Há um aforismo de Franz Kafka que diz: “A partir de certo ponto não há retorno. É este o ponto que precisa ser alcançado”. Em A paixão segundo G.H., romance de Clarice Lispector, a personagem principal, de cujo nome só sabemos as iniciais, atravessa esse limiar dito por Kafka — e que orienta toda a narrativa — a partir de uma “lenta e grande dissolução” que atravessa a si mesma. Logo no começo do romance, ela descreve:
“Perdi uma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com as duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma ” .
O luto — processo pelo qual “a sombra do objeto caiu sobre o ego” (Freud), ou seja, a perda de um objeto recai no eu a partir de uma identificação do ego ao objeto perdido — é vivido por G.H. como a perda de uma organização que a personagem criara, a “terceira perna” que a fazia estável. Iniciamos a travessia narrada sem saber que organização é essa, apenas que se refere ao mundo banal de uma mulher, artista plástica e burguesa que vive no Rio Janeiro e que, pedindo que o leitor a dê a mão, como quem pede ajuda, tenta contar a experiência-limite que vivera no dia anterior e, para isso, diz que teria de “remorrer”.
Em uma de suas cartas, Rainer Maria Rilke afirma que uma experiência difícil nos puxa, com seu peso, ao centro da vida, cuja gravitação é inalienável. A essa experiência ele chama de “desligamento do que é confiável, familiar ou amado — que se chama erro, alegria ou separação” e que, se vivida com paciência, faz experimentar uma “inserção no todo”.
G.H. diz que a terceira perna fazia dela “um tripé estável”, logo o adjetivo “estável” está atrelado à imobilidade do tripé. Entretanto, sabemos que caminhar exige uma estabilidade — inclusive até maior do que a de permanecer imóvel. Em contraposição à ideia de estabilidade do tripé, de que consistiria, então a instabilidade do caminhar? É que a perda que gera o movimento da G.H., o caminhar sustentado pelas duas pernas, traz, em vez de a ideia de peso gravitacional dita por Rilke, a de suspensão.
A dissolução vivida por G.H. acontece quando, após demitir a empregada, ela decide fazer uma faxina no quarto desta e, em vez de encontrar uma desorganização à qual ela poderia emprestar sua noção estética de artista plástica, ela encontra um quarto já limpo e arrumado e daí parte sua desorganização interior — primeiro por encontrar um desenho rude feito a carvão na parede pela funcionária, o qual retratava um homem nu, uma mulher nua e um cão “mais nu do que um próprio cão”; depois por encontrar uma barata, a qual ela mata.
Esses dois elementos são chaves da dissolução. O primeiro escancara a imagem da G.H. perante si a partir da representação, a mulher nua na parede, que uma terceira pessoa faz dela. A vertigem é tamanha que G.H. esquece o rosto e o nome da empregada que trabalhara — e morara — na casa dela por seis meses. Nesse ponto, fica difícil dizer se isso se dá pela experiência de dissolução ou por “(des)afetação burguesa” que simplesmente não olha para alguém que o serve, já que, em leituras superficiais que atravessam o político, G.H. parece ter alguma noção social de seu lugar privilegiado de artista-plástica-mulher-sem-marido-e-filhos em um contexto da década 1960, porém também tem visões extremamente ingênuas sobre trabalho e classe a ponto de dizer que sua noção estética de artista plástica serviria, se tivesse nascido em outro lugar social, para ser, por exemplo, uma arrumadeira que passaria o dia todo organizando (como se esse trabalho se constituísse de um simples e leve organizar ou como se fosse, para os que o exercessem, uma escolha). Entretanto, logo mais G.H. relembra que a empregada tinha rosto de rainha, que se chamava Janair e entende, a partir do desenho, que tinha pela patroa um ódio silencioso.
O segundo elemento faz com que ela entre em contato com o que chama de “transcendente”, “irredutível”, “inexpressível”, “indiferente”, “neutro”, impessoal”, “cru” e “silêncio”, que está presente na matéria branca insossa que sai da barata ao ser morta. Essa ideia está expressa também na epígrafe do livro, de Bernard Berenson, que diz: “A complete life may be one ending in so full identification with the non self that there is no self to die” (e foi mantida em inglês na publicação).
Essa experiência-limite, para ser narrada, faz com que G.H. perca o medo do feio, não só na experiência que viveu, mas ao descrevê-la, usando termos que ela diz que jamais escolheria, como “vagalhões de mudez”. Ao longo da narrativa, essa suspensão estética passa não só a ser uma perda como a ser uma escolha de G.H. para que se aproxime do que transcende, criando uma “moral que prescinde da beleza”, pois esta era usada de modo a enfeitar a coisa “para poder tolerar-lhe o núcleo”. A imagem do feio está presente em toda a obra de Clarice, em Água viva é dito: “A feiura é meu estandarte de guerra. Eu amo o feio com um amor de igual para igual”. É interessante relembrar que G.H. é uma artista plástica e seu lugar social no mundo se funda no pacto de um trabalho que não precisa ser belo, mas deve se direcionar pelo estético — e ela rompe com isso.
A principal suspensão de experimentação física de que temos conta é a de deformação sensorial do próprio quarto. Como “realidade material”, ele era um quadrilátero regular, mas para G.H. era visto como “um erro de visão, a concretização de uma ilusão ótica” que fazia que ela não se sentisse dentro dele, como se não tivesse “profundidade para me caber e deixasse pedaços meus no corredor, na maior repulsão de que eu já fora vítima: eu não cabia”. O quarto, descrito em oposição à casa, feita e organizada por G.H., em seguida passa a ser um lugar do qual ela não consegue sair. Quando ela tenta retornar à casa, ela tropeça e cai.
A partir de sua tentativa de aproximação do que é neutro, G.H. entende que deveria chegar ao instante de não transcender mais a coisa e encontrar a redenção na própria coisa. Para isso, teria de transpor também a concepção de nojo ao “botar a boca na massa branca da barata”, ação que é em si eclipsada da própria narrativa. “Por que eu teria nojo da massa que saía da barata? não bebera eu do branco leite que é líquida massa materna? e ao beber a coisa de que era feita a minha mãe, não havia eu chamado, sem nome, de amor?”.
Nesse ato de coragem, G.H., que no começo do livro se chocara com a representação de sua imagem através do desenho na parede, agora se insere em uma despersonalização de si ao se limpar dos excessos que a definem e ir direto ao centro, que parece ser o que se chama de arché. “Quem se atinge pela despersonalização reconhecerá o outro sob qualquer disfarce: o primeiro passo em relação ao outro é achar em si mesmo o homem de todos os homens”. E, a partir disso, diz ter se deseroizado, que “é o grande fracasso de uma vida”: tentar e desistir e então chegar o prêmio, que é a própria desistência.
Essa deseroização serve também à própria narrativa, pois G.H. jamais pode ser posta na personagem-herói e em seu trajeto, porque não segue uma trajetória definida e não conquista nada. Nem mesmo o conceito de epifania pode ser usado, porque não há “nenhuma intuição sensível de uma presença integral ou “experiência mística” do vazio (pleno); há antes uma vertigem ou falência da experiência” (Prado Jr.).
Aliás, a mais permanente suspensão aqui é a da própria linguagem que é usada para reconstruir a trajetória de G.H., mas é incapaz, só “serve de ‘passagem’ por sobre um abismo que há entre a forma e o sem-forma, a palavra e o afeto, permitindo exprimir – mas apenas negativamente – o inexprimível, permitindo aludir ao inominável” (Prado Jr.) e, ainda sim, estar em contato com ele, o que faz com que os personagens de Clarice, não só a G.H., constituam-se à imagem de Tântalo. Quase ao final do livro, G.H. atesta:
“Eu tenho à medida que designo – e este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar. A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la – e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas – volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu.”
Se a experiência difícil e a inserção no todo de Rilke passam pelo peso gravitacional, em Clarice encontramos a gravidade apenas como propulsora da queda que acontecerá — mais cedo ou mais tarde. Entretanto, a experiência da queda não se desenha em direção ao chão, mas à suspensão de que sua narrativa se vale. Em Clarice, experimenta-se a inserção no todo de Rilke, mas ela não é conciliatória (muito menos uma recompensa, como ele parece descrever), e sim uma forma mais lúcida de experimentação da existência, forma essa que beira à loucura.
De Clarice, o leitor pode experimentar um ensaio da experiência da queda, pois a viveremos, em sua dissolução e solidão impossíveis de serem transpostas em linguagem, mas, na narrativa clariceana existe a possibilidade de experimentá-la com o consolo de que a queda se dará a partir de um tropeço na literatura, e não na vida. Da concepção de luto, em Clarice encontramos algumas fases que podem abarcar o processo — a perda do que era familiar que gera uma perda à constituição do eu, a despersonalização em busca de uma reconstituição, a suspensão frente ao mundo concreto e a busca de transpor a experiência à linguagem (por mais que esta seja falha) de modo a criar ou procurar um significado — esse último aspecto lembra muito um processo terapêutico. Não à toa que, quase ao final do livro, G.H. diz, diretamente ao leitor: “E agora não estou tomando tua mão para mim. Sou eu quem está te dando a mão”.
Gabrielle de Castro Albiero é jornalista, professora e autora do livro-reportagem PANGEIA — Fragmentos da guerra da Síria no Brasil ao lado de Luiza Aguiar.
Imagem: Fotografia de Maureen Bisilliat (Acervo IMS).
0 Comments