Nós podemos guardar memórias que não são nossas? Essa é minha primeira pergunta quando salto em Varsóvia do trem que tomei na Alemanha.
Centenas tomaram esse trem antes de mim, para um lado ou o outro. Minha segunda pergunta é se um dia um judeu poderá entrar em um trem Berlim-Varsóvia sem pensar que essa viagem significa algo para além dele. Se um dia poderemos existir sem que nosso caminhar nesse mundo signifique algo para além de nós.
Jonathan Safran-Foer diz que um judeu tem seis sentidos: visão, olfato, audição, paladar, tato e memória. Diferente dos gentios, para quem a memória seria um auxiliar, um conjunto de associações que acrescentam, mas não determinam sentido, para um judeu nada pode ser compreendido fora da memória. Nenhuma experiência é única, nenhuma existência é inédita. Cada picolé que tomamos na infância é um picolé que remonta a Isaac. Aos guetos. A Polônia.
Meus olhos verdes, minhas pernas longas, minha leitura voraz, nada disso me pertence. Tudo isso pertenceu ao meu avô antes de mim. Tudo isso, até onde sei, pode ter pertencido à Rainha Esther, mas definitivamente não pertence a mim. Mas quando salto do trem em Varsóvia, o único proprietário anterior que me interessa é meu avô.
Não sei bem se estou em Varsóvia para retomar o que é meu. Para apagar fantasmas e reivindicar uma existência que é só minha, completamente inédita. Talvez eu tenha vindo para dizer que nada me pertence nesse país, que eu não pertenço a ele. Que diferente do que afirma Safran-Foer nossas existências não pertencem a esse carrossel infinito da memória, que eu não poderia possivelmente lembrar dessa Varsóvia onde nunca estive. Que essa Varsóvia não é minha Varsóvia.
Mas eu sou mais inteligente que isso. Sou pelo menos inteligente o suficiente para não esquecer que escolhi entrar nesse trem após seis semanas estudando o Holocausto em Berlim. Que quando decidi estudar o Holocausto em Berlim decidi simultaneamente entrar no trem para Varsóvia. Como se as duas coisas fossem inseparáveis na minha mente. Como se a compreensão de uma não pudesse se dar sem a outra. Como se meu entendimento intelectual da história do meu povo, Berlim, não pudesse ser absorvida sem ser filtrada pelo sentido de memória, Varsóvia.
Sua Varsóvia não é minha Varsóvia.
Rosa Lublin, personagem da novela O Xale, de Cynthia Ozick, pronuncia essas palavras com desdém infinito para seu conterrâneo. Rosa, o paradoxo absurdo da sobrevivente, quer guardar uma Varsóvia aristocrática e intelectual, não manchada pela memória inescapável. Seu novo amigo, mais realista sabe que nenhuma das duas Varsóvias existe mais. Tudo que existe é a memória
Se judeus tem seis sentido, Varsóvia pode ser apreendida por apenas um. Sim, claro, é uma cidade de sons e cheiros e paladar. Do gosto de pierogis e vodca. Da primeira visão impressionante do palácio da ciência e tecnologia e das visões seguintes, da feia e deprimente arquitetura soviética. Mas nada disso faz sentido sem a memória.
Em Berlim, passamos infinitas horas tentando descobrir como representar a ausência. Ausência é uma condição especial: algo que estava ali, mas não está mais e por não estar condiciona tudo ao seu redor. Como representar a ausência de seis milhões.
Trazer a presença não é resposta. O que queremos que o público experimente é a ausência. É o que poderia ter sido e não foi. Ou mais um paradoxo: os que estavam aqui, não deveriam mais estar e agora estão. A não naturalidade de sermos judeus em Berlim. Como se fossemos pessoas sentadas em cadeiras invisíveis, perturbando a todos com o vazio que ao mesmo tempo preenchemos e não preenchamos.
Varsóvia sequer tenta representar esse vazio, mas para mim Varsóvia não é mais que vazio.
Em meu percurso acadêmico eu me pergunto: podemos herdar memórias? A memória é algo que se imprime em nossos genes, de modo que carregamos traumas incompreensíveis por incontáveis gerações? Ou é mais psicanalítico? Pais traumatizados criam filhos traumatizados que viram pais traumatizados e estamos todos novamente presos nesse carrossel macabro. Ou nossa cultura lembra? Pode uma cultura lembrar? Em uma cultura do trauma, todos nós lembramos do que nem lembramos. Todos nós somos educados em uma cultura fundada por uma lembrança que não possuímos. Se a cultura é nosso filtro para o mundo, então Safran-Foer está certíssimo, estamos filtrando o mundo por essa memória.
Qual a verdade em se dizer “minha família não foi vítima do Holocausto?”
É isso que eu vim descobrir em Varsóvia, na Alemanha, na Europa?
Na Alemanha eu descobri que nenhuma família que ficou em Varsóvia até mais que 39 sobreviveu. Faço contas aproximadas e calculo que minha família deixou a cidade em 1934. Penso em mim mesma cinco anos atrás. Outra vida, certamente e ao mesmo tempo tão próximo que mal senti esse tempo passar. O que são quatro anos no imenso carrossel da história?
Em São Paulo, eu conheço imigrantes de todas as partes: Itália, Japão, Bolívia, Alemanha, França. Nem todos, mas muitos deles, viram novamente sua terra natal. Ela era comum um parente distante, ou um amante em quem ainda pensamos com carinho, mas que sabemos que nunca teria dado certo. Eu revisto minhas memórias de amantes antigos com frequência e acho o exercício terapêutico: na maior parte das vezes só me pergunto onde estava com a cabeça e se é possível um ser humano já ter sido tão cognitivamente desafiado quanto eu fui quando saia com determinada pessoa. Mas ao mesmo tempo encontro certa paz, de que o fim que tanto chorei foi a melhor coisa que poderia ter me acontecido. Eu, idiota que era, não conseguia ver, mas minha sorte grande foi aquele pobre mocinho ter dificuldades de relacionamento. Me livrei de uma boa. Mas talvez, passado o tempo, passada minha vergonha de mim mesma, eu gosto de saber que ele ainda está ali, que existe como me deixou, me dá uma sensação de concretude de minha própria história, de que não sonhei nada daquilo, de que vivi de fato por mais idiota que fosse.
Penso que pode ser assim para terras natais. Pode-se até mesmo odiar um país deixado para trás e ao mesmo tempo gostar de saber que ele segue ali e é possível visitá-lo. Mas a Polônia não é mais a Polônia.
Minha Varsóvia não é sua Varsóvia.
Qual deve ser a sensação de deixar um país apenas para vê-lo ser transformado em marte? Bom, primeiro em um inferno dantesco e depois em marte. Ou em algo tão distante inatingível quanto marte. Inalcançável de qualquer forma.
Meu avô morrer sem ter visto de novo a Polônia, mas e se ele tivesse voltado? Depois dos campos, depois do comunismo, depois de tudo? Aquela Varsóvia seria sua Varsóvia? Faria sentido voltar? Como se representa em uma cidade todas as cidades que ela já foi?
Dizem que Jerusalém é uma cidade em camadas, que é tão antiga que as eras históricas se sobrepõe e todas as Jerusaléns existem ao mesmo tempo. Varsóvia é uma versão fantasma disso. Quando caminho pelas ruas eu sinto camadas de vazio. Quando eu ando pelos belos campos da universidade eu sinto o vazio dos judeus da época do meu avô, barrados do campus, uma ausência artificial e violenta e sinto o vazio deles agora, retornando à cidade tímidos como gatos. Sinto o vazio dos estudantes de 1968, sinto o vazio de todos aqueles que se um dia voltassem apenas descobririam que essa Varsóvia não é sua Varsóvia.
Penso em Csezlaw Miloszs. Ou na verdade não. Li seu livro de ensaios meses depois dessa viagem, mas a literatura me permite sobrepor tempos. Crio as memórias de Varsóvia que eu poderia ter tido se já tivesse lido Cszelaw Milosz quando estive lá. Enfim, penso em seus ensaios: uma nostalgia violenta e dolorida, um amor e uma jovialidade e um carinho pelos anos da guerra que parece absurdo até que lembramos que foram os últimos anos em que sua cidade foi sua cidade. Em ensaios elaborados e intelectuais o que ele lamenta é sua cidade que jamais será sua novamente.
Eu caminho por Varsóvia como se me lembrasse. Mas eu não me lembro. Não poderia lembrar. Se herdei os olhos, ou as pernas ou a paixão por leitura de meu avô, isso não me faz sua reencarnação, não ganho com isso suas memórias. Mas talvez eu não tenha herdado coisa alguma exceto a projeção dele em mim. Talvez nada em mim se pareça como nada dele, mas eu me tornei a personificação de uma ausência.
Irônico, quando minha geração é tão celebrada como uma presença, como a vitória sobre àqueles que nos queriam ausentes. Que legado terrivelmente pesado para uma geração.
Enfim, se me projetam gostos e aparência e temperamento, por que não poderiam projetar memórias? Eu lembro do que me foi de alguma forma transmitido. Se isso é verdade, então mais uma vez estou rodando no carrossel de Safran-Foer, compreendendo essa cidade desconhecida através da memória e explicando minha dor por todas as dores que vieram antes de mim.
Eu chorei todos os dias em Varsóvia. Nas ruas. No campus da universidade. Nas cicatrizes que cortam a cidade dizendo “Muro do Gueto”. No Memorial do Levante. Eu chorei por uma ausência e porque nenhuma dor que sentimos vem separada dessa linha de dor que nasce que quando Isaac entende que vai ser sacrificado pelo próprio pai. Somos todos filhos com um legado, todos filhos com esse pesadíssimo dever de sermos filhos.
Muitas vezes eu sequer sabia por que chorava. Posso chorar lágrimas que não são minhas de uma memória que não é minha? É verdade que não tenho direito a uma existência inédita, mas apenas a repetir esse teatro milenar de dor e memória? Eu vim até aqui em busca de rompimento ou reafirmação? Eu vim parar um relógio ou lhe dar mais corda?
“Quando um judeu sente uma alfinetada, ele se pergunta: como ela se lembra?”
Eu não tinha lido Cszelaw Milosz quando fui à Varsóvia, se tivesse eu teria respondido rapidamente que sim, posso ter memórias que não são minhas. Se posso me lembrar de uma cidade que nunca vi, que conheci pelos olhos de um polonês cristão aristocrático, porque não posso me lembrar da Varsóvia do meu avô de olhos verdes e pernas longas e leitura voraz, mesmo que dele mesmo eu mal me lembre?
Talvez eu de fato me lembre pra além de mim, me lembre como membro de uma família, de uma cultura, me lembre grupalmente. Talvez esteja escrito no meu sangue. Talvez a memória familiar crie narrativas tão poderosas quanto os contos de fada da infância. Acredito mais nisso. Na possiblidade da criação de memórias através da narrativa. Acredito, mais que tudo, nas narrativas.
Isadora Sinay é tradutora e doutoranda em literatura judaica na Universidade de São Paulo. Pesquisa sobre memória e Holocausto.
Ilustração de Carolina Nazatto.
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