O titulo desse texto é uma brincadeira com o titulo de um filme francês, Minhas tardes com Margueritte (2010), de Jean Becker.
No filme, Germain Chazes (Gérard Depardieu) é um homem simplório, de poucos recursos intelectuais, mas de enorme coração. “Ler? Tentei uma vez e não deu muito certo”. Germain mora em um trailer instalado no quintal de sua mãe, uma mulher problemática da qual ele não consegue se distanciar — nem física, nem emocionalmente. Quando questionado sobre por que morar tão perto da mãe, diz que seu problema com ela fica dentro da cabeça: “De nada adiantaria se eu morasse no fim do mundo”.
A impossibilidade de se distanciar da mãe, de tê-la imperando em seu psiquismo a ponto de já não fazer diferença estar ou não em sua companhia real, nos aponta uma questão curiosa também nas relações transferenciais. A dialética entre presença e ausência é parte essencial da relação analítica: o analisando toma seu analista como um objeto interno, muitas vezes sem conseguir suportar sua existência fora do setting. A vida do analista é sentida como algo estranho. Como compreender então a sua morte? É quase como um “tapa na cara” daquele que nega a existência do objeto. O objeto cria vida, uma existência paralela, que como as demais, é finita.
O belo roteiro se centraliza na relação entre Germain e Margueritte (Gisele Casadess), uma simpática senhora nonagenária apaixonada por livros. Num banco de jardim, alimentando os pombos, ambos amenizam a solidão, conversando entre livros e dicionários.
Celso Sabadin, em sua resenha, afirma se tratar de “um filme doce e terno sobre a beleza e a profundidade que as relações humanas podem alcançar. Ou que, pelo menos, deveriam”.
Será que todas as relações humanas deveriam ser assim? E como é que se dão as relações analíticas? Talvez a pergunta não seja exatamente essa, mas, sim, como pensar cada encontro analítico em sua singularidade— singularidade que surge no contato entre dois sujeitos. O que busco nesse texto é ilustrar, então, o que eu compreendo como um encontro singular entre um analista específico e sua analisanda.
No filme, é a partir dos encontros no parque e das leituras de livros que surge a possibilidade de intercâmbio, Margueritte estimula Germain a ouvir suas leituras e a conhecer dicionários, assim faz despertar nele a curiosidade por histórias, palavras, sonhos e desejos. Talvez esteja aí o ponto crucial em uma análise, a necessidade de despertarmos no outro a curiosidade por si mesmo. Margueritte fez com que surgisse em Germain uma sincera busca por conhecimento.
Em Clínica Psicanalítica e Neogênese, Bleichmar afirma, ao comentar o título do livro: “a – A curiosidade é produzida pelo enigma; b – O enigma implica uma ruptura com as certezas previas; c – Torna-se, em virtude disso, traumatismo, gerando um processo de desarticulações e rearticulações, o qual abre espaço para um movimento de recomposição teórica; d – o enigma coloca então em marcha a chamada pulsão epistemofílica (a partir do caráter excitante e traumático que lhe é inerente)”. É a partir dos encontros no parque e da transferência que é estabelecida que Germain ousa começar a ler. Quando se depara com um limite físico imposto à Margueritte — ela está perdendo a visão, é então o momento que Germain passa a acompanhá-la e, assim, começa a obter uma compreensão mais ampla de si e do mundo. É pela confiança de que aquela senhora estaria ali esperando que Germain é capaz de se perder e se arriscar em suas leituras e nas histórias narradas por ela.
A análise então é capaz de abrir novos horizontes, de letrar o analisando e fazer com que surja a curiosidade pela palavra, pela busca de sentido. Germain ganha de presente de Margueritte um dicionário e tem que se haver com aquilo que recebeu. Surge a possibilidade de dar significado a palavras desconhecidas, mas também a de não encontrar, no dicionário, aquelas que já eram conhecidas através do dia a dia, surge o vazio. É exatamente nesse espaço que pode vir a aparecer o sujeito em uma análise.
Acredito que os processos onde ocorrem encontros verdadeiros sejam absolutamente frutíferos. Respondendo a minha pergunta anterior, não sei se todas as relações humanas deveriam ser assim, mas sei que aquelas que são, são verdadeiros privilégios.
Cabe na relação transferencial duas correntes fundamentais, a da identificação e a da possibilidade de falar com aquele que não te responde de um lugar de espelhamento, mas que é capaz de garantir um espaço de potencialidade onde o sujeito do analisando possa emergir.
Talvez seja exatamente pela corrente identificatória que eu posso sentir o objeto plenamente vivo dentro de mim, mas será que só conhecemos o pai quando morto? Em Totem e Tabu, ao se referir a morte do pai da horda, Freud afirma que o pai, depois de morto pelos filhos, pode se tornar mais forte do que fora vivo. O pai ganha então alcance simbólico, como define Lacan. O objeto não precisa morrer concretamente para que o sujeito faça o luto da perda do objeto idealizado, mas o que acontece quando o objeto morre de fato?
Talvez haja uma precipitação daquilo que começava a ser elaborado, uma precipitação carregada de dor. É necessário que o analisando possa contar com o objeto de sua identificação internalizado para que dê conta de elaborar a perda real. Essa é a ironia da vida: contamos com o objeto introjetado vivo para que possamos elaborar a perda desse mesmo objeto. É esse objeto interno com características de amabilidade que é capaz de alertar para os limites da vida, inerentes a todos. Acredito que seja exatamente pela possibilidade de permanecermos com as memórias vivas e sólidas do objeto, que somos capazes de sobreviver à falta, a certeza de que foi experimentada uma troca absolutamente viva.
Costumava dizer que o espaço da análise era sentido como um oásis. A perda do analista implica em ser obrigado a criar um oásis interno que respalde as angústias e suporte a loucura. Oásis este que fora construído paulatinamente através de cada encontro, cada troca e cada escuta.
Germain faz um laço de amizade profunda com Margueritte e, quando ela é internada num asilo, distante da praça em que sentavam juntos para ler, conversar e ver os pombos, ele viaja para resgatá-la. A vontade de estar perto e acompanhá-la vêm do amor que sente por ela, pelas tardes que passaram juntos, mas também de uma gratidão profunda pela possibilidade de vida que ganhou após conhecê-la.
Quando me deparei com o adoecimento de meu analista, a única coisa que pensava era que gostaria que ele se sentisse tão acompanhado como sempre me senti pela análise. Acompanhada e cuidada.
Joel Dor afirma que, para Lacan, a concepção exata de cura analítica reside na possibilidade de uma palavra verdadeira que una o sujeito a um outro sujeito, do outro lado do muro da linguagem.
Reside aí a significação principal de uma análise, a possibilidade de um encontro que, sustentado pela escuta do analista, faça surgir uma palavra plena, naquele que se dirige a um outro imaginário, mas obtém resposta (se é que podemos falar em resposta) de um outro que permite emergir a verdade do sujeito. É no encontro analítico que surge a potencialidade criativa e é graças a essa escuta que podemos nos sentir verdadeiramente ouvidos e acolhidos no desamparo de nossa condição humana.
“Um encontro pouco comum, entre o amor e a ternura, não tinha outra coisa. Tinha nome de flor e vivia entre as palavras, adjetivos rebuscados, verbos que cresciam como a grama, alguns ficavam. Entrou suavemente desde o córtex, até o meu coração. Nas histórias de amor, há mais que amor. Às vezes não há nenhum ‘eu te amo’, mas se amam. Um encontro pouco comum. Eu a conheci por acaso no parque. Ela não ocupava muito espaço, era do tamanha de uma pomba com suas penas. Envolta em palavras, em nomes, como o meu. Ela me deu um livro, e outro, e as páginas se iluminaram. Não morra agora, há tempo, espere. Não é a hora, florzinha. Me dê um pouco mais de você. Me dê um pouco mais de sua vida. Espere. Nas histórias de amor, há mais que amor. Às vezes não há nem ‘eu te amo’, mas se amam”— poema recitado por Germain no fim do filme.
Esse artigo foi escrito na ocasião da morte do meu querido analista, Homero Vettorazzo Filho.
Texto de Gabriela Malzyner
Ilustração de Beatriz Leite
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