precisei saber que o que vivi com você era recíproco para poder acreditar nas minhas memórias. Acredito que você sempre tenha tido o privilégio de saber o que eu sentia, mas talvez isso seja minha visão porque conheço minha interioridade. Talvez tudo o que eu tenha te dito não foi o suficiente, talvez você só não escolheu acreditar nos meus sentimentos como eu tinha medo de acreditar no que eu via dos seus. Ou talvez o seu problema era não entender a sua própria interioridade — e, aí, quem tinha o privilégio era eu, que conseguia entender o que eu sentia. Quem sabe você queira me contar tudo como eu um dia já quis. Quem sabe você precise explicar a si mesmo coisas que pra você ficaram e, se for importante, eu vou escutar. Ainda acredito que o mais provável é que tudo agora seja apenas uma história que contamos a pessoas queridas que não nos conheceram na época em que tudo que aconteceu não aconteceu. Pessoas queridas que não te conhecem ou não me conhecem, e que provavelmente nunca vão conhecer porque tudo passou agora. Foi importante saber que foi real para transformar em narrativa. Se você ainda precisar se certificar, estou aqui para dizer que tudo existiu de verdade, não é tudo loucura da sua cabeça. Você pode transformar quem fui em personagem como transformei quem você foi em um também. Tudo passou agora. Eu te amei, você me amou; já podemos esquecer e nos despedir sem medo. Estamos bem agora.
Clara Browne estudou Letras na Universidade de São Paulo e hoje é escritora na internet.
Ilustração de Celeza Ramalho
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