Se eu fosse obrigado a reduzir o projeto literário de Alice Munro, diria que ela conta histórias que são a negação do moralismo. Não devemos presumir que o moralismo tenha algo a ver com a moral. Moralismo é a atitude que todos temos de querer que outros confirmem nossas crenças e valores. Por isso, toda época tem sua arte moralista, com obras que não são mais do que exemplos dentro de um argumento retórico: o pecador arrependido, que prova que o pecado não compensa; o self-made man, que prova que o trabalho compensa; o representante “empoderado” de uma minoria, que prova sua força e sua independência. Obras que passam uma mensagem — e há quem diga que toda obra encarna alguma mensagem, isto é, que toda obra corporifica um argumento retórico. Ao mesmo tempo em que admito que essa discussão poderia estender-se, não posso deixar de observar que é esse tipo de raciocínio que coloca a intenção na frente da realização, e de boas intenções muitos de nós já estamos de saco cheio.
Alice Munro não quer nos convencer de nada. Quer apenas mostrar que muitas situações não são sequer para ser decididas pelos leitores. Por exemplo: os três contos que formam a história que inspirou o filme Julieta, de Pedro Almodóvar, falam, entre outras coisas, de um fato muito grave: uma filha se muda para uma comunidade alternativa, e, com o passar dos anos, deixa de falar com a mãe. A comunicação simplesmente para. O leitor acompanha a mãe, a protagonista, na expectativa de uma resposta. Essa resposta traria alguma condenação para uma das partes. A filha agiu mal, ou reagiu mal a uma ação má da mãe? Terá sido raiva? Medo? Vergonha? O leitor faz perguntas a si mesmo enquanto testemunha o esforço da mãe para permanecer uma pessoa normal. Munro até joga armadilhas: não é isso o que faz a filha de uma mãe que teve um bebê fora do casamento (quando isso ainda era um tabu)? No entanto, nada no texto nos permite inferir que seja essa a opinião de Munro. Não podemos ter ideia de nada — se quisermos ser fiéis ao corpo do texto.
Nesse corpo, o convite a não julgar aparece numa metáfora dramática: o pastor que quase bate boca com Juliet por ela não ter crenças religiosas tem uma crise diabética, perdendo momentaneamente a capacidade de falar e de agir. Em seguida, a narrativa nos diz que ele “foge” da casa. Porém, essa metáfora parece atípica, por ser excessivamente escancarada; a sutileza faz mais o estilo de Munro, e podemos encontrá-la na delicada escolha de palavras, cuja acepção pode variar de acordo com a perspectiva: a dificuldade em traduzir consiste exatamente em encontrar palavras que consigam desempenhar o mesmo papel. Os três contos que deram origem a Julieta intitulam-se Chance, Soon, e Silence. A palavra “chance” significa acaso, chance, oportunidade, sorte: a mim pareceu que o melhor seria “ocasião”, porque esses sentidos todos estariam preservados. Foi usando uma estratégia análoga que traduzi os contos.
Por que análoga, e não idêntica? Porque precisamos lembrar que as palavras remetem a contextos, a frases que são ditas em determinadas ocasiões. Quando duas pessoas não se falam, uma pode dizer para a outra que “there has been silence” ou que “all I got from you was silence”, mas seria ridículo traduzir essas frases literalmente. Por isso é que Soon vira Daqui a Pouco (a palavra “logo”, além de poder ser lida como abreviatura de logotipo, parece poética demais isolada assim num título — certamente mais poética do que o Soon original) e Silence vira Silêncio mesmo: a única coisa importante era manter a ideia de que não houve comunicação: silêncio pode remeter a quietude, e, por tabela, a aceitação, resignação; por outro lado, não é esse silêncio que provoca inquietude? A impossibilidade de decidir é que é a chave.
Existe uma beleza nessa impossibilidade de fechar a questão. Não é a beleza que alguns podem encontrar num texto esfíngico, sempre pedindo para ser decifrado sem nunca deixar-se decifrar. O que há em Munro é o contrário desse vício em obstáculos que é a raiz do masoquismo: o convite a parar e simplesmente ouvir, a irmos nos desfazendo de nossas expectativas, para podermos ficar num ponto de tensão em que não há exatamente nem indiferença, nem a misericórdia que a maior parte dos personagens não pede.
Trata-se, talvez, da beleza indecidível de algo que parece fugir a nosso controle: W.H. Auden, que parece uma influência espiritual, digamos, em Munro, terminava assim seu poema Law Like Love, na tradução excelente de Margarida Vale de Gato:
Como o amor que não sabemos onde nem porquê
Como o amor que não podemos coagir
Como o amor de que não podemos fugir
Como o amor que amiúde choramos
Como o amor que raro guardamos.
Não saber onde nem porquê (desculpe, Auden; Camões chegou primeiro), não poder coagir, não poder fugir, chorar, raramente guardar. Uma tensão permanente entre aquilo que não podemos fazer, o que fazemos inevitavelmente, e o que poderíamos fazer melhor. Talvez haja um certo pessimismo nessa visão, mas a possibilidade de fazer melhor, de guardar o amor, de ouvir sem correr para interpretar, de dar as coisas tal e qual foram recebidas, permanece aberta.
A mesma possibilidade, a mesma tensão presente no ato de traduzir qualquer texto.
Texto de Pedro Sette-Câmara
Ilustração de Beatriz Leite
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