Não seja uma mulherzinha. Isso é coisa menina. É fácil perder as contas de quanto um homem ouve as variações dessas mensagens ao longo de sua vida. Com a maior visibilidade do debate feminista e a luta por igualdade de gêneros, cresce também a discussão sobre as formas como a cultura patriarcal oprime tanto mulheres como homens. No documentário The Mask You Live In (2015, Netflix), a diretora americana Jennifer Siebel Newsom observa vários aspectos da construção social da masculinidade e de seu impacto na vida dos meninos.
Embora seja centrado na realidade dos Estados Unidos, o documentário analisa questões pertinentes à realidade ocidental de maneira geral. A reprodução acrítica de estereótipos de gênero, a ideia de masculinidade como oposição aos atributos tomados como femininos e a naturalização da agressividade entre meninos são parte incontestável de nosso dia a dia.
Uma das sequências iniciais do documentário traz crianças falando sobre sentimentos reprimidos e sobre a falta de espaço para externarem tristeza e solidão. Se a ideia de felicidade propagada pela mídia é fonte de frustração recorrente para os adultos, de outro lado, diante da romantização da infância como a época mais feliz de nossas vidas, existe uma recusa em admitir o sofrimento das crianças, assim como do direito de sentirem e lidarem com emoções consideradas negativas.
Desde a pré-escola, os meninos ouvem: engula o choro. Homem não chora. Bate de volta. Você precisa se defender. No entanto, essa agressividade estimulada nos primeiros anos de vida é desassociada da banalização da violência entre adultos. A cultura em que vivemos é misógina e homofóbica em boa parte porque o ideal de ser um homem está ligado ao de não ser uma mulher ou um homossexual. “A dependência radical do sujeito masculino diante do Outro feminino expôs repentinamente o caráter ilusório de sua autonomia”, observa a filósofa Judith Butler em seu livro Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade.
A construção da masculinidade com base no que um homem não deve ser deixa de explorar características importantes, como ser compassivo, comprometido, cultivar amizades, ter sensibilidade.
A cultura pop trabalha com representações empobrecidas do que é ser homem e do que é ser mulher. Se comédias românticas repetem à exaustão a narrativa da mulher solteira em busca de um relacionamento, filmes de ação apresentam homens pouco articulados, envolvidos em lutas e tiroteios, muitas vezes movidos por justiça ou vingança. São raras as demonstrações da masculinidade como uma construção complexa ou em crise, como ocorre na série Mad Men. Lá, embora os publicitários da Madison Avenue realizem o sonho americano, estão insatisfeitos e infelizes. Permanecem incapazes de perceber as mulheres às sua volta como seres humanos com ambições e desejos autônomos e sentem dificuldade de estabelecer conexão com seus filhos.
As narrativas sobre a masculinidade tradicional associam o homem ao desempenho nos esportes, ao sucesso financeiro e às conquistas sexuais. As três possibilidades são achatadas, desumanizantes. O atleta, visto como um representante de valores como a superação, a integridade ou o exemplo de caráter, encontra poucas oportunidades fora do universo profissional de elite. Desde a infância, os que não demonstram aptidão são excluídos. Os últimos a serem escolhidos nas aulas de educação física são ridicularizados.
Já o dinheiro é um parâmetro elástico na sociedade capitalista. Quanto é suficiente? Quanto será necessário para conquistar estabilidade e autonomia ou, ainda mais subjetivo, para projetar a imagem de sucesso desejada? Os símbolos de status e as “necessidades” materiais criadas pela publicidade apoiam-se sempre na falta, enquanto a presença de um pai, marido ou amigo, a qualidade de vida e o cuidado com a própria saúde física e psíquica são sacrificados em favor das aparências. Relatos frequentes de homens que assassinam suas famílias e em seguida cometem suicídio são atribuídos à insegurança financeira, tristes exemplos de uma masculinidade em crise. Homens que experimentam a instabilidade ou o fracasso diante dos parâmetros capitalistas e que não conseguem pedir ajuda. Sem reconhecer o que vai mal, não encontram possibilidades de saída.
As conquistas sexuais são o aspecto mais criticado da representação tradicional da masculinidade. O comedor, o galinha, o adúltero, o canalha, o cafajeste. Há dois pesos e duas medidas no julgamento das experiências sexuais de homens e mulheres, o que implica na desvalorização de homens que não tenham comportamento predatório. O heterossexual disposto a se relacionar com mulheres sem objetificá-las tem sua masculinidade questionada. Se um homem é desencorajado a humanizar as mulheres, o que isso diz sobre a distância para alcançar a igualdade?
The Mask You Live In é parte do The Representation Project, uma iniciativa para estimular o debate entre pais e educadores sobre estereótipos de gênero, por isso tem momentos didáticos e até mesmo moralistas, como ao analisar a banalização da violência nos vídeo games e na TV. Algumas observações soam simplistas, mas o filme não perde seu valor por isso.
Os relatos pessoais estão entre os pontos altos do documentário. O ex-jogador da NFL Joe Ehrmann, universitários e jovens do ensino médio comentam o bullying e a dinâmica abusiva na prática de esportes. Surgem histórias sobre a dificuldade de relacionamento com o próprio pai, devido a falta de espaço para tratar de emoções. Relatos de diversas formas de abuso traçam um mosaico de diferentes experiências masculinas que recebem pouco espaço na mídia tradicional.
O grande mérito do filme é trazer o foco paras as crianças e mostrar como a ideia vigente de masculinidade é uma construção social que merece ser questionada. Um estereótipo que achata a complexidade humana, naturaliza a violência e impõe sofrimento tem consequências que reverberam ao longo de toda vida adulta. É necessário repensar como a socialização dos meninos contribui para a repetição acrítica das narrativas equivocadas sobre o que significa ser um homem.
O desejo de que uma criança seja aceita pode levar um adulto a aconselhá-la a representar um papel, projetar uma imagem para garantir sua segurança, usar uma máscara perpetuando dor e preconceitos, sem levar em consideração os danos causados por essa orientação.
The Mask You Live In é o desdobramento do primeiro documentário da diretora, Miss Representantion (2011), que aborda os estereótipos da feminilidade. Os filmes se complementam, demonstrando como a cultura se manifesta na mídia e na indústria de brinquedos explorando os extremos mais díspares das representações de gênero, acentuando distâncias, oposições. Fala-se pouco das semelhanças.
A desconstrução de um imaginário cultural sexista é um processo longo, que solicita envolvimento constante. Mas quando pensamos em dar às crianças uma educação mais questionadora, pautada no respeito, o impacto para as próximas gerações pode ser significativo.
A forma como Newsom relaciona a ideia de uma masculinidade que desconsidera a vulnerabilidade e a empatia à cultura do estupro, ao abuso de álcool e de drogas, aos altos índices de suicídios e de criminalidade é assustadora, e esse é um dos objetivos do filme. Embora uma hora e meia seja pouco para desenvolver temas tão complexos, o documentário aponta uma direção ao mostrar como a sociedade apresenta modelos excludentes, que são fonte de frustração e isolamento.
Um indivíduo que não constrói laços significativos associa seu valor pessoal ao extrato bancário e outros marcadores de sucesso, está sempre em busca do que vem a seguir: mais sexo, mais dinheiro, mais status. Assim como uma mulher que persegue padrões de beleza inalcançáveis irá investir seu tempo e recursos em cosméticos, cirurgias e tratamentos estéticos, o homem fica prisioneiro de uma fórmula.
A hipermasculinidade e a hiperfeminilidade podem ser encaradas como dois extremos de um espectro dos gêneros, mas também como dois lados de uma mesma moeda. Enquanto adoecemos, o consumo continua movendo o mundo.
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