Cabe a ele pensar. Como guardará todos em sua cabeça, todos os livros, todas as pessoas, todas as histórias? E se ele não lembrar, quem o fará? (COETZEE, 2010)
Como muitos escritores sul-africanos de sua época, J.M. Coetzee abordou a traumática experiência da segregação racial instituída pelo regime do apartheid. Contudo, sempre oscilou na forma de tratar esteticamente a realidade histórica, ora se aproximando da situação imediata de modo mais direto, ora se distanciando, optando por representar de modo mais oblíquo temas relacionados à violência institucional.
Na trilogia autobiográfica Cenas da vida na província, composta por Infância (1997), Juventude (2002) e Verão (2009), Coetzee debruça-se sobre sua história pessoal. Ao ficcionalizar a experiência de viver na África do Sul, trata também de uma memória coletiva. Infância testemunha, de uma perspectiva muito singular, a brutalidade dos anos iniciais do regime segregacionista. Já em Juventude o protagonista está distante geograficamente do país, mas os episódios de truculência do Estado permanecem próximos. Em Verão, por sua vez, as anotações do diário dos anos 1970 sintetizam a situação do país em uma imagem: uma “ferida supurando”.
De acordo com o crítico David Attwell, Coetzee representa a experiência do apartheid de modo refratário nos textos da trilogia. No lugar de uma história de vida direta e fiel à História e aos fatos da vida de Coetzee, as obras apresentam estruturas ficcionais inovadoras para refratar o trauma. Embora faça uso de conteúdos autobiográficos, Coetzee, conscientemente, não utiliza o pronome pessoal “eu”. A narração ocorre na terceira pessoa. O autor fala de si de maneira bastante distanciada, como se fosse um “outro”. Transforma-se em um “ele”, pronome utilizado para referir-se ao protagonista John. O retrato autobiográfico assim se move entre a revelação e o encobrimento desse sujeito, bem como entre a recusa e o reconhecimento da experiência sul-africana. Há ainda, na trilogia, um pacto irônico e ambíguo com o leitor. Vejamos então algumas cenas desse retrato do sujeito e de seu país.
Cena 1: “Eu pertenço a esse lugar”
Na primeira obra da trilogia, os episódios da vida do garoto sul-africano John são descritos de um modo opaco, analítico e indagativo, principalmente devido ao foco narrativo adotado. Um narrador distante conta a experiência de um menino crescer no início da década de 1950 sob o regime segregacionista do apartheid, instaurado legalmente em 1948.
Dos episódios sobre a vida familiar e escolar, sobressaem-se a tensão entre ingleses e africânderes, as relações de poder arbitrárias e desumanas entre negros e brancos. Na obra, a palavra apartheid não é mencionada. No entanto, a partir do ponto de vista do protagonista infantil, de relatos descontínuos e fragmentados, é possível delinear as características do lugar onde ele vive. A personagem convive com a segregação, a desigualdade e a violência no cotidiano familiar, na escola e na rua. Criado em uma família africânder, que valorizava a cultura inglesa, o menino sente-se deslocado. Na escola, sofre bullying dos colegas e se espanta com as punições empreendidas pelos professores aos alunos. Ao caminhar nas ruas, não entende o porquê de só alguns garotos usarem tênis. Também estranha o fato de alguns seguirem os estudos, enquanto outros se inserem precocemente no mundo do trabalho. As cenas mostram o contato do garoto com as regras, as leis, os costumes e as características do mundo do apartheid.
Em Infância, a memória política não possui tom documental. A descoberta do regime não se dá pela forma do relato crítico e articulado, mas por meio das observações do protagonista infantil. A memória política vem à tona com os episódios da experiência da personagem. Como a visão sobre as circunstâncias históricas é limitada à leitura de mundo de um garoto, o leitor fica com vários fragmentos para construir o retrato dessa criança deslocada que é, ao mesmo tempo, herdeira e vítima da brutalidade que o cerca.
Cena 2: “A África do Sul é como um albatroz em torno do seu pescoço”
Em Juventude, um aspirante a poeta, John deixa a África do Sul no início dos anos 1960 para viver na Inglaterra em busca do desejo de ser escritor. Nessa obra, Coetzee evoca as próprias memórias do tempo de juventude para construir um romance de formação às avessas, no qual o protagonista não vivencia as experiências, apenas anseia por elas. O que se destaca não é o desenvolvimento da personagem, mas o fracasso dela no novo país, seja no campo profissional, seja no campo amoroso, bem como na tentativa de se tornar um poeta.
Em Juventude, a África do Sul, o país em “torvelinho”, aparentemente ficou para trás. Há protestos nas ruas pelo fim do regime e ações policiais violentas. Mas o protagonista não quer se envolver. “Não está interessado em política”. Quer extirpar toda memória do país e da família. Seu desejo é ser escritor. E para tal destino, movido por um espírito romântico, só vê uma saída: viver nas grandes cidades europeias e ter muitas vivências. Mas o projeto falha.
Os episódios da província são sombras que teimam em desaparecer. “A África do Sul é um albatroz em torno de seu pescoço. Quer que seja removido, não importa como, para que possa começar a respirar”, reconhece o protagonista. Ele tenta se desvencilhar dessas memórias, porém elas estão vivas e corroboram para o reforço das mitologias em torno do ser escritor. Ele não é mais o menino que pertence ao Karoo, região da fazenda dos avôs sul-africanos, mas também não consegue apagar a imagem dos ancestrais e desse lugar afetivo, muito menos a culpa por fracassar no projeto de escrita. Ao não encontrar seu lugar na Inglaterra, nem sua voz como poeta, sente angústia. Constantemente se interroga sobre o futuro. São inúmeras as perguntas ao longo do romance. Não é fácil identificar se os questionamentos vêm da voz exterior que acompanha esse ele ou se seria voz do próprio eu, já adulto que revisita sua formação e seu ofício. As duas vozes se confundem, apresentando um sujeito bastante dividido.
Em Juventude, a adoção da terceira pessoa, no lugar de evitar o registro retrospectivo confessional como ocorre em Infância, joga o leitor no centro das dúvidas de um sujeito que se interroga e recusa a experiência sul-africana. Contudo, em ambas, os usos da terceira pessoa e do tempo presente dão ênfase ao caráter de reconstrução/ficcionalização na evocação das lembranças, problematizando assim o gênero autobiografia.
Cena 3: “Uma velha questão corrosiva que não larga, que deixa sua feia ferida supurando. Remorso moral”.
Em Verão, um pesquisador está às voltas com um projeto biográfico sobre o já falecido escritor John Coetzee. Seu objetivo é relatar o retorno do romancista à África do Sul no início da década de 1970 até o primeiro reconhecimento público. Para cobrir os anos de 1971 a 1977, o biógrafo entrevista cinco pessoas que conviveram com o biografado naquela época. Com esse mote, Coetzee radicaliza o projeto autobiográfico. Enquanto, nos primeiros livros, a escrita autobiográfica é problematizada com a adoção da terceira pessoa, em Verão, há um deslocamento: o nível “meta” da reconstrução e da representação biográfica ganha destaque em relação à representação autobiográfica.
Coetzee transforma-se em personagem que sofre uma série de duplicações: o ele, no singular, torna-se plural. Vira o objeto de uma biografia; “uma personagem menor” nas narrativas dos entrevistados. É ainda o autor dos cadernos dos anos 1970 e seu próprio revisor nos anos 1990. O leitor tem, portanto, uma visão caleidoscópica do biografado.
Outra diferença de Verão com relação aos dois primeiros livros da trilogia é a forma, pois o romance incorpora outros gêneros em sua moldura (entradas de diário, entrevistas, depoimento, anotações de revisão), contribuindo assim para uma estrutura narrativa de perspectivas múltiplas.
Quanto às cenas da África do Sul, elas surgem na voz dos entrevistados e também nas anotações do falecido escritor. Para o jovem John, em uma das entradas do diário dos anos 1970, é um dilema moral viver em um país em que se executam mulheres e crianças indefesas. Essa época registrada no diário corresponde ao período de inúmeras e violentas revoltas sociais promovidas pela maioria negra, que foram duramente reprimidas pelo regime segregacionista. Nas anotações, o protagonista comenta as notícias sobre a violência estampada todos os dias nos jornais, relatando o sentimento de impotência diante dos fatos. Nos cadernos ainda, descreve que não tem como escapar da sujeira: a questão sul-africana é uma ferida supurando. Ou seja, o jovem escritor, diferentemente do imaturo aspirante a poeta, consegue se situar naquele contexto e refletir sobre sua posição diante das atrocidades cometidas pelo regime. Ele, com ascendência africânder, embora de posição política dissidente da maioria favorável ao apartheid, expressa remorso moral.
As cenas da África do Sul, em Verão, são mais fragmentárias, tendo um caráter menos narrativo. Ocorrem a partir dos comentários das personagens-fontes da biografia. O leitor tem alguma informação sobre o país apenas pelas entradas do diário e pelas anotações dos cadernos que. Nesses capítulos de abertura e encerramento do romance, a morte está presente. A abertura relata um ataque em Botswana; no capítulo final, insinua-se a iminente morte do pai da personagem. Diante das mortes, resta apenas a escrita para lidar com as feridas: “Um gesto de recusa diante da época. Uma aposta na imortalidade”.
Em resumo, na trilogia (quase) autobiográfica, a adoção da terceira pessoa, o emprego do tempo presente e o uso das múltiplas perspectivas (caso de Verão) são estratégias empregadas por Coetzee para evitar um discurso mais direto sobre os fatos históricos do apartheid. Também funcionam para apontar a reconstrução ficcional implicada no processo da escrita das memórias. É o modo refratário que Coetzee, vinculado a sua experiência e consciente da história de sua época, encontrou para representar os impactos da traumática experiência sul-africana em uma trajetória individual e suas consequências na vida social daquele país, expondo inclusive a dificuldade de lidar com essa matéria ao mesmo tempo pessoal e histórica. Na trilogia, Coetzee tomou para si o desafio posto pelo menino de Infância: “E se ele não lembrar, quem o fará?”.
Talita Mochiute é professora e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo.
Imagem: NewStateman
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