Em uma manhã no mês de julho do ano de 2015, cheguei em casa após uma rápida visita ao hospital e encontrei meu gato Baguera, que tinha apenas três anos, morto no chão da sala. Ele havia sofrido uma parada cardíaca fulminante, sem nenhum precedente ou histórico de doença relacionada. Minha reação à morte do Baguera foi passar o dia vomitando e depois nunca mais falar sobre o assunto. Até hoje, escrevendo essas palavras, minha vontade é de fechar o computador e sair correndo, talvez em direção a uma realidade alternativa onde não seja possível que as coisas simplesmente deixem de existir sem aviso prévio.
Três anos depois disso, em um sábado de 2018, eu receberia uma ligação da minha ex-sogra dizendo que meu ex-marido estava morto. Ele havia cometido suicídio no mês em que completaria 32 anos. Nós já estávamos separados há um ano após termos passado seis anos juntos. Ao contrário da morte de Baguera, sofri de forma extremamente escancarada, mas ainda sem conseguir colocar em palavras o que estava se passando dentro de mim.
Assim como na morte súbita do meu gato três anos antes, eu passei a desempenhar uma espécie de dança social onde evito certos assuntos, certas conversas e certas pessoas por não ser possível para mim lembrar, elaborar e falar sobre o assunto sem sentir como se a menor ranhura nessa superfície denunciasse um abismo prestes a se abrir, revelando uma dor que meu corpo não pudesse conter.
Mais uma vez, não pude encontrar pronomes, verbos, adjetivos ou uma sintaxe que desse conta da minha experiência, é como se nada do que eu sentisse encontrasse uma casa dentro de mim e tudo me fosse absolutamente estranho. Me acreditei (e ainda acredito) completamente despreparada e inadequada para lidar com o que estava acontecendo.
Acho que não existe, de fato, uma forma certa de se passar por uma experiência de perda. Afinal, a morte é o lugar de não-retorno por excelência; é preciso diariamente encontrar formas de criar sentidos em um novo mundo onde aquela pessoa não existe mais. As maneiras individuais de elaboração de sentido e passagem pela perda são quase infinitas. Dentre as (muitas) formas já exploradas na literatura, acredito que o livro F de falcão, da naturalista e professora universitária inglesa Helen Macdonald, apresenta uma das mais inesperadas.
Em seu livro de memórias, Macdonald resolve treinar um falcão após a inesperada morte de seu pai. Não qualquer falcão, mas uma ave notadamente difícil, o açor (goshawk, em inglês). A ocasião da morte do pai coincide com perdas em outros campos da vida da autora: o término de um contrato profissional em uma universidade, a perda de sua moradia no campus e o término de um relacionamento. Esse acúmulo de dores coloca Macdonald em um estado predisposto a rejeitar a companhia humana — daí a escolha por refugiar-se no mundo selvagem oferecido pelo treinamento da ave de rapina. Macdonald também sente que as funções sociais que acompanham o luto a obrigam a tentar comunicar-se através palavras, e ela, como tantos de nós, se sente completamente incapaz de fazê-lo.
A autora descreve seu estado mental após a morte de seu pai como uma espécie de loucura permanente onde nenhum aspecto de sua vida parece fazer sentido; onde sua mente constantemente tenta, em vão, tornar habitável um mundo onde seu pai não existe mais. A ausência de um lastro que a ajude a ter algo que se assemelhe a uma rotina ou estrutura amplifica a sensação de insanidade: “Não havia um companheiro, filhos, uma casa. Também não havia um emprego fixo. Então (minha mente) se agarrou ao que podia. Estava desesperada, e interpretava o mundo de forma incorreta”.
O lastro aparece então sob a curiosa forma de um açor, uma fêmea que recebe o nome de Mabel e acaba por acumular múltiplos significados dentro da construção de sentidos no novo mundo que Macdonald habita sem o seu pai. Por ser um processo acima de tudo repetitivo, metódico e regrado, o treinamento de Mabel surge como uma possibilidade de rotina e de propósito. Os pequenos gestos e rituais diários que o treinamento requer impedem a mente da autora de entrar em uma espécie de autofagia, consumindo e aniquilando seus próprios recursos psíquicos.
O treinamento de Mabel é, entretanto, ambivalente o tempo todo. Ao mesmo tempo em que oferece estrutura, treinar uma ave de rapina não é simples como uma receita de bolo, e seguir os passos indicados nem sempre leva a um resultado certo. A previsibilidade que um animal selvagem é capaz de oferecer é baixa, e Macdonald sente-se frustrada e falhando repetidamente, mesmo sendo uma falcoeira experiente.
Conforme os dias e semanas de treinamento vão se passando, Macdonald sente que adentra cada vez mais o universo animalesco de Mabel e afasta-se gradativamente de sua humanidade. A autora começa a ter cada vez menos interesse em eventos sociais e a passar cada vez menos tempo com seus amigos e familiares, enquanto experimenta uma grande satisfação ao passar tempo caçando com Mabel. O universo do falcão apresenta-se como infinitamente mais simples do que o humano: Mabel sente fome, busca uma presa para matar e saciá-la. Sentimentos demasiado humanos como o apego, o remorso ou a compaixão não têm lugar neste universo. De certa forma, ao adentrar o mundo “duro” e implacável do falcão, Macdonald tenta escapar da ternura e da delicadeza humanas, como se assim pudesse se tornar menos vulnerável e sujeita à tristeza e à sensação de perda que a acomete. A autora tenta remedar a ave em sua visão distante e privilegiada, observando o mundo de cima, sem envolvimento com nada e nem com ninguém.
O universo selvagem de Mabel oferece também uma vantagem de perspectiva. Uma pessoa em luto costuma ser tomada por uma avalanche de memórias, sofrendo constantemente por um passado que não volta e pela perda de um futuro conjunto. Para uma ave de rapina, entretanto, tudo o que existe é o momento presente. O conforto em esquecer-se do passado não passa despercebido à autora: “O falcão era uma fogueira que queimava minhas dores. Nela, não havia remorso ou luto. Nem passado ou futuro. Ela vivia no presente apenas, e este era o meu refúgio”. Este presente perpétuo oferece à Macdonald um foco exclusivo: “Tudo o que me importava era o que aconteceria nos próximos 30 segundos”.
Por algum tempo, o envolvimento de Macdonald com Mabel blinda a autora de entrar em contato com os sentimentos de perda, gerando um espaço de convívio entre duas criaturas onde nada é preciso ser posto em palavras. Conforme as conexões humanas da autora vão se silenciando, entretanto, Macdonald percebe que não está efetivamente passando por um processo de cura, mas talvez por algo parecido a um adiamento da dor. O esquecimento passa a não lhe oferecer mais o conforto de antes e ela busca a ajuda profissional de um psiquiatra. A partir do momento em que Macdonald desiste de tentar ocultar seus sentimentos e começa a buscar as palavras para se expressar, seu processo de reconexão com seu lado humano é incitado, e ela volta a procurar a companhia de seus amigos.
Por fim, entendemos que o tempo que a autora passa com Mabel a ajuda a temporariamente suprimir a sua dor e esquecer da morte de seu pai, mas que esse “esquecimento” é dificilmente conciliável com a experiência humana — afinal, nós somos seres de passado e futuro. A vida afastada da sociedade pode oferecer um abrigo de certas desilusões, apegos e arrependimentos, mas ela é também privada de vários outros confortos da companhia humana. Após uma conversa trivial com dois estranhos, Macdonald volta a perceber a importância da memória nos processos de elaboração e superação do luto, e como a dor da perda pode vir a se transformar em outros sentimentos menos desconfortáveis.
O livro de Macdonald oferece não só uma perspectiva interessante e inusitada sobre o luto, mas sua escrita sobre o mundo natural é simultaneamente precisa e evocativa, trazendo o leitor para perto de uma dor bastante familiar e também levando-o para o universo raro da falcoaria através de suas descrições ricas e expressivas. A autora também é muito bem-sucedida na costura que faz entre sua história pessoal e a do autor inglês T.H. White, mais conhecido pelo romance A espada era a lei, que conta a história da infância do Rei Artur. White também escreveu uma obra sobre o treinamento de um açor (The goshawk, 1951, sem tradução para o português), mas enquanto o livro de White parece narrar um embate entre homem e animal, Macdonald acredita que seu relacionamento com Mabel tem uma natureza completamente diferente.
Em F de falcão, as histórias dos dois autores vão sendo examinadas de perto em suas semelhanças e divergências enquanto suas tentativas de domesticação das aves vão sendo comparadas. Em ambos os casos há uma busca pela natureza como fuga da vida em sociedade, além da necessidade de exercer alguma forma de controle sobre um mundo que parece andar fora dos trilhos. A sensibilidade e a escrita generosa de Macdonald trazem à tona aspectos interessantes da vida e obra de White que enriquecem as conexões estabelecidas no livro entre os sentidos que o ser humano atribui ao mundo selvagem. Nas palavras de Macdonald: “O sentido que atribuímos ao mundo natural serve à nossa própria visão de mundo. O selvagem nos ensina que você passa a se sentir mais humano uma vez que você consegue entender o que não o é”.
Sentada no meu quintal aqui na Serra da Cantareira, olhando para as árvores e para os muitos pássaros que passam, onde tudo parece ter sempre estado aqui, suspenso no tempo, me pergunto o quanto é possível que uma conexão significativa com o mundo natural possa remendar o que há de imaterial em nós. Sinto uma vontade extravagante de me embaralhar com as árvores que me cercam e me lembro de uma crônica de Rubem Braga (“O mato”, de O lavrador de Ipanema — crônicas de amor à natureza, 2013), em que ele narra o retorno de um homem do trabalho à sua casa, no mato:
“E pouco a pouco ele foi sentindo uma paz naquele começo de escuridão, sentiu vontade de deitar e dormir entre a erva úmida, de se tornar um confuso ser vegetal, num grande sossego, farto de terra e de água; ficaria verde, emitiria raízes e folhas, seu tronco seria um tronco escuro, grosso, seus ramos formariam copa densa, e ele seria, sem angústia nem amor, sem desejo nem tristeza, forte, quieto, imóvel, feliz.”
Ao fim de seu livro, Macdonald parece encontrar uma espécie de conciliação na qual parece ser possível se experimentar, ainda que superficialmente, o mundo fantástico de um animal selvagem e, através dele, sossegarmos no silêncio apaziguador que a natureza oferece e nos encontrarmos em uma espécie de conexão com tudo aquilo que existiu e continuará existindo alheio a nós. E, quem sabe, a partir disso, possamos trazer, de certa forma, a essência selvagem para dentro de nós, possibilitando encarar novamente um mundo humano e domesticado.
Cintia Nogueira é professora e editora.
Imagem: fotografia publicada no site Cultura Mix.
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