Se ler tira a gente do chão, faz enxergar outros mundos, abre portas e janelas —especialmente se a gente abrir a mente e o coração —, de vez em quando, ler também tira a gente das nuvens, faz ver coisas que a gente não quer conhecer, mas ainda assim precisa. Se por ora, não dá para viajar com o corpo, a necessidade fica e a leitura é turbulência e respiro.
Algumas leituras nunca nos esquecemos; de outras não nos lembramos ou queremos nos esquecer. Mas não dá, porque tudo o que a gente lê não sai mais da gente: se junta às nossas lembranças, alimenta nossas sinapses. Quantas vezes não passa a correr na veia, a parar na garganta ou brotar, levemente, dos olhos.
Diz-se que nem todos que gostam de ler gostam de escrever, mas, não há quem escreva que não goste de ler. Eu escrevo coisas curtas. É que há letrinhas que também me correm nas veias e pedem pra ver a cara da rua. E quando escrevo, abro a janela pra elas.
Quem escreve também viaja, desbasta caminhos pra quem vai ler, só não tem como acompanhar de perto — a leitura é um caminho de cada um. Mas há um jeito pro caminho se alargar, pra convidar mais gente pra andar, ir mais longe. Esse caminho é a tradução.
Literatura é traduzida por gente que gosta de ler, escrever e andar junto; tanto de quem escreveu, como de quem vai ler. Às vezes, pende-se mais pra um lado ou pra outro. Ficar mais perto do leitor é trilhar caminho plano, e chegar mais rápido, talvez. Andar mais perto do autor é estranhar um pouco a paisagem e aproveitar cada pedra do caminho. São escolhas de quem traduz e de quem lê. São legítimas e literárias. São leituras, são viagens.
E ter um texto traduzido, então? É uma revoada, um passeio de balão.
Naquela época em que a gente podia sair tranquilo de casa, reunir pessoas ao redor da mesma mesa, passear pela cidade, coisas como essas, escrevi um pequeno conto, mais ou menos sobre essa rotina. Pouco tempo depois, encontrei alguém para expandir o caminho. E assim meu conto foi traduzido pro espanhol. A janela pro espanhol quem abriu foi Joselo Gómez.
A seguir, então, há dois caminhos. Você vem?
Piso tátil
Paçoca miou e ela sabia que era hora de levantar. Não havia melhor despertador que ele. Todo dia, às 6h30. Banho, roupa “finalmente seca. Pra quem mora em apartamento é difícil secar direito”. Tinha sede. Bebeu água. Maquiagem matte.
Colocou o leite no fogo e foi dar comida ao Paçoca. Chama forte no fogão, melhor apagar. Café solúvel, sapato. “Tchau, meu amor! Te vejo à noite”. O olhar dele não era de despedida. Intrigada, saiu, trancou a porta, pegou o elevador e se lembrou: “o guarda-chuva!”. O tempo pode estar seco, mas nunca se sabe o que vai acontecer. Voltou, pegou o guarda-chuva. Agora, sim, ganhou um olhar de “até logo”.
Naquele dia, resolveu fazer um caminho diferente e tomou o metrô. Chegou à estação mais próxima, e, distraída, tropeçou no último degrau da escada. Recuperou-se rapidamente, colocando os pés no piso tátil, esse que auxilia os deficientes visuais. Os pés no piso tátil. Achou estranho, nunca nem soube muito bem para que servia. Deu um passo, mais um e achou divertido.
No trabalho, começou a pensar no bendito piso. Desejou que todos os pisos fossem táteis. Tirou o sapato. Não, chão de escritório não é a mesma coisa. Mas, preferiu ficar assim, descalça. Era meio-dia e fazia muito calor. A meteorologia dizia que ia chover, mas apenas “em locais isolados”. “Nunca chove onde eu estou”, pensou irônica.
Gastou a manhã na internet. Compenetrada. “Piso tátil de alerta e piso tátil direcional”. Descobriu que, por exemplo, o piso de alerta serve para indicar perigo ou risco permanente e o direcional orienta o sentido do deslocamento seguro. Meio culpada, meio instigada, aceitou que tinha a possibilidade de escolher onde pisaria, subvertendo, de certa forma, a razão da existência do piso.
Resolveu almoçar sem sair da baia, pediu um caldo e comeu com pão.
Reunião à tarde. Postura correta, pôs-se a escutar tudo. Displicentemente tirou os sapatos, pés suados, o caldo estava muito quente. Olhava para todos e ria internamente pois só ela estava descalça naquela sala cheia de gravatas e saltos barulhentos.
Olhou pela janela, pensou que ia chover. Finalmente ela estaria no tal “ponto isolado” que a gente tanto ouve falar, mas ninguém garante a localização.
Não queria pegar o metrô cheio, queria ter logo aquela sensação de novo. “Preciso sair mais cedo, acho que torci o pé hoje de manhã”, avisou. Mentira. Estava é com as ideias torcidas! Onde já se viu inventar uma história assim só para sentir, de novo, aquele piso tátil. Antes de ter que dar mais explicações, despediu-se dos colegas e saiu. Já na rua, lembrou-se do guarda-chuva que ficara no trabalho. “Bom, agora não volto mais.” E tomou seu rumo.
Encontrou rapidinho o piso tátil. “Nossa, nunca tinha percebido que tinha um tão perto!” Alegrou-se. E pensou em desafiar-se a si própria descobrindo onde mais tinha o tal piso. Precisou caminhar um bom tanto até encontrar. Primeiro, pisou suavemente, pé ante pé experimentando uma satisfação lhe fazia cócegas. Mas o piso acabava numa faixa de pedestres e do outro lado não tinha nada. Que frustrante. Continuou sua rota, agora obstinadamente, precisava pisar de novo. Ah… encontrou. Piso direcional. Esse ia longe, o quarteirão era comprido. Começou bem devagar, um pouco com medo. Certificou-se de não estar atrapalhando ninguém. Caminho livre. Pé ante pé. Dedão, artelhos, calcanhar. Que loucura, nem a chuva que se armava metia-lhe medo. Mas, de toda forma, aumentou a intensidade dos passos, olhou de novo, ninguém a via. A tarde começou a ficar prateada. Som de trovão, pessoas apressadas. Vendedores de guarda-chuva surgiam do nada. Eram tão coloridos! Piso tátil. Pensou em parar, mas melhor não, preferiu ir até o fim. “Os dias têm sido muito secos. Um ventinho úmido não há de me fazer mal”.
Sentiu cheiro de chuva, sentiu cheiro de praia, de mato, de brisa. Quando deu por si estava parada bem no meio do piso direcional. Se recompôs, fez de conta que procurava alguma coisa na bolsa e continuou. De repente, preocupou-se com a chuva. Nunca se sabe se vai ser uma garoa ou um temporal. E ela não tinha com o que se proteger. Apressou-se.
Quando pensava ter chegado ao fim, encontrou o piso de alerta circundando um orelhão. Teve vergonha de colocar os pés nele. Mas ao redor ninguém se importava. Todos fugiam da chuva. Ela não mais. Não temia a chuva e nem o vento. Dois pés naquele piso. Agora ela sabia muito bem onde ia dar, sabia que ali, bem ali, poderia não ter fim.
Trovão, relâmpago. Um pingo na nuca, outro nos lábios. Gosto de chuva … ela nunca soube que chuva tinha gosto. Agora não tinha mais dúvidas, “Vai chover”. Mas seus pés… calcanhar, artelhos… Estava tudo ali. “Só uma volta”. Passos largos pra chegar mais rápido ao fim daquele quase círculo. Mas… que tolice, não tinha fim. Era uma ponta ligada na outra e na outra. Um trovão forte deu a impressão de que tudo estremeceu. Foi quando que a chuva começou a cair sem dó. Ela então abriu os braços, tirou os sapatos e pisou de verdade. Destemida. Corria sem parar sobre aquele piso de alerta. Ninguém na rua. Gritou, sentiu-se livre; encharcou-se. Foram voltas e mais voltas até não poder mais.
Choveu muito naquele dia.
E ela, exausta, sorriu.
Piso táctil
Tradução de Joselo Gómez
Mazapán maulló y ella supo que era hora de levantarse. No había mejor despertador que él. Todos los días a las 6:30. Baño, ropa “por fin seca”. Para quien vive en departamento es difícil secarla bien”. Tenía sed. Tomó agua. Maquillaje – mate.
Puso a calentar la leche y le dio de comer a Mazapán. Una llama fuerte en la estufa, mejor apagarla. Café soluble, zapatos. “¡Adiós, mi amor! Nos vemos en la noche”. La mirada de él no era de despedida. Extrañada, salió, cerró con llave, tomó el elevador y se acordó “¡el paraguas!”. Aun cuando hay tiempo seco, nunca se sabe. Regresó, agarró el paraguas. Ahora sí, ahí estaba la mirada de “hasta luego”.
Ese día decidió tomar otro camino y se subió al metro. Llegó a la estación más cercana y, distraída, se tropezó en el último escalón de la escalera. Se recobró rápidamente al poner los pies en el piso táctil, ese que ayuda a los débiles visuales. Los pies en el piso táctil. Le pareció extraño, pues no sabía muy bien para qué servía. Dio un paso, uno más y eso le pareció divertido.
En el trabajo, comenzó a pensar en el bendito piso. Quería que todos los pisos fueran táctiles. Se quitó los zapatos. No, el suelo de la oficina no es lo mismo. Pero prefirió quedarse así, descalza. Era medio día y hacía mucho calor. El meteorológico decía que iba a haber lluvias en “zonas aisladas”. “Nunca llueve donde yo estoy”, pensó, irónica.
Se pasó la mañana en internet. Concentrada. “Piso táctil de alerta y piso táctil direccional”. Descubrió que, por ejemplo, el piso de alerta servía para indicar peligro o riesgo permanente y el direccional muestra el sentido para un desplazamiento seguro. Medio culpable, medio curiosa, aceptó que tenía la posibilidad de escoger por dónde pisaría y subvertir, de cierto modo, la razón de la existencia del piso.
Decidió comer sin salir del cubículo, pidió un caldo y se lo comió con pan.
Junta por la tarde. Postura correcta, se puso a escucharlo todo. Poco a poco se quitó los zapatos, pies sudados, el caldo estaba muy caliente. Los miraba a todos y se reía por dentro, pues en esa sala llena de corbatas y tacones ruidosos sólo ella estaba descalza.
Miró por la ventana, parecía que iba a llover. Por fin iba a estar en una de esas “zonas aisladas” de las que tanto se oye hablar, pero que nadie sabe dónde están.
No quería tomar el metro muy lleno, ya quería experimentar esa sensación de nuevo. “Tengo que salir más temprano, creo que me torcí el pie hoy en la mañana”, advirtió. Mentira. ¡Traía las ideas retorcidas! Habrase visto que alguien inventara una historia así sólo para sentir, otra vez, ese piso táctil. Antes de que le pidieran más explicaciones, se despidió de sus colegas y salió. Ya en la calle, se acordó de que el paraguas lo había dejado en el trabajo. “Bueno, ya no voy a regresarme ahora”. Y siguió su camino.
Encontró luego luego el piso táctil. “¡Wow, no me había dado cuenta de que hubiera uno tan cerca!” Se alegró. Y pensó desafiarse a sí misma a descubrir dónde más había piso de aquel. Le hizo falta caminar un buen tanto, hasta que lo encontró. Primero, pisó con suavidad, un pie tras el otro, una satisfacción interna le hacía cosquillas. Pero el piso acababa en un cruce peatonal y del otro lado no había nada. Qué frustrante. Siguió su camino, ahora obstinadamente, necesitaba pisarlo de nuevo. ¡Ah! Lo encontró. Piso direccional. Este iba lejos, la cuadra era muy larga. Comenzó bien despacio, un poco con miedo. Se aseguró de no estarle estorbando a nadie. Camino libre. Un pie tras el otro. Dedo gordo, arco, talón. Qué locura, ni la lluvia, que se anunciaba, le hacía temer. Pero de cualquier forma aumentó la intensidad de sus pasos, miró de nuevo, nadie la veía. La tarde se empezó a volver plateada. Ruido de truenos, gente apresurada. Vendedores de paraguas salían de la nada. ¡Eran tan coloridos! Piso táctil. Quería parar, pero mejor no, prefirió seguir hasta el fin. “Los días han estado muy secos. Un vientecillo húmedo no me caería nada mal”.
Sintió un olor a lluvia, sintió un olor a playa, olor a pasto, a brisa. Cuando volvió en sí estaba parada justo en medio del piso direccional. Se recompuso, hizo como que buscaba alguna cosa en su bolsa y continuó. De repente, se preocupó de la lluvia. Nunca se sabe si va a ser una llovizna o un temporal. Y no tenía con qué protegerse. Se apresuró.
Cuando pensó que había llegado al final, encontró el piso de alerta alrededor de una caseta telefónica. Le avergonzaba poner los pies en él. Pero a nadie alrededor le importaba. Todos huían de la lluvia. Ella ya no. No le temía ni a la lluvia ni al viento. Los dos pies en ese piso. Ahora ella sabía también a dónde iba a parar, sabía que ahí, justo ahí, podía no tener final.
Truenos, relámpagos. Una gotita en la nuca, otra en los labios. Sabor a lluvia… no sabía que la lluvia tuviera sabor. Pero ahora ya no tenía duda. “Va a llover”. Pero sus pies… talón, arco… estaba todo ahí. “Sólo una vuelta”. Pasos grandes para llegar más rápido al final de ese casi círculo. Pero… ¡qué tontería! No tenía fin. Era una punta unida a otra y a otra. Un trueno fuerte le dio la impresión de que todo temblaba. Entonces empezó a caer la lluvia a cántaros. Y ella abrió los brazos, se quitó los zapatos y pisó de verdad. Envalentonada. Corría sin parar por ese piso de alerta. No había nadie en la calle. Gritó, se sintió libre. Se empapó. Dio vueltas y más vueltas hasta no poder más.
Llovió mucho aquel día.
Y ella, exhausta, sonrió.
Naia Veneranda é jornalista e mestranda em Estudos da Tradução na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
Imagem: pintura de Leo Robinson.
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