Poeta canônico da literatura brasileira, Manuel Bandeira também foi um excelente prosador. Ao contrário da sua obra em versos, permanentemente lida e apreciada, o seu trabalho em prosa permanece restrito a edições esparsas e esgotadas, relegadas ao título de mera curiosidade: trata-se de suas crônicas, que escreveu e publicou ao longo de toda a vida em diversos jornais brasileiros como uma forma de sobrevivência, expediente muito comum entre os escritores da época.
Rubem Braga, considerado o grande cronista brasileiro, considerava Manuel Bandeira o seu mestre. Em comum entre eles, além da leveza da escrita e do descompromisso com assuntos predeterminados, há elementos que se confundem com aspectos do próprio processo de modernização do Brasil, um processo conduzido a mão de ferro pelas nossas elites e, por isso, essencialmente falho e contraditório, destinado a manter posições e privilégios. Isso porque Bandeira, como outros autores, escrevia para um meio, o jornal, que era um dos símbolos desse processo, mas usavam o veículo para criticá-lo e apontar suas fissuras.
Da mesma forma que o romance se estrutura em torno do narrador e o poema no eu-lírico, a crônica parte da perspectiva subjetiva do cronista. Derivada da figura do flâneur, personagem que percorria as grandes cidades do século 19, observando a agitação da multidão sem, no entanto, tomar parte nela, o cronista caminha pela cidade e observa as transformações que se operam no espaço urbano. Em particular para Bandeira, que viveu as reformas do prefeito Pereira Passos no final do século 19 no Rio de Janeiro, testemunhar as alterações sofridas pela cidade na primeira metade do século 20 é uma experiência, muitas vezes, brutal.
O cronista é obrigado a recolher na paisagem os restos da memória, individual e coletiva, que ainda se encontram em meio a ruas abertas em avenidas, casas demolidas, praças abandonadas. No livro de memórias Balão Cativo, de 1973, Pedro Nava lamenta o desaparecimento das construções da infância:
“Devo a meu tio e as estes passeios o amor que nutro pelas casas velhas do Rio Antigo. Cada uma que cai é como um amigo meu que enterro. Atualmente encontro, às vezes, fragmentos despedaçados das ruas que conheci com tio Salles. Roletes de pernas, de braços – tal postas de cadáveres mutilados por prefeitos e governadores jack-the-rippers. Tudo se foi na ânsia de derrubar.”
Entremeadas com textos sobre poesia, resenhas de livros, peças de teatro e concertos e mesmo comentários sobre a situação política da época, as crônicas de Bandeira trazem reflexões sobre a passagem do tempo: recordações de infância no movimento das crianças que brincam na rua, lembranças de amigos falecidos nos quadros de uma exposição de Portinari, a rememoração de todo um convívio entre pintores e poetas que se abre junto um livro mandado por Cícero Dias, que morava na França ocupada pela guerra. A memória individual é o que costura os grandes fatos históricos e os pequenos eventos do dia-a-dia.
O tema da persistência da memória sob as ruínas da cidade transformada se mostra ainda mais interessante, entretanto, quando Bandeira deixa o Rio de Janeiro. A crônica de viagem é um dos subgêneros mais prolíficos da crônica — na qual Cecília Meireles, por exemplo, tem uma produção considerável. Mas, para Bandeira, viajar tinha um outro significado: ao ser diagnosticado com tuberculose, em 1904, aos 18 anos, ele partiu em peregrinação por diversas cidades do interior do país, em função da crença disseminada na época de que a doença estava relacionada ao clima. Algumas dessas crônicas de viagem são, portanto, relatos de retorno a lugares que Bandeira conheceu na juventude, em circunstâncias terríveis. Trata-se de tentativas não de conhecer, mas de recuperar paisagens e, com elas, fragmentos do passado.
Em um dos raros momentos em que um reencontro harmonioso com o passado parece possível, Bandeira revisita a cidade de Campanha, em Minas Gerais, na crônica intitulada O Fantasma, publicada em 27 de junho de 1956. O “fantasma” é o próprio cronista, que revisita a cidade depois de mais de cinquenta anos de ausência. Como sugere o título, o tom que perpassa o texto é de um conto de mistério, em que a redescoberta da cidade é narrada aos poucos, como uma revelação. No ambiente difuso, mal se distinguem as imagens do passado e do presente: de início, o visitante sente-se deslocado na cidade que encontra praticamente nova: a estação de trem e o largo da matriz foram “embelezados” – termo que Bandeira usa sempre de forma pejorativa, no sentido de “reformar para tirar a personalidade”. Eles se misturam ao Teatro Municipal recém-construído, “edifício execrável”, e à igrejinha barroca deformada por janelas abertas em ogiva. Ao mesmo tempo, descobrem-se coisas que sempre estiveram ali sem serem percebidas, como “as velhas casas coloniais autênticas, quadradas, as quinas os telhados com telhas em forma de asa de pombo”.
A herança colonial é uma das obsessões de Bandeira, que teve que abandonar os estudos no primeiro ano da faculdade de arquitetura. Mas, além da ligação com o passado frustrado, a busca insistente pelos detalhes arquitetônicos é uma forma de preservar uma memória do país que antecede o esforço das classes dominantes em criar uma estética de fachada, “colonial de fancaria”, destinada a forjar um passado que se sobrepusesse às construções realmente antigas e legitimasse aqueles que estavam no poder. Bandeira insiste em apontar que os edifícios construídos no nosso período colonial mantinham, por uma questão de economia, uma simplicidade que vinha sendo mascarada pelo chamado “colonial enfeitadinho”.
Em outros momentos, porém, o passado parece emergir em estado puro, como no encontro com as casas em que o poeta morou e que trazem à tona uma série de lembranças. Campanha é descrita como se fosse uma cidade-fantasma, onde as construções — em especial as antigas, como as casas coloniais e a igreja – parecem ser os únicos habitantes. A primeira pessoa que o visitante encontra é no hotel, onde “janta meio horrorizado com a cara do garçom, que parecia leproso”. Essa visão aterrorizante evoca a doença e a morte, que estão ligadas à questão da memória: Mnemosyne, a encarnação da memória na mitologia grega, preside o rio do qual os recém-chegados ao mundo dos mortos bebem para se lembrar das antigas encarnações.
O cronista sai novamente para rever a cidade, que agora se personificará em Donana. Não se explica o relacionamento da habitante de Campanha com o visitante, mas a moça que Bandeira conhecera outrora também é transformada numa “heróica mãe de família do interior”. Mas, da mesma forma que algumas casas de Campanha, as quais, ao preservarem o aspecto de antes, suscitam as lembranças do poeta, a “dentadura perfeita” de Donana, de que se lembrava o visitante, continua intacta “como um reduto”. Assim, através dela, a cidade é como um baú de recordações, uma vez que ela conta “coisas de minha mãe e de minha irmã, coisas que eu não sabia e que me fizeram bem, como certos retratos que a gente não conhecia”.
Trata-se de uma situação rara nas crônicas de Bandeira: em geral, é ele quem se recorda. Ele é a única fonte das informações que se perderam, o único que ainda percebe detalhes do passado escondidos pela cidade. Um exemplo é a crônica sobre o Largo do Boticário — local que ainda existe no Cosme Velho, no Rio de Janeiro, a alguns metros de onde ficava a casa de Machado de Assis. Bandeira conta para um interlocutor imaginário, na verdade o próprio leitor, como cada casa perdeu seu verdadeiro aspecto colonial e a única coisa que continua intacta desde a sua infância é a mangueira, que ainda fica à direita de quem entra no Largo. Por isso que o narrador se define, na crônica sobre a cidade mineira, como um “fantasma”: ele é a sombra do passado que vem incomodar e assustar os vivos, os que estão preocupados com o presente.
Bandeira vai embora de Campanha ainda de madrugada, simbolicamente entre brumas, entre “neblinas se rasgando”. “Às 6.35 o fantasma reencarnou no dia já claro da estação de Cambuquira e foi diretamente lavar o fígado na fonte magnesiana”. O retorno da cidade parece o despertar de um sonho, ou a volta de uma viagem ao mundo dos mortos, com o detalhe da água bebida que se assemelha ao rio Lethe, o rio do esquecimento das vidas passadas, bebido pelos espíritos na saída do Hades. A cidadezinha é um lugar fantástico, em que as barreiras do tempo desaparecem e em que se estabelece, mesmo por um curto momento, uma ponte entre o mundo dos vivos e dos mortos.
“Qual a função da memória? Não reconstrói o tempo, não o anula tampouco. Ao fazer cair a barreira que separa o presente do passado, lança uma ponte entre o mundo dos vivos e o do além, ao qual retorna tudo o que deixou à luz do sol. Realiza uma evocação: o apelo dos vivos, a vinda à luz do dia, por um momento, de um defunto.” (Ecléa Bosi)
Esse clima sobrenatural vivido por Bandeira na cidade-fantasma é o que impede o conflito habitualmente vivido pelo cronista ao reencontrar-se com velhos lugares, quando se frustra por não os encontrar no presente da mesma maneira em que os recordava. Aqui, é como se o passado estivesse imerso no presente, unindo em um único plano as imagens percebidas e as imagens recordadas, de forma que a visão dos lugares não o confronte com a passagem do tempo. Como é próprio à memória, a paisagem se altera para corresponder a expectativas presentes no indivíduo.
Como coloca Ecléa Bosi, em seu estudo Memória e Sociedade, “é o passado concentrado no presente que cria a natureza humana em um processo de contínuo reavivamento e rejuvenescimento”. É contra o apagamento do passado, e com ele de um sentimento de humanidade, que Bandeira escreve, depois de ter sido obrigado desde muito jovem a mais observar do que agir, e denuncia um processo ainda mais grave do que o apagamento do passado, o seu mascaramento. Textos raros, não apenas pela sua parca divulgação, as crônicas de Manuel Bandeira são um delicado testemunho desta natureza que não se deve perder.
Sylvia Tamie é professora e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo.
Ilustração de Carolina Nazzato.
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