Foi Georg du Marier, amigo próximo de Henry James, quem lhe deu a semente da história de The real thing, ou como James gostava de chamar, sua donnée. O termo em francês que quer dizer simplesmente “dado, elemento de informação”. James utilizava-o claramente à maneira dele. Uma definição encontrada no Merriam Webster Dictionary está mais próxima desse uso: “o conjunto de suposições em que um trabalho de ficção procede”.
À ‘semente’ da história, portanto. Um casal aparentemente de aristocratas entrou em contato com du Marier pedindo para que figurassem como modelos numa irônica revista inglesa chamada Punch, alheios, ao que tudo indica, ao fato de que as ilustrações contidas ali eram de fato sátiras. Georg du Marier contribuiu como cartunista da revista, entre 1888 e 1895, com 250 sátiras sobre a classe média e a alta sociedade inglesa, compostas de uma cena desenhada em nanquim, dando-a um conhecido efeito chamuscado. A novela foi escrita na mesma época, precisamente em 1892 — há cento e vinte e seis anos de distância de nós.
James, como ele mesmo diz nos seus cadernos, foi surpreendido pelo pathos e pela estranheza da situação e viu no casal a “pequena tragédia de pessoas bem nascidas e de boa aparência vivendo de renda fixa em casas de campo e resorts, que agora no declínio de suas vidas sociais se viam incapazes de fazer qualquer coisa, pois nunca desenvolveram um ofício ou uma arte que pudesse ser seu próprio gagnepain“. O escritor diz também que a história não poderia ser só uma história, mas que deveria ilustrar algo. Mais adiante, ainda nos seus cadernos, ele finalmente nos dirá que The real thing é “uma lição — uma lição magnífica a ser feita em tremendamente poucas palavras”. Nesta novela, o trabalho do ponto de vista jamesiano é realizado com a história sendo contada em segunda mão por um ilustrador inominado que cultiva no seu íntimo a aspiração de se tornar um grande retratista, mas que tem como seu ganha-pão ilustrações com cenas da vida contemporânea para magazines e para romances populares ingleses.
James se valerá de uma estratégia para representar algo que ele considerava fundamentalmente humano, a ilusão e o impacto do seu desfazimento. Ele mesmo dirá nos seus cadernos que seus personagens não podiam padecer de um excesso de consciência arrogante. Eles precisavam cair nas armadilhas que surgem da sua visão de mundo, para, em seguida, humanizarem-se diante de nós, para perderem a condição de tipos. Para sentirmos junto a eles os golpes que a consciência recebe ao assimilar circunstâncias, valores e caráter. Ainda porque, segundo James, esses golpes contêm uma emoção propriamente literária e inseparável de uma história marcante, a emoção da perplexidade, que costuma vir seguida de um acontecimento intrigante e inicialmente inexplicável. Há um acontecimento dessa ordem na novela que pode ser muito bem precisado, que contém o motivo que irá cristalizar a lembrança sendo recontada nessa história.
Este pintor tem uma concepção do que é a arte. Ele parece sentir que é preciso defender essa concepção desse casal, que lhe aparece como um problema estético a ser resolvido: Por que, para ele, as representações em quadro desse casal não são artísticas? Por que, afinal, quando o casal Monarch é representado, a representação é sempre idêntica a eles mesmos, e, por isso, inflexível, rígida, engessada, ruim?
The real thing é a história da lembrança deste pintor que, aliás, como se verá, só se cristalizou como algo importante porque nela acontece algo de realmente artístico. Está em questão, para ele, um gesto breve e minúsculo; este, sim, que atendeu sua concepção do que é artístico; este, que, se pintado, seria, nos seus termos, uma pequena obra de arte. Seria esse gesto, essa ocasião, que contém a lição magnífica que James diz que sua história possui? As inadequações que o pintor percebe no casal de aristocratas serão explicadas em termos pictóricos — a cintura de Mrs. Monarch, por exemplo, era fina demais para seus quarenta anos de idade; seus cotovelos, muito pontudos. Em termos sociais, o marido de Mrs. Monarch utiliza o jargão londrino em voga na época para definir sua esposa: “smart”. Ela era o tipo predominante da alta sociedade inglesa, com suas afetações, com sua “society laugh about nothing”, com sua postura nunca relaxada.
O episódio em que seu grande amigo — que também é considerado pelo pintor seu crítico implacável — conhece o casal é contado da seguinte maneira:
“Hawley os conheceu — perto de minha lareira — e os achou um par ridículo. Reconhecendo que ele se tratava de um pintor, eles tentaram se aproximar, para lhe mostrar que também eram cavalheiros autênticos, mas ele os observou, do outro lado daquela grande sala, como se estivessem a milhas de distância: eles eram o compêndio de tudo aquilo que ele mais repudiava no sistema social de seu País. Pessoas como aquelas, pura convenção e puro couro envernizado, com interjeições que interrompiam uma conversa, não tinham lugar num estúdio. Um estúdio era um lugar para se aprender a ver, e como se poderia ver através de um par de colchas de penas?”
Por que, afinal de contas, esse casal de aristocratas que atendia com sucesso às modas e ao comportamento da época, ainda que em ruína financeira, não podia ser representado artisticamente? Um casal que tem na sua imagem o que um comentador desta novela colocou como as características de uma commodity — reprodução e padronização massificadas —, transpostas para seus gestos, comportamentos e para seus modos de vestir. Este, aliás, é um dos problemas que o pintor acaba enfrentando. Como representar algo humano e artístico, se este algo já está perdido em símbolos reproduzidos maciçamente, que tiram do olhar ensinado justamente a capacidade de ver algo singular? É esse o problema estético concebido por Henry James. Há 126 anos de distância de nós, parece muito atual.
É justamente esse tipo de pessoa, aquele em que não se pode dizer muito a respeito porque o que elas se valem — de vocabulário, comportamento, vestimenta – é demasiadamente genérico, que não caberia num estúdio e muito menos na arte. Ao mesmo tempo, estranha bastante que todo o ocorrido entre este ilustrador e este casal de aristocratas tenha sido, segundo ele, algo muito importante, pois ele dirá no fim do seu relato que, tendo em vista o que eles causaram à sua arte ao serem representados — nas palavras de seu amigo e crítico valioso, “danos permanentes”—, ele ainda assim pagaria o preço desses danos, pela memória que ficou daqueles encontros. Este pintor estaria disposto a abrir mão de sua concepção do que é a arte em troca da lembrança que aquele casal deixou.
Esta não é uma troca que a princípio valeria a pena. Por que ela aconteceu, então?Como a história vem a mostrar, houve um gesto de Mrs. Monarch que, para o pintor, conseguiu condensar a velada trama de valores que se deu naquele estúdio — e isto, para aquele pintor, é o que pode ser realmente chamado de arte.
Para que este gesto tenha ocorrido — ele é simplesmente um olhar, em inglês, ‘a glance’ — tanto foi necessário. O gesto consegue nos transmitir a poderosa tristeza de um destino, ao ponto de o pintor dizer: ‘I wish I could paint that!’
Com a história encerrada, o domínio da ficção jamesiana parece deixar várias perguntas em aberto: Por que alguns gestos, ao invés de tantos outros, cristalizam-se como memórias tão importantes? O que precisa ser feito em termos ficcionais para que a experiência desses gestos encerre todo o seu efeito? Neste caso, a definição que James dá à experiência esclarece um pouco do que precisamos saber para oferecer uma resposta. É preciso dar conta da “grande teia de aranha suspensa na câmara da consciência”, uma teia que refaça o caráter intricado e numeroso em relações que um acontecimento importante possui, que, a princípio, nos vem sempre condensado e incompreensível— mas que nos assombra, ao mesmo tempo.
Seria este o método de composição de James? Seria o número de relações simultâneas que um tema possui o que intensifica seu poder artístico? Até as coisas chegarem num ponto em que o tema está em todo lugar, mas só nos é acessível por meio de sua grande e constante ressonância? No prefácio do romance The awkward age (1899), ele descreve algo semelhante:
“Eu relembro com muita facilidade a ideia que deu origem a ‘The awkward age’, mas uma releitura cuidadosa me deixa hesitante em nomeá-la. Assim como está, esta composição produz, na minha visão – e produzirá ainda mais na visão de seus leitores — uma massa tão considerável envolvendo o germe enterrado nela – talvez ainda distinguível — que estou mais inclinado a deixar meu segredo escondido. Eu não devo encontrar, acredito, no curso desse comentário, exemplo melhor ou nada que no lugar deste despertaria mais interesse que a quase que incalculável tendência que o mero grão de um tema tem ao expandir e desenvolver e cobrir o solo quando suas condições acontecem de favorecê-lo.”
Podemos encerrar este ensaio examinando a tragédia do casal Monarch, um sobrenome, aliás, incômodo e genérico, que, como o pintor nos diz, não nos leva muito longe a respeito de quem eles são, afinal: Senhora Monarca, Senhor Monarca. A tragédia deles parece, à primeira vista, uma tragédia financeira que ocorre juntamente à decadência de uma prestigiosa vida social.
A título de um breve exercício de imaginação, pensemos para esse casal algumas perguntas que não estão sendo feitas, e que só poderiam ocorrer na forma de aflições muito íntimas: Você consegue nos dizer o que há de errado com a nossa imagem? Se nem para figuras de livros servirmos, onde vamos parar? Se somos substituídos por criados mais maleáveis como modelos, o que nos resta ser? Por que as coisas chegaram neste ponto para nós? O que nos faltou, afinal? Não somos justamente a coisa certa a se ser? Por que, então, estamos tão miseráveis? Se somos a coisa certa a se ser (‘The real thing’)!
Enquanto o pintor, no seu íntimo, parece se perguntar: O que há de inadequado neste casal, para a arte? Por que toda vez que os represento, a representação que alcanço é idêntica a eles mesmos e por isso mesmo justamente tão ruim? Por que suas poses, gestos e feições parecem adequar-se constantemente a um tipo? E por que esse tipo não pode ter lugar na arte? Quem essas duas pessoas realmente são? Que olhar elas têm de si mesmas e do mundo? E por que essa visão destrói qualquer possibilidade de a arte existir? Por que os representar trouxe, segundo um amigo e crítico valioso, danos permanentes à minha arte?
Mas e se houvesse em meio a essas perguntas uma ainda mais central e muito mais difícil de ser levantada, uma pergunta que fosse a formulação mais penetrante da tragédia que eles trazem ao artista, mesmo que tacitamente, e, que, no fundo, é a pergunta que eles nunca conseguirão levantar, ela seria simples e, ao mesmo tempo, ressonante, mas muito mais difícil de ser enfrentada. A pergunta fundamental é a seguinte: Quem somos nós? Ou, quem sou eu? The real thing é uma história do que acontece quando esta pergunta não é enfrentada.
Esta talvez não seja a pergunta do artista, embora algumas coisas indiquem — como o fato de que ele possui uma concepção do que é a arte — que ele já foi atormentado por ela porque, afinal, ele parece saber que não é um grande retratista, e parece saber também qual é o seu olhar. Sua pergunta fundamental talvez já seja uma pouco mais particular, algo como: Do que é preciso defender a minha arte?
Nesta altura, já nos encontramos entremeados a uma série de perguntas que parecem provocar justamente o que James queria provocar nas suas composições, “a exata emoção pretendida”: no caso aqui, perplexidade. Uma perplexidade que é efeito do tratamento de questões muito íntimas colocadas em jogo por uma trama de valores sempre velada, é claro, porque do contrário, ela nos seria insuportável.
Agora que já estamos mais envolvidos na ficção jamesiana, convém revolver as perguntas que foram feitas e deixadas em aberto aqui: Que pessoas são essas que podem trazer danos permanentes à arte? Quem corresponderia a elas hoje? Será que elas sempre existirão? Que visão do mundo e de si mesmo impossibilita a arte? Qual é a lição magnífica a ser feita em tremendamente poucas palavras? Quem a recebe, afinal? O pintor? O casal? O que é insidioso à arte numa época? Do que é preciso defende-la? Existe uma relação de ódio entre a arte e a convenção? Que implicações uma pergunta fundamental traz para a vida? Por que o pintor trocou suas concepção do que é a arte pela lembrança? Será que se tratou realmente de uma troca? Por que um gesto em meio a tantos outros constitui-se como inesquecível? É possível compreender o que há de tão decisivo num acontecimento? E mais, é possível representar os efeitos de uma grande experiência no domínio da ficção? Quem somos nós? Quem sou eu? Do que é preciso defender a arte?
* Algumas observações:
1. As citações traduzidas dos cadernos do autor a respeito de The real thing podem ser encontradas no livro The notebooks of Henry James (págs. 102 e 103). Tanto seus cadernos quanto seus prefácios são profundamente informadores da “situação” ou do motivo central de suas novelas.
2. O comentário que trata do problema estético enfrentado pelo pintor está publicado na revista The Cambridge Quarterly do ano de 2002 e é de um conhecido intérprete de Henry James, Ian Bell.
3. A imagem da grande teia de aranha suspensa na câmara da consciência pode ser encontrada no ensaio de The Art of Fiction (1884).
4. A ideia de uma pergunta fundamental difícil de ser levantada foi livremente inspirada no capítulo “The fundamental question (and how not to ask it)” de uma introdução à obra de Freud escrita pelo filósofo e psicanalista Jonathan Lear para a série The Routledge Philosophers, publicada pela Editora Routledge em 2005, nos Estados Unidos.
5. Há uma tradução de The real thing realizada por Paulo Henriques Britto e publicada em 1993 pela Companhia das Letras numa coletânea de novelas sobre artistas de Henry James, aqui intitulada A morte do leão – Histórias de artistas e escritores. O tradutor optou pelo título A coisa autêntica.
Pedro Cunha é bacharel em Direito pela Fundação Getulio Vargas de São Paulo, graduando em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás e membro-aluno do Grupo de Transmissão e Estudos de Psicanálise (GTEP – SP), vinculado ao Instituto Sedes Sapientiae.
Ilustração de Carolina Nazatto
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