“— E, lá, quem lhe faz o prato?
— Um cozinheiro, avó.
— Como se chama esse cozinheiro?
Ri, sem palavra. Mas, para ela, não havia riso, nem motivo. Cozinhar é o mais privado e arriscado acto. No alimento se coloca ternura ou ódio. Na panela se verte tempero ou veneno. Quem assegurava a pureza da peneira e do pilão? Como podia eu deixar essa tarefa, tão íntima, ficar em mão anónima? Nem pensar, nunca tal se viu, sujeitar-se a um cozinhador de que nem o rosto se conhece.
— Cozinhar não é serviço, meu neto — disse ela. — Cozinhar é um modo de amar os outros.” (Mia Couto, em O fio das missangas)
Se “cozinhar é um modo de amar os outros”, como narrou Mia Couto, trata-se de amor que se expressa nos detalhes. A cozinha nos oferece inúmeros elementos para pensar em como se estabelece essa trama entre aquele que cozinha e o outro que come. Experimentando na língua, literalmente, o gosto do encontro ou do desencontro. O que se acessa quando entramos em uma casa onde alguém acabou de assar um pão? Ou quando fechamos os olhos para sentir melhor o gosto daquele bolo de chocolate da infância? Fora as conversas pós-festas que têm um sabor todo especial em serem contadas e ouvidas na cozinha. Quais são as experiências que experimentamos nesse espaço que nos toca em todos os nossos sentidos, mas também na nossa subjetividade? A cozinha se mostra um lugar privilegiado para se sentir e pensar a experiência da intimidade.
É no cenário da cozinha que vamos nos fixar. Lembrando que não se trata da varanda ou do brigadeiro gourmet, do reality show de gastronomia. Não quero me fixar nessas construções atuais. Não que não sejam válidas como representantes da cultura. Mas, a minha intenção aqui, é poder pensar na cozinha que pode ser construída na intimidade. Comemos todos os dias, então o ato de cozinhar é um gesto diário e íntimo, atravessado por referências passadas, intenções presentes e desejos futuros.
Na cozinha, estamos rodeados por mil objetos, cores variadas, elementos sensoriais— cheiro, gosto, textura, sons, gestos — é um lugar muito potente para se articular a vida. Ali se ganha, se dá, se perde, se quebra, se erra, se ama, se odeia e se entedia também. É nesse modo de amar que se encontra a possibilidade de intimidade consigo, com o seu corpo, com os outros, com o espaço e o tempo. Nesse espaço existe alguém que está fazendo algo para ser oferecido, alguém que tem seus sentimentos e suas dores também, mas, acima de tudo, há sua disposição em estar presente diante de si e de um outro. Porque sempre há um outro, alguém que come, ainda que seja a mesma pessoa — quem cozinha e quem come estão separados pelo gesto e pelo tempo.
Toda relação institui uma comunicação. Mesmo que nunca tenhamos condições de saber como o que se fala é ouvido e vice-versa, a tentativa de comunicar está presente. Aqui, o que me interessa articular é esse espaço onde a comunicação acontece. E não estou falando de qualquer espaço, estou pensando na cozinha como um espaço íntimo, diariamente visitado.
A noção de espaço público e privado hoje em dia é muito fluída. As mudanças tecnológicas e sociais fazem com que essa separação não esteja muito definida. Estou em casa, mas online e conectada mais do que nunca com o trabalho que ficou no escritório. Estou experimentando um tempo na minha vida privada, estou ocupando o espaço íntimo, ou o público já invadiu? Ou: estou no trabalho, mas com o celular ao lado lendo o grupo da família. Estou em um espaço coletivo ou meu mundo privado já me tomou?
O psicanalista Gilberto Safra nos ajuda a pensar na questão: “É a partir do estabelecimento desses dois registros, o privado e o público, que o indivíduo pode, na área das experiências privadas, receber um outro para com ele compartilhar a experiência de intimidade. O espaço potencial agora vivido nesse registro permite que o outro possa manter-se em alteridade e ao mesmo tempo como parte do mundo subjetivo, paradoxo que permite o aparecimento da experiência de intimidade”.
Esse universo íntimo nos molda e nos proporciona outras formas de comunicação que não as verbais. É nesse espaço que podemos sentir e silenciar. E por que estou falando da cozinha como esse espaço para sentir? Porque o ato de cozinhar nos exige presença, nosso corpo é chamado a fazer algo e os sentidos são acordados. Como fazer um jantar gostoso, se não estou presente? Nessa altura, já queimou! Ou, como não usar os sentidos para percorrer essa trama até o seu grand finale, que é a refeição servida? Sem cheirar, tocar e observar é difícil construir essa trama que produz efeitos em todos que fazem parte da experiência de alimentar ou de ser alimentado. Sem presença, no máximo você abre um pacote ou esquenta algum alimento.
Há uma transformação do alimento pelas representações culturais. A comida passa a fazer parte de uma trama, que é tecida por todas as “pequenas percepções”, como o filósofo Gottfried Leibniz conceituou para narrar as experiências estéticas: “Essas pequenas percepções, devido às suas consequências, são por conseguinte mais eficazes do que se pensa. São elas que formam esse não sei quê, esses gostos, essas imagens das qualidades dos sentidos, claras na reunião mas confusas nas partes individuais, essas impressões que os corpos circundantes produzem em nós, que envolvem o infinito, essa ligação que cada ser possui com todo o resto do universo.”
No fim, quem cozinha é alguém executando gestos com um corpo que está ali criando e tem como efeito atingir o outro. Essa trama é incorporada e acredito que aqui temos a essência da comida como cultura, porque quando a devoramos, ela se transforma em sensações, em memórias e, mais adiante, viram histórias. O ato de cozinhar nos leva a incorporar o objeto construído. É na fusão de todos esses elementos que a mágica, ou a narrativa, acontece. Nicola Perullo nos mostra que o ato de cozinhar “como relação estética une de forma indissolúvel os seus protagonistas (o sujeito, que come, e o objeto, que é comido) e faz o mesmo com o nexo existente entre biologia e cultura; e, entre gesto e pensamento”.
A beleza dos pequenos gestos e das poucas palavras que muitas vezes vêm junto com um prato. Ou do exagero de falas e barulho nos almoços de domingo. No jantar à luz de velas ou no jantar de todo dia depois de um dia pesado de trabalho. Todas essas experiências nos marcam e são produzidas pelas nossas marcas. O enredo é construído justamente aí, na intersecção do que é corpo e do que é narrativa, da comida e da panela, de quem cozinha e de quem come, na intimidade dos nossos afetos.
Carla Paiva é psicanalista e pesquisadora.
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