Um livro escrito por uma mulher japonesa no século 10, em volume caprichado e cuidadosamente traduzido — isso já basta para que O livro do travesseiro chame a atenção, ao menos de quem se interessa por literatura, pelo Japão, pela criação artística de autoria feminina em um período tão remoto ou por tudo isso junto. Mas o livro vai muito além dessa curiosidade inicial.
Publicado no Brasil pela Editora 34, com tradução de Geny Wakisaka, Junko Ota, Madalena Hashimoto Cordaro, Lica Hashimoto e Luiza Nana Yoshida e organização de Madalena Hashimoto Cordaro), é assinado por Sei Shônagon, uma “dama da corte a serviço de sua imperatriz”, como informa a quarta capa, e como o leitor vai descobrindo do que se trata à medida que lê, a narrativa é escrita no estilo zuihitsu — literalmente “ao correr do pincel”, talvez o mais japonês dos gêneros de prosa, como descubro lendo a tese de Andrei dos Santos Cunha, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul —, combinando listas, poemas, relatos, comentários, descrição de rituais e costumes e análises despretensiosas do dia a dia na corte. É como se fosse um caderno de anotações com textos de tamanhos e temas variados. Sentei com meu exemplar compenetrada, como quem vai estudar, relaxei como quem se delicia com uma crônica no jornal de domingo.
À medida que se vai avançando no texto, a despretensão e leveza da prosa vai abrindo espaços para reflexões. O dia a dia da autora envolve, claro, situações que, para leitores do século 21, são interessantes por si só — como um engarrafamento de carruagens em uma festa ou os laços poligâmicos e ao mesmo tempo perpassados por inúmeros rituais e pudores entre os amantes. Mas é o olhar da autora que vai quase que irremediavelmente nos lançando para uma viagem mais profunda: uma jornada rumo a uma subjetividade muito lírica, na qual a suavidade pulsa sem esforço, a observação do mundo combina objetividade e serenidade e mesmo nos relatos mais impressionistas não importa tanto o centramento no eu, mas o arrebatamento pelas flores, pelos insetos, pelos poemas decorados, a beleza dos papéis cuidadosamente dobrados e dos aromas e flores para acompanhar as cartas.
Sei Shônagon fala sobre ela sem se centrar em si mesma. É uma crítica ácida, e ao mesmo tempo leve e bem-humorada, de qualquer um que não entenda ou não respeite os costumes palacianos, mas o que mais a interessa e guia suas linhas é a observação agudíssima da arquitetura dos telhados, da textura dos tecidos, das particularidades do canto de um pássaro, de cada detalhe da coloração do céu na troca de estações. Com sua sensibilidade, ela se interessa profundamente pelo movimento humano e pela natureza à sua volta, e com sua simplicidade ri desdenhosamente do que considera errado ou imoral e se lamenta do que considera triste, para na página seguinte voltar a se alegrar com acontecimentos grandiosos como: o calor do sol com o se aproximar da primavera. A beleza das espadas ornamentadas com joias. A elegância da Montanha de Miwa. A montanha Tamuke. A montanha Machikane. A montanha Tamasaka. São dezoito montanhas nomeadas em um parágrafo no qual a autora comenta que “É tão engraçado como é humildemente reclinado o monte Katasari!” e “A montanha de Asakura é divertida como o olhar de soslaio do antigo amante”.
(Inevitável pensar: eu, com meu Google à mão, sei quantos nomes de montanha? E me relaciono com quantas delas, a ponto de descrever com naturalidade seu formato ou recorrer a uma analogia precisa para descrever os sentimentos que ela evoca? Aliás, ao elencar mentalmente os (pouquíssimos) nomes que me vêm a memória, o primeiro que surge é o Monte Misen, em Hiroshima, não muito longe de Kyoto, onde a autora escreveu o livro.)
O livro do travesseiro é um convite para penetrar em uma cultura antiga e tão distinta da nossa, guiados por uma agudíssima observadora, mas também para olharmos pela nossa janela com mais profundidade e descobrir pássaros, plantas, temperaturas e cores. Para olhar para nossa casa e nos aproximar de aromas, sombras, sons, luzes e texturas. Para observar os pormenores nos hábitos ao nossos redor e descobrir a cada dia novos detalhes, como um hábil cronista, e para se lembrar de enxergar as coisas como se fosse a primeira vez, como um sábio poeta. Por mais fluído que seja o livro, recomendo marcha lenta na leitura. Daqui, a onze séculos de distância, agradeço humildemente a Sei Shônagon por me acompanhar no café da manhã com sua literatura que, para mim, virou uma bem-vinda e delicada meditação.
Liliane Prata é jornalista e escritora. Formada em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais e em Filosofia pela Universidade de São Paulo.
Imagem: pintura que ilustra a capa do livro publicado pela Editora 34.
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