Em As existências mínimas, David Lapoujade afirma uma pluralidade de modos de existência e observa como essas formas vão atravessando a construção do Ser. Experenciamos a vida em algumas dimensões, de acordo com o filósofo, e podemos transitar por elas: existir à nossa maneira — e não de qualquer maneira — é empreender a descoberta da existência por meio das singularidades. Lapoujade destrincha a obra de Étienne Souriau, filósofo da arte, especialista em estética, conhecido também por seu trabalho com o “pluralismo da existência”. Um dos pontos desenvolvidos no livro é de que nada é criado, mas sim instaurado e formalizado de novas maneiras.
Por esse aspecto, O amor dos homens avulsos, segundo romance de Victor Heringer, a partir da leitura de Lapoujade, instaura e formaliza duas temáticas que rondam as relações íntimas — o amor e a morte. De certa maneira, pode-se afirmar que muitos romances são uma espécie de catálogo de modos de existência, a literatura como plataforma de instauração do que veio antes e será, no discurso ficcional, modificado. Porém, na filosofia de Souriau, a preocupação com a existência gravita através de uma necessidade de distanciamento da realidade. O início do livro de Lapoujade está posto na ideia de que o sujeito é exterior ao real e não vice-versa. Camilo, personagem que narra a maior parte do romance de Heringer, fala de um lugar onde o sentimento de exterioridade faz parte de quem ele se tornou.
Ato contínuo, não se trata de estabelecer, por exemplo, distâncias dos acontecimentos passados. O amor dos homens avulsos é um romance para o qual o exercício da memória é muito caro. Por meio de lembranças de infância, o narrador apresenta o seu primeiro amor: Cosme, garoto que chegou, de repente, em sua casa, no bairro do Queím, no Rio de Janeiro, no final dos anos 1970. O Queím não existe no que se entende como paisagem concreta, passível de procura e caminhada. Mas, o Queím foi instaurado a partir de uma sensibilidade e de um modo de existência do subúrbio carioca. Dessa maneira, não só o narrador toma posição de afastamento do que se pronuncia por meio de rearranjos da exterioridade: o espaço, no romance, também é resultado de um olhar de formalização — diferente do que Heringer propõe no Glória, romance para o qual o bairro de nome homônimo é de extrema importância.
Também não se trata, na narrativa de Camilo, de um distanciamento de seu amor por Cosme ou mesmo dos mais dolorosos detalhes da morte brutal do menino, violentado e assassinado por um homem que frequentava a casa da família do narrador. Quando Lapoujade disserta sobre a pluralidade da existência é importante que se pense num sujeito para o qual o foco está na sua condição de exterior, de alguém que compreende a diferença entre existência e realidade. Em suas análises temporais, sociais, afetivas, políticas e familiares, Camilo parece um tipo de observador que se encontra em faróis: ilumina o que pode alcançar porque sabe que não adianta insistir no exterior — portanto, no que está fora de si — como sendo a única maneira de contato. O importante é compreender que se pode existir mesmo estando à parte, isolado na estrutura de um farol.
Assim, a realidade do romance, permeada pelo grande amor entre dois garotos e pelo fim dessa relação marcado por violência e morte, funciona como um lembrete de que a perspectiva da existência vai além do que de fato acontece nela, vai além da contingência e isso deve ser organizado, observado, remodelado por cada sujeito. Existências mínimas das coisas, como quando Camilo descreve todos os presentes que Cosme entregou antes de morrer — entre eles: pedrinhas pretas, caixa de fósforos Guarani, coruja de porcelana sem orelhas — são passíveis de criar a intimidade entre as pessoas, não importa se o convívio dure vários dias ou somente duas manhãs. Quando o narrador faz uma lista de “tipos” de pessoas, baseada em seus colegas da escola, meninos e meninas que se tornam modelo para qualquer outro ser no planeta, também demonstra uma ideia de arquivo de modos de existir. Modos esses atravessados por escolhas políticas, contingências, gostos, desvios, sexualidade, toda uma abrangência de circunstâncias e escolhas que permeiam a vida.
Lapoujade escreve: “Cada existência deve ser conduzida ao seu melhor estado, instaurando assim o plano que exclusivamente lhe pertence”. Em seus escritos, existe uma preocupação com a originalidade que, de certa maneira, parece tornar-se possível quando, de fato, o sujeito afasta-se do real ou media o seu contato com o que se interpreta como realidade. O amor dos homens avulsos é resultado de um processo para o qual a voz do narrador, que se põe em exterioridade, é como condução aos modos de existência. Assim, Camilo utiliza a memória e a linguagem para reorganizar à sua maneira de existir e repensar algumas fronteiras entre as dimensões que os corpos ocupam, modos de mudar, enfim, as perspectivas do mundo.
* Apêndice:
Estes parágrafos foram escritos em dias de muita chuva e de muito sol. Os ventos mantiveram-se em uns 14 km/h. Victor não está mais aqui, próximo aos meus modos de existência. Eu procuro elaborar a sua ausência lendo alguns livros e ouvindo Angola, La & 13th Amendment, de Christian Scott. O mar está muito longe deste texto.
Priscilla Campos é jornalista e crítica literária. Mestre em Teoria da Literatura na Universidade Federal de Pernambuco.
Ilustração de Carolina Nazzato
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