Marcha soldado, cabeça de papel
A distopia é aqui. A realidade superou qualquer ficção imaginada e é prudente não fazer projeções. Como chegamos a esse ponto? A resposta é: nunca saímos do ponto, seja em âmbito nacional ou mundial. Para entender o que está acontecendo, é preciso fazer um panorama histórico com o auxílio valioso de narrativas ficcionais. É preciso levantar a história do começo que nunca terminou.
Inicialmente, preciso entender como o Brasil chegou à Proclamação da República, responsável pelo feriado de 15 de novembro. Não se tratou de um movimento com intenções democráticas, e sim de um golpe combinado com as elites civis e militares, servis dos interesses europeus. A ideia de um Marechal Deodoro Fonseca heróico e revolucionário cai por terra com uma busca simples: o militar era próximo a Pedro II e não chegou a haver animosidade entre ambos. A República era inevitável para servir aos interesses dos credores (a maior parte países europeus, mas já na época da Primeira República o Brasil começou a dever massivamente aos EUA) do Brasil. O rei foi deslocado do poder, exilado de modo amigável e o governo passou para um autointitulado regime federalista e democrático, imposto à força e constituído como simulacro da realidade europeia como quase toda a organização institucional brasileira desde que foi invadido por Portugal em 1500.
Não houve tempo para pensar numa democracia fora dos moldes europeus (brancos, sectários, limitados pelo capitalismo industrial e especulativo em ascensão). Lima Barreto já denunciava isto em muitos de seus escritos: “que Constituição deveremos copiar?”, o narrador do romance-relato Os Bruzundangas ressalta como a preocupação dos constituintes incumbidos de redigir a Magna Carta. A diversidade étnica, a administração das dimensões continentais do país, a redistribuição de rendas e terras não entraram nessa conta, pois a preocupação era higienizar a recente nação e apagar quaisquer indícios de presença do que não fosse branco, europeu ocidental e cristão de acordo com os padrões das metrópoles. Tudo a nós foi imposto (instituições políticas, estética, organização social), tentando sufocar, silenciar e apagar modos de vida diferentes dessas referências.
O gosto brasileiro pelo totalitarismo, seja civil ou militar, ultrapassou Getulio Vargas e seus flertes com o fascismo. Na verdade, o ranço militarista da República Velha perdurou com o rancor de não haver militares exercendo diretamente o poder e sem muito controle da “ordem”, até o golpe militar de 1964. Sociedades com potenciais autoritários mal resolvidos desembocam em ditaduras. No caso do Brasil, é possível enxergar o passo a passo das ascensões do autoritarismo (este advindo das imposições e silenciamentos da metrópole em relação aos colonizados, em especial quanto aos povos originários e aos negros escravizados).
Longe de serem provocadas por crises externas, o cerne destas perturbações no regime de governo é pensado de modo a implodir sistemas democráticos emancipatórios (a campanha presidencial baseada em fake news e a consultoria prestada por Steve Bannon, é um exemplo). As crises, ameaças e inimigos são criadas com incentivo externo (EUA e Europa), com o fito de favorecer os grandes especuladores, locais ou de outras nacionalidades. Assim são tramados os “grandes acordos nacionais”.
Espoliar, explorar, exaurir: este é o legado da Europa e dos Estados Unidos, dentro e fora de seus territórios; os discursos vendidos sobre igualdade de oportunidades e transparência são arquitetados para deslumbrar incautos, mas a realidade não é assim: há excluídos, pobreza endêmica, extermínio de minorias. A verdade é editada e as inconveniências são varridas para baixo do tapete. Assim como a Europa produziu Hitler, também produziu, por exemplo, Lothar von Trotha (alemão responsável pelo genocídio dos povos hererós e namaquas entre 1904 e 1907, na região correspondente a atual Namímbia, cuja existência o governo alemão só admitiu em 2016) e Leopoldo II (rei belga), que matou 10 milhões de congoleses que foram convenientemente esquecidos. Dividir, dominar, apagar.
A dificuldade de manejar a democracia em sociedades com aparência iguaitária, mas que, abaixo da superfície, são profundamente desiguais e incapazes de administrar sua diversidade, fica evidente na ficção especulativa Complô Contra a América, do escritor americano Philip Roth. O autor disseca uma sociedade não tão livre e com propósitos não tão nobres para alguns de seus cidadãos.
Apesar de algumas imprecisões e omissões, a narrativa de Roth se põe em um eixo coerente quando aborda a possibilidade (que no avançar do livro se torna cada vez mais verossímil) de uma shoah (nome correto da perseguição e matança em massa de judeus na Segunda Guerra Mundial. Holocausto se refere a sacrifício, e não houve dação em sacrifício destes povos de modo algum, em nenhum sentido) nos Estados Unidos: judeus, mas, em especial, os negros e os povos originários seriam minorias a serem executadas num país muito mal resolvido com os imigrantes não-wasp e os povos diaspórico no governo do quase presidente Lindbergh, que flertava com ideais fascistas e tinha a aura de herói salvador que todo governo demagógico requere. Quanto ao ensaio do fascismo americano do quase presidente Lindbergh (hoje eloquentemente demonstrado por Donald Trump), temos, além da política de extermínio dos povos originários, o genocídio dos filipinos cometido pelos Estados Unidos entre 1889 e 1913 e claro, o maior ato de terrorismo de guerra: as bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki lançadas contra civis no Japão.
O fascismo, os massacres, os regimes de exceção não acabaram porque Primo Levi, Anne Frank ou Marguerite Duras narraram suas experiências e menos ainda com a dissecação das origens do autoritarismo por autores como Hannah Arendt. Talvez, e muito superficialmente, o combate ao discurso antissemita, racista e xenófobo esteja demonstrado na política oficial da Alemanha, e só, mas na realidade os partidos da extrema-direita crescem inclusive por lá.
Se a Europa, com todos os seus memoriais e admissões de que de fato ocorreu uma das maiores tragédias humanitárias (nem chega perto de ter sido a maior) ainda tem contas a acertar com seu passado. E, não esqueçamos: o que a Europa se orgulhava de ter varrido de seu território foi usado por eles mesmos como arma para desestabilizar e dominar países no mundo inteiro. Do colonialismo cruel na África e Ásia até os complôs para desestabilizar governos na América do Sul, invocando um “perigo comunista”, absolutamente nada mudou em relação à violência dos atos: o único deslocamento foi espacial. O que talvez tenha surpreendido a Europa na Segunda Guerra Mundial, foi ver atrocidades que praticadas fora deste continente serem trazidos para perto.
A Europa e os Estados Unidos usam distorções de verdades em discursos amplamente divulgados para apropriação de recursos no mundo inteiro: desestabilizam democracias progressistas, invadem países sob argumentos de ajuda humanitária, incentivam a ascensão de governos que ameaçam direitos fundamentais. Os leilões do pré-sal brasileiro, noticiados modestamente pelos meios de comunicação, ilustram muito bem esta situação: a perversão institucional com um discurso de crise inteiramente fabricado depôs o governo sob a justificativa vaga de “combate à corrupção” e trouxe os leilões de lotes, antes monopólio de exploração da Petrobrás (primeira desenvolvedora da tecnologia que permitiu a prospecção do petróleo nas profundezas oceânicas do pré-sal), principal atingida pela Operação Lava-Jato. Tudo se encaixa. Tudo foi ensaiado muitos anos antes, basta observar o que houve no Oriente Médio. O Brasil, infelizmente, caminha para se tornar a primeira República Fundamentalista Neopentecostal Universal do Reino de Deus, nossa versão de governos talibãs, sultanatos e repúblicas fundamentalistas islâmicas. E falo sem qualquer ironia, sem qualquer tom de troça.
Novas ameaças e inimigos são fabricados pelos discursos totalitários todos os dias: um deles é o terrorismo (para boa parcela da população, infelizmente, “a ameaça do comunismo” não é apenas uma piada, mas um discurso crível), um conceito muito vago, mas que ignora convenientemente o terrorismo de Estado, que exclui, persegue e extermina a população negra e indígena.
Um exemplo: muitos evocam o fato de “guerrilheiros do Araguaia” não terem sido punidos pelos crimes que praticaram por conta da Lei de Anistia. O Estado, este sim devedor de cumprimento de pactos civilizatórios e de proteger e garantir direitos aos seus cidadãos, foi o primeiro a falhar neste acordo com investidas autoritárias: uma parcela da população organizou uma resistência contra este Estado, mas a afronta primeira foi o ato governamental que perseguiu, torturou e matou pessoas sob a justificativa de guerra ao comunismo.
A responsabilidade estatal brasileira por seus crimes contra a humanidade (torturas, execuções sumárias, desaparecimentos) é oportunamente esquecida em nome da demonização de poucos civis que encontraram modos de resistir. E a nova redação da Lei Antiterrorismo torna quase todo ato de desobediência civil passível de punição como crime hediondo: mais uma vez, e como nunca antes, a resistência pode ser tomada como crime.
Os terroristas agora não são os que pegam em armas, somos os que protestam nas ruas, os que resistem, os que têm esperança e lutam por ela. Somos os guerrilheiros sem quaisquer armas senão palavras e vozes.
Lara Matos é formada em Direito pela Universidade Federal do Piauí e pós-graduada em Direitos Humanos. Autora da página Caixa de Abelhas, colaboradora da Revista Pólen e de outras publicações.
Ilustração de Sumaya Fagury
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