Querida Saidiya,
Peço desculpas pela intimidade — deveria te chamar Sra. Hartman? —, mas, como estou coordenando uma leitura coletiva de Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão, já te sinto próxima. Devo confessar, porém, que essa travessia (assim estamos chamando os encontros) não está fácil.
Acompanhar seu relato em África, conversando com “plebeus”, (re)visitando os muitos calabouços de Gana (país que guardava o maior número deles — aprendi contigo), sentir o cheiro fétido da capital, ter pés e braços coçando ao saber que nos castelos sangue-fezes-suor-pele ainda repousam sobre o solo. Como sou impressionável, não está fácil.
Ao mesclar memórias, narrativas e fotos de sua família e elementos históricos — que texto híbrido, hein, difícil de categorizar, complexo e plural como as vidas que vivemos e (re)contamos —, você vai mostrando que a escravidão foi muito pior do que imaginávamos: “nossos” corpos eram, de fato, objetos, mercadorias, produtos; comerciantes contavam inclusive com uma margem de perdas previsíveis e aceitáveis, estava tudo no seguro. Éramos como frutas e legumes que apodrecem e não podem ser vendidos: tudo certo, há sempre reposição de estoque.
Mas, sabe, Saidiya, hoje não escrevo para falar sobre essa violência sem nome. Eu gostaria de conversar contigo sobre família, orfandade e maternagem. Na página 108 da edição que tem me acompanhado, da editora Bazar do Tempo, com tradução de José Luiz Pereira da Costa, depois de se colocar na posição de estrangeira (uma vez que você não está retornando para seus antepassados da realeza africana; e é isso que somos, não, “irmãs outsiders” — como diz Audre Lorde?), você diz que essa é a grande herança da escravidão: perdemos a (nossa) mãe; temos “o próprio parentesco, o próprio país, a própria identidade negados”.
“A escravidão transformou a mãe em um mito, baniu o nome do pai e exilou irmãos em um canto distante a terra. O escravo era um órfão […] a única herança passada de uma geração para a outro foi essa perda”, você escreve. Somos órfãos.
Este é o legado que nos resta? Este é o laço que nos une? Este é o destino que nos aguarda: maternarmo-nos umas às outras? Me parece que sim. Veja alguns exemplos.
Em Carta a minha filha, Maya Angelou (que você cita, inclusive, como uma das intelectuais que foi à Gana numa das tentativas de reconstrução-gloriosa do país) nos diz: “[…] dei à luz a uma criança, um filho, mas tenho milhares de filhas. Vocês são negras e brancas, judias e muçulmanas, asiáticas, falantes de espanhol, nativas da América e das ilhas Aleutas. Vocês são gordas e magras, lindas e feias, gays e héteros, cultas e iletradas, e estou falando com todas vocês”. Fico pensando aqui: são tantos os fihos-de-Maya que são assassinados pelo estado-feitor, de George Flyod a Genivaldo, de Miguel a João Pedro, todas perdemos pessoas pretas para a necropolítica.
Escrevendo para a mãe morta, a narradora-protagonista de Cartas para a minha mãe, de Teresa Cárdenas, se torna, ela também, mãe de si mesma e de outras. Acalenta e protege a prima, se acolhe e aconselha, tenta dar afeto à avó; em um belo trecho, reverbera Carolina Maria de Jesus: “Mãezinha, encontrei um pedaço de espelho na rua. Agora, passo o tempo todo me olhado. […] Descobri que meus olhos são parecidos com os seus, que não poderiam ser mais bonitos, e eu minha boca e meu nariz são normais. […] Como acha que eu ficaria com olhos azuis, narizinho fino e a boca feito uma linha? Horrorosa, não é verdade?”.
Você pensou a mesma coisa que eu, Saidiya? Imagina só se Pecola, de O olho mais azul, de Toni Morrison, e a nossa protagonista se conhecessem? Tudo seria diferente na vida da filha de Polly e Cholly, não? Aliás, a própria Pauline poderia bater um papo com essa garota. Olha a mãe que aprende com (as) filhas…
Eu acho que é sobre isso que eu queria conversar, sabe? A escravidão tirou nossas mães, mas todas somos um pouco essa figura uma das outras, não?
Carolina, Conceição, Sueli, Eliana, Toni, Audre, bell, Maryse, Maria Firmina, Dandara, Teresa, Mirian, Cidinha, Octavia, Oyèrónkẹ́, Lélia, Tituba, Grada, Buchi, Sojourner, Nadifa, Beatriz, Anastácia, Leda, Saidiya… Ah, são tantas as mães forjadas pela palavra!
Especialmente agora, quando meu papel de filha-da-mãe se confunde com o de mãe-da-mãe, invoco todas vocês-todas-nós e peço forças para continuar a minha caminhada. Mas essa história deixo para outra carta, ok?
Por ora, obrigada por ser mais uma a segurar a minha mão
Com amor,
Maria Carolina
Maria Carolina Casati é professora, escritora e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política da Universidade de São Paulo, do qual é doutoranda. É criadora do @encruzilinhas, um projeto de leitura e debate de textos sobre negritude, gênero, feminismos e militância.
Imagem: fotografia de Saidiya Hartman (divulgação)
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