Aniversário
Este ano promete começar com o Brasil em festa — ao menos para os ditos “brasileiros de bem”.
Acredita-se que enfim o Brasil estaria superando um período tenebroso e adentrando, gloriosamente, um período de luz, de ordem e progresso, um período de resolução, uma nova história: estranho período sem história, além da história, pós-história. Que fiquem para trás os 16 anos de PT!, exultam os brasileiros de bem. Que fiquem para trás a escravidão indígena e negra, que nunca existiram. O feminicídio e o genocídio do povo negro, que também não existem. A desigualdade, a pobreza, a injustiça, nada disso existirá mais, ou não importará mais. Ficarão para trás todos os 518 anos desde Cabral: as capitanias e os capitães do mato e os reis fugidos e os impérios desditos, e os generais e os brados e o Ipiranga, os civis e os militares e Perus e o Araguaia, os negros e as mulheres e os pobres e os esquerdistas; a ditadura, essa nunca houve; o PT em 16 anos de ditadura comunista trouxe a corrupção que foi enfim extirpada e já não existe, ou não importa, ou não se falará mais nisso. Encontrou algum problema? É culpa do PT. É uma nova, estranha, a-histórica história.
Parabéns ao Brasil. Como nos idílicos bons tempos retratados n’“O aniversário” de Álvaro de Campos, o Brasil comemora seus anos. O Brasil segue adiante, e deixa atrás de si a velha casa onde se comemoravam os dias de seus anos: as tias e as religiões, a louça na mesa, o Natal em família, o domingo de futebol com direito a sono até mais tarde, a esposa recatada e do lar, o marido trabalhador que sabe por que bate em quem bate, a amante discreta, a empregada no quarto de despejo, tudo no seu devido lugar. O Brasil deixa atrás de si o tempo em que se celebravam os dias de seus anos – agora é uma nova história, tudo será diferente. Vida longa a quem celebra, a quem está do lado certo da história, a quem empreende sem jamais se aposentar. Fuzil, exílio e ódio a quem renega, a quem resiste, a quem petralha – deixe-nos, morra-se enforcado na gravata comunista caviar.
“Hoje”, dizia Álvaro de Campos, “somam-se-me dias”; hoje, na vala rasa do futuro desmentido em que adentra o Brasil, hoje somem-se-nos vias, e o pensamento escasseia a olhos vistos. O que somos hoje, podemos dizer em jogral com Álvaro de Campos, o que somos hoje é terem vendido a casa [e a Amazônia, e tudo o mais], é estarem a morrer todos [e já não termos acesso a demografia confiável para saber o tamanho da violência e do retrocesso], é restarmos sobreviventes de nossa indigência tática e mesquinhez, fósforos frios lançados à gasolina.
Feliz de quem pensa que sabe o caminho. A mim resta claro que o que resta é escuro como uma noite sem lua, os caminhos todos bloqueados por gente que nos nega o direito de estarmos em luta, os fóruns lacrados porque já não se pode pensar como pensamos, já não se pode reivindicar, já não se pode pensar em geral. No tempo em que festejavam os dias e os anos, não éramos tão felizes assim, e já tinha gente demais morta — mas havia tempo, e pensamento.
Feliz de quem pensa que sabe o caminho, apesar de que com estes, daqui pra frente, eu a bem da verdade já não conte mais — pois conto apenas com quem, como eu, esteja definitivamente perdido até que caminho haja, conto com quem tenha claro que já não entendemos nada, que tudo que pensávamos saber deu errado; conto com quem percebe que o começo está diante e distante à frente de nós, um abismo sem tempo entre nós e o que quer que seja que um dia certamente haverá.
A nova Internacional
Em 1993 foi realizado na Universidade da Califórnia um simpósio chamado “Whither marxism?”; o título do evento aproveitava a polissemia do termo inglês “whither“, fazendo com que o título do evento questionasse a um só tempo “em que direção vai o marxismo?” e “estará o marxismo desaparecendo?”. O mundo estava mudando, e ninguém sabia ao certo que rumo tomava; os escombros do Muro de Berlim e da União Soviética ainda eram recentes, e autores como Francis Fukuyama profetizavam o fim da história, com o vencimento definitivo do capitalismo global.
Nesse contexto, em 1993, Derrida profere a palestra “Espectros de Marx”. Não convém retomar aqui o argumento, elíptico e elusivo como era o hábito dele – o ponto que nos interessa aqui é que Derrida convoca em sua fala uma estranha nova forma de organização, que ele denomina “Nova Internacional”:
A “nova Internacional” […] é um vínculo intempestivo e sem estatuto, sem título e sem nome, apenas público, mesmo se não é clandestino, sem contrato, out of joint, sem coordenação, sem partido, sem pátria, sem comunidade internacional (Internacional antes, através e além de toda determinação nacional), sem co-cidadania, sem pertencimento comum a uma classe. O que se designa aqui, sob o nome de nova Internacional, é o que faz voltar à amizade de uma aliança sem instituição […] para aliar-se, de um novo modo, concreto, real, mesmo que esta aliança não venha mais a tomar a forma do partido ou da Internacional operária, mas a de uma espécie de contra-conjuração, na crítica (teórica e prática) do estado de direito internacional, dos conceitos de Estado e de nação etc: para renovar esta crítica e, sobretudo, para radicalizá-la.
A ideia (tenho-o claro) é difícil, meio brega, frágil e potencialmente perigosa — se a trago à tona é apenas porque a considero inevitável e necessária. A eleição de Bolsonaro é um acontecimento dramático, que muda profundamente a situação do Estado brasileiro. Não se deu ex nihilo, todos o sabemos, mas o fato é que a eleição nos lança definitivamente em um novo momento da vida política em nosso país, tanto em termos micro como macropolíticos. Acredito que a tal “nova Internacional” é um indicativo possível para o engajamento daqueles que, como eu, têm desejo e investimento na esfera pública e política, mas pouca vinculação formal em termos políticos e não trabalha profissionalmente com política; para esses, como para mim, acredito que a nova Internacional é uma perspectiva digna a partir da qual se engajar. Creio que para nós, nesse momento, a busca aflita e afoita por explicações, entendimentos e posições contundentes não vá nos “salvar” de nada – daí a pertinência da nova Internacional.
Entendo, obviamente, a sanha por compreender Olavo de Carvalho, por exemplo, e por toma-lo como baluarte para entender tudo que se passou; entendo a sanha por uma nova liderança de esquerda, por uma esquerda sem PT; entendo a sanha por uma análise de conjuntura que nos ajude a entender o que se passou e prever o que se deve passar. Mas, para quem não faz essas coisas profissionalmente (enquanto intelectual ou militante ou analista/crítico profissional) acho isso tudo inoportuno — no sentido literal e restrito: isso não atende à oportunidade.
O que é oportuno, creio, é mais simples: trata-se de enfrentarmos o duro fato de que o inaceitável, o impensável, o que não poderia acontecer aconteceu. Estamos sob um governo que está virando as costas para os direitos humanos, para os acordos internacionais, para programas de desenvolvimento, um governo que não assume responsabilidades pelo povo que representa, um governo submisso aos interesses do mercado, do autoritarismo oportunista e corrupto (sim, corrupto — intrínseca e evidentemente corrupto) — o Brasil segue, daqui em diante, sob o comando de defensores declarados do desgoverno, em nome da hipocrisia autoritária, da velha plutocracia retrógrada, da agenda financeira privatista neoliberal.
A análise que me parece mais oportuna para o momento se resume em uma palavra: fodeu.
A queda de um cânone (que sempre foi precário)
Passamos alguns anos (2003-2014, basicamente) sob a égide de um cânone: o cânone do Estado democrático de direito, comprometido com a pactuação internacional, o desenvolvimentismo sustentável, o investimento prioritário na promoção de bem-estar para a população. Até recentemente, quando pensávamos no Brasil, nas perspectivas de engajamento e transformação, nos desafios e nas perspectivas para a política e a sociedade, tendíamos em geral a pressupor esse estado de coisas, a pressupor que no Brasil a situação política era essa.
(É óbvio que o recurso a esse cânone nunca significou que ele era factualmente verdadeiro: tanto no período 1989-2015 como nos demais períodos de “normalidade republicana”, a ideia de que o Brasil funciona como um Estado democrático de direito só pode ser verdade numa concepção precária e parcial — mas o cânone democrático desenvolvimentista, principalmente na “dinastia Lula”, pôde estar e esteve aí enquanto plataforma básica de pensamento).
Pois bem, esse tempo definitivamente passou — insistir nisso agora é negação, ingenuidade ou falta de consciência política. O que me parece crucial, daqui pra frente, é reconhecermos que o que não podia acontecer aconteceu, reconhecer que não soubemos evitar o inaceitável, e que no momento ninguém sabe dizer como sairemos dessa. A minha ideia, obviamente, não é convidar ninguém a entregar os pontos: é simplesmente que não sejamos estúpidos, não nos entreguemos à recusa alienante, não sigamos intelectualizando a catástrofe, não percamos tempo disputando os espólios da culpa.
É importante dizer que eu considero essa posição útil e necessária, mas especificamente para quem, como eu, exerce o engajamento político-cidadão apenas de forma amadora e diletante: obviamente os jornalistas seguirão fazendo jornalismo, os cientistas políticos seguirão fazendo ciência política, os militantes seguirão militando etc.
O trabalho de entendimento, por exemplo, é obviamente necessário — é necessário que procurem compreender Olavo de Carvalho, a bancada BBB, Instituto Mises, MBL e toda essa horda de atores eficientes demais para ser desconsiderados. Mas é importante que quem não é profissionalmente engajado nisso possa perceber que daí não virá um antídoto mágico, que varreria Bolsonaro e os absurdos que ele representa como um sonho ruim.
A militância também segue urgente. Quem se engaja em coletivos e partidos e tem condições de atender à boa indicação de Mano Brown de “voltar pra base” deve fazê-lo (espero que o faça) — política segue sendo necessária e urgente, e esse parece mesmo ser um bom caminho. Mas quem exerce política apenas de forma amadora e diletante, como eu, não tem como responder a esse tipo de injunção: eu não tenho como “ir pra base” sem ser absolutamente ingênuo, prepotente, arrivista ou hipócrita, assim como não tenho como “entender” Olavo de Carvalho e tirar disso qualquer tipo de expediente minimamente eficiente para agir de forma cidadã.
Tenho como fazer isso como o intelectual que sou, é claro — mas no momento acho isso menos importante do que o que estou fazendo: chamar a atenção para a necessidade de reconhecimento da perda, da catástrofe, para defender o tempo e o espaço para o trabalho do luto. Acho isso urgente porque o trabalho do luto nos protege de enlouquecer, e nos protege de cair num abismo em que achamos que estamos vivendo e seguindo adiante, mas onde a práxis simplesmente não está.
O caminho do luto à luta
Meu ponto aqui se resume ao engajamento político de quem, como eu, foi profundamente atingido pelo impacto dessa derrota tão atroz e não sabe como pensar ou lidar afetivamente com os acontecimentos políticos. E minha indicação nesse campo é simples: fiquem tristes; fiquem arrasados; fiquem desolados; reconheçam que não sabem o que dizer, o que pensar, não entendem e não têm uma resposta pronta.
Isso é importante porque permite o reconhecimento do tamanho do buraco: o que aconteceu (e está apenas começando) é real, é gravíssimo, atinge proporções enormes para a história do país; não soubemos evitar; não sabemos o que fazer; não temos condições de “entender plenamente” de onde isso veio ou como isso funciona.
Tenhamos claro: não chegamos ao fim da história. Há história, e à revelia de nossos governantes e algozes há o contrapelo da história, há resistência, há futuro e há, haverá muita luta. Hoje, no entanto, é uma tristeza sem tamanho — hoje há luto.
E o luto é importante porque o luto, a despeito das primeiras aparências, não paralisa: o luto é um trabalho, um engajamento, e funciona. O luto nos ajuda a nos encontrar de novo, para que possa emergir, de dentro do coração do luto, a força, a união, o entendimento, o propósito, a luta e, enfim, num dia ainda tão impossivelmente distante, a transformação.
Wilson Franco é psicanalista e escritor, com doutorado em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
Ilustração de Sumaya Fagury
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