Jordan Peele é, sem dúvidas, um dos cineastas mais promissores da na atualidade. Tendo dirigido apenas três filmes até aqui, um desses – Corra! (2018) – lhe rendeu o prêmio de Melhor Roteiro Original e o tornou o primeiro homem negro a vencer nessa categoria na história do Oscar. Se olharmos em retrospecto, Peele iniciou sua carreira fazendo algumas comédias, tanto em roteiro, quanto também participando como ator em algumas delas. É interessante como podemos encontrar elementos de humor também nos seus filmes de terror, de forma sutil e muitas vezes nos causando constrangimento e mal-estar. Essa é a grande sensação que me rodeia desde que vi o primeiro filme do Peele: mal-estar.
Em Corra!, Jordan Peele queria trazer um pouco da sua própria visão acerca do racismo, colocar nas telas de cinema uma história que representasse um pouco daquilo que ele mesmo havia vivenciado muitas vezes como homem negro. Uma das cenas mais marcantes, para mim, é quando Chris (Daniel Kaluuya) participa de uma festa dada pelos pais da sua namorada. Lá, ele se vê rodeado de pessoas brancas, que estavam o tempo inteiro fazendo tentativas patéticas de demonstrar que conheciam outras pessoas pretas e até que admiravam vários dos seus trabalhos. No fim, tudo o que essas pessoas queriam era descobrir quais os atributos físicos o protagonista possuía para que pudessem brigar por ele em um leilão.
As situações desconfortáveis em Corra! vão tomando proporções tão intensas, que o desejo é de gritar para que o protagonista saia daquele lugar, saia de perto daquelas pessoas. Apesar de não haver nenhuma piada no roteiro, nós nos deparamos com momentos tão absurdos, que nada nos resta além de dar aquela risada desesperada de quem não sabe muito bem como reagir ou o que fazer. O que o Peele entrega nesse filme é justamente uma sensação sufocante de um perigo iminente e aquela intuição que faz o coração bater mais forte de que existe algo de muito errado acontecendo, mas que não sabemos bem o que é ou de que forma isso vai acabar explodindo. Volto ao que disse no início, é uma sensação de mal-estar que beira o insuportável. Apesar de ser um filme que traz explicitamente uma experiência de racismo sofrido pelo protagonista, acredito que o Peele consegue tocar todas as minorias com esse filme. Qual mulher nunca esteve em algum local onde haviam vários homens dando show de machismo e sexismo? Qual pessoa LGBTQIAP+ nunca presenciou uma tentativa de inviabilizar a sua vivência?
Para mim, esse é o melhor do Jordan Peele até o momento. Por ser sua estreia como roteirista e diretor de um filme de terror, não imagino como ele poderia ter se saído melhor. Existe desconforto, existe mal-estar, existe o espectador se mexendo em seu lugar enquanto assiste ao filme e existe um homem negro contando a sua história, contando uma parte tão importante e difícil da sua história. E tudo por causa da cor da sua pele.
A pretensão aqui era falar um pouco sobre as minhas impressões sobre o filme mais recente do Peele, Não! Não olhe para cima! (2022), lançado recentemente no Brasil, mas não consegui ser tão direta e acredito que os três filmes se complementam de alguma forma e é por isso que também vou falar um pouco sobre Nós (2019), onde Peele já traz alguns elementos que vai abordar de forma mais incisiva no seu terceiro filme. Em Nós, já temos algumas pinceladas de experiências que encantavam e assustavam o cineasta na mesma medida. Em algumas entrevistas, ele fala um pouco sobre a sua obsessão em encontrar sua sósia perfeita, alguém absolutamente igual a ele e que vivia em algum outro lugar por aí. Há algo de um estranhamento, algo de inquietante que está presente em todo o filme — esse é o tom desde os primeiros momentos.
Costumo enxergar psicanálise em tudo e nesse filme fica ainda mais fácil, já que a protagonista vivida pela excelente Lupita Nyong’o passa por um trauma infantil que lhe é muito marcante e que retorna em certo momento da sua vida em que ela já construiu a sua própria família. Não consigo pensar em nada mais freudiana do que essa premissa e é com isso que Peele brinca o tempo inteiro durante seu filme. Sensações de que algo de bizarro está acontecendo e uma mistura de passado e presente, como se estivessem misturados, ou até mesmo como se não houvessem uma real distinção entre os tempos. Os protagonistas desse filme são pessoas pretas, uma família que possui condição financeira para ter casas, carros, barcos e afins… Tudo o que em geral só é conquistado facilmente por pessoas brancas e está aí o elemento de racismo que o Peele resolveu abordar nesse segundo filme: o estranhamento das pessoas brancas quando veem pessoas pretas que possuem as mesmas condições econômicas, mas também o estranhamento desses protagonista com eles mesmos, nesse caso com os seus duplos.
Algo que quero chamar a atenção aqui é como o Jordan Peele conseguiu, sendo roteirista e diretor dos seus filmes, escalar excelentes atores pretos, deixando claro para Hollywood que é perfeitamente possível fazer bons filmes de terror, com sua carga de medo, mas também com roteiros bem trabalhados, personagens com uma construção aprofundada e coerente, e com atores negros em destaque. Acredito muito que o seu cinema é revolucionário e que se pudermos ter Peele fazendo mais e mais filmes que nos tiram um pouco do eixo vai ser um dos grandes marcos da história do cinema atual, algo para se estudar no futuro.
Enfim chego em Não! Não olhe para cima!, o seu filme mais recente, que me remexeu por dentro de diversas formas, tanto por me enxergar ali em alguns personagens, ter referências no cinema de pessoas negras que precisam batalhar muito mais que qualquer outra pessoa para ganhar o mínimo de visibilidade, mas também porque toca em um dos meus assuntos prediletos no cinema do terror: vidas extraterrestres. E já quero mencionar que Peele aqui traz muitas referências ao cinema de Hitchcok e aos monstros das histórias de Lovecraft — essa segunda referência, acho especialmente importante porque sabemos que Lovecraft foi um homem extremamente racista e hoje em dia vivenciamos suas histórias e seus monstros sendo trazidos em produções de pessoas negras, deixo aqui a indicação da série Lovecraft Country (2020), de Misha Green (HBO), que brinca bastante com o que acabei de comentar. Peele é produtor executivo da produção.
Ainda sobre Lovecraft, o “ser” que o Peele resolveu trazer em seu último filme possui um formato completamente estranho, como Lovecraft descrevia os monstros em seus livros, e foi assim que Peele quis também fazer no longa. Algo de não familiar existe aí, ou, para citar Freud mais uma vez, algo de infamiliar. Esse ser desconhecido, que sabemos que está ali durante o filme todo, mesmo que só o vejamos lá pela metade, é o que assombra e desperta o interesse e curiosidade de nossos protagonistas.
Em Não! Não olhe para cima!, Daniel Kaluuya volta como protagonista de uma história que fala sobre cuidadores de cavalos para produções de Hollywood, um trabalho já bastante defasado, mas que a família tenta de várias formas continuar, sendo sua forma de sustento. Não quero fazer aqui uma sinopse mais objetiva do filme, mas sim compartilhar algumas impressões que me deixaram instigada desde o primeiro instante. Primeiro, que enxergo ali uma discussão sobre a forma como os seres humanos estão sempre em uma tentativa de dominar e domesticar as outras espécies por puro entretenimento — vemos isso de maneira mais flagrante nos circos, zoológicos e outras atrações com animais, por exemplo, o que diversas vezes foge do controle para ambos os lados. É o que acontecem em uma das cenas do filme em que um macaco participava de um seriado de TV. Vemos seres humanos que não respeitam essas espécies que tentam domesticar. No início, o protagonista também explica as regras para que o pessoal da produção dos filmes que contratam os cavalos sigam com cuidado e respeito, o que mais uma vez não acontece.
Enfim, também é isso que os seres humanos tentam fazer com esse ser possivelmente extraterrestre, tentam capturá-lo, tentam utilizá-lo como uma atração, tentam lucrar em cima de um outro que está ali por razões desconhecidas. Não é isso também que os seres humanos fizeram com outros da sua mesma espécie? Não é disso que se trata o racismo? Uma tentativa de dominação e controle para benefícios pessoais de seres que se enxergam superiores e donos de direitos sobre os corpos alheios?
O filme traz outros diversos elementos que poderíamos discutir indeterminadamente, mas assistindo a entrevistas de Peele, é fácil perceber que aqui ele queria falar um pouco sobre a espetacularização mesmo, os shows, a forma como estamos sempre buscando nos entreter de qualquer forma que seja, mesmo que isso tire os direitos de outros seres, de outras espécies.
Sei que existe muito mais sobre o cinema de Peele que ficou de fora desse texto, e é justamente o que me fascina e me enche de esperança: continuar acompanhando um cinema do terror com roteiro de qualidade, atuações brilhantes e uma possibilidade imensa de leituras e de interpretações do que vemos em tela. Isso, para mim, é cinema de verdade.
Karla Lima é psicóloga, estudante de psicanálise e pesquisadora de gênero e mercado de trabalho.
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