Reproduzindo a playlist do Youtube de um canal sobre crimes reais, um dos meus temas favoritos, notei algo que durante muito tempo havia passado despercebido por mim: a maior parte dos casos de crimes violentos relatados por estes canais na América Latina são feminicídios. Sabe-se, além das particularidades de cada assassinato, que estas mulheres morreram pelo fato de serem mulheres, muitas vezes pelas mãos de pessoas conhecidas.
Partindo deste ponto, iniciei a leitura de Garotas mortas, livro da escritora argentina Selva Almada, publicado no Brasil em 2018. Na obra, a autora tenta reconstruir a trajetória de três moças mortas sob circunstâncias que nunca foram totalmente esclarecidas: Andrea, Sarita e Maria Luisa. Andrea, morta dentro de casa, foi encontrada em sua cama; Sarita, desaparecida, supostamente foi encontrada depois de muito tempo, mas o corpo, que foi identificado apenas por conta de vestimentas semelhantes às usadas por ela na última vez em que foi vista, acabou por não ser o dela, conforme constatou exame de DNA feito depois do sepultamento; e Maria Luisa, encontrada em um córrego após violação e espancamento brutais.
Mesmo para mim, acostumada com a crueza dos relatos de crimes, foi uma leitura difícil. Nas linhas de Almada, ficamos conhecendo bem demais essas garotas mortas, imaginando muito detalhadamente quem teriam sido elas: a empatia e a preocupação são inevitáveis e, em muitos momentos, foi chocante descobrir que a vivaz moça do portão, a beldade que andava na garupa da motocicleta de seu namorado ou a bela garota em trajes de banho não existem mais, que tiveram suas vidas ceifadas logo após essas descrições de seus últimos atos em vida, mesmo sabendo que o centro da obra é a narrativa de suas mortes.
No decorrer da narrativa, outros casos de feminicídios conhecidos na Argentina são citados, como o de Mariela “La Condorito” López, jovem com deficiência intelectual aliciada para a prostituição e assassinada no início dos anos 2000. Enquanto pesquisava para a escrita deste texto, descobri que neste ano aconteceu o julgamento do feminicídio de outra Mariela López, homônima de “La Condorito”, morta por seu namorado em 2018. Os crimes cometidos contra Carahuni (apelido da filha de um famoso comerciante de carros que foi violada e morta há 40 anos, e cujas circunstâncias do desaparecimento também nunca foram completamente esclarecidas) e Mónica Leocatto (motorista de remís, um tipo de táxi comum na Argentina e no Uruguai, assassinada durante seu turno de trabalho), além do assassinato de Chiara Paéz (jovem de 14 anos cuja execução deu origem ao movimento “Ni una menos” (“Nenhuma a menos“), que logo se espalhou por toda América Latina, região conhecida pela violência misógina) — que não está no livro de Almada, mas dialoga com ele —, são todos chocantes.
Por muitos momentos, imaginei as situações de perigo que a própria autora passou ao andar sozinha, conversar com desconhecidos em cidades nas quais nunca havia estado, ao fazer tentativas de contatos em busca de descobrir elementos importantes sobre os crimes… A minha apreensão por ela chegou ao ápice na ocasião de sua visita ao irmão de Maria Luisa Quevedo — eu não conseguia abandonar a ideia de uma emboscada pronta a atentar contra Almada. No fim, o homem não estava pronto para falar e a falta no encontro se mostrou algo menos grave que a minha imaginação: eu mesma me assustei com o suspiro aliviado que saiu de mim ao terminar o capítulo.
O jornal El País noticiou em 2018 que a América Latina é a região mais letal para mulheres fora de zona de guerra em todo o mundo, a despeito dos clamores conservadores de que têm direitos e liberdades abundantes em comparação com as leis sexistas do Oriente Médio, analogia repleta de meias-verdades e imprecisões. Uma breve pesquisa sobre feminicídios descortina narrativas de vidas interrompidas, tanto no Brasil quanto na Argentina: mulheres são vistas como propriedades, seja de seus maridos, namorados, pais ou até mesmo de desconhecidos, para quem a vida vale muito pouco. Em Garotas mortas, Selva Almada trabalha com o extremo da violência de gênero: o assassinato. No entanto, a violência misógina chega até nós de diversas maneiras. Mas, para mulheres com menos sorte, há mais que a violência meramente discursiva e simbólica: elas sofrem agressões físicas, psicológicas e patrimoniais de modo intenso e pessoal.
Decidi escrever sobre Garotas Mortas por conta de alguns acontecimentos: o aumento da violência doméstica em razão da quarentena necessária no período da pandemia de COVID-19 é o principal deles. Trabalho como advogada na área de Direitos Humanos e percebi um grande acréscimo principalmente em consultorias: mulheres buscando orientação sobre o que fazer legalmente em situações de violência, acerca do procedimento dos inquéritos e como se portar diante de autoridades policiais. A impressão é que a cifra oculta dos crimes de violência doméstica e familiar (delitos que nunca chegam ao conhecimento da esfera estatal) cresceu de modo assustador nestes últimos meses. Para uma mulher em isolamento social, prosseguir com o propósito de fazer cessar a violência contra si muitas vezes é posicionar um alvo na própria testa. Pondero também que sair de um relacionamento abusivo nem sempre é garantia de que a violência cessará. Não é um dilema simples.
Garotas mortas foi escolhido como uma das obras a serem discutidas pelo projeto Leia Mulheres na cidade em que moro (Teresina, Piauí) e a reunião on-line foi invadida por pessoas de extrema direita, que ingressaram na sala e começaram a reproduzir pornografia e insultos contra as participantes da reunião. Este foi outro dos motivos que me levaram a abordar este livro e as dimensões de violência que ela evoca. O assassinato é o extremo dos discursos violentos que recrudescem nos últimos dois anos. Depois, as organizadoras realizaram uma reunião carregada de significado: todas as mulheres presentes tinham suas experiências com violência, seja pessoalmente, seja como testemunhas. O encontro reuniu afeto e conforto acerca dessa experiência de invasão mesclada com nossas próprias memórias de momentos de angústia e medo em momentos de violência.
Como a própria autora do livro diz, o fato de estarmos vivas na faixa dos 30, 40, 50 anos é pura questão de sorte por aqui. Pais e irmãos não nos vitimaram de forma fatal, nenhum amigo, desconhecido ou namorado atentou de forma cabal contra nossas vidas, apesar dos traumas acumulados por muitas de nós. Passamos também a lembrar das mulheres mortas em nossa cidade — o caso que mais indigna sendo o de uma moça cujo laudo apontava um suicídio, mas as marcas do corpo apontavam para defenestração do alto de um edifício em obras. A reunião aconteceu na semana em que outro feminicídio brutal completou um ano: a jovem atropelada, junto com uma amiga, pelo namorado desta última, que morreu devido aos ferimentos.
Pessoalmente, pensei em todas as vezes que escapei de agressões que poderiam ter levado à minha morte. Duas vezes, três? Não uso mais colares ou golas que pressionem meu pescoço, mas provavelmente tenho mais sorte do que imagino. Muitas mulheres perderam a conta e acumulam medo e dor. Outras pereceram pelo ódio insuflado diariamente contra nós.
Lara Matos é advogada e pós-graduanda em Sociologia na Universidade Federal do Piauí.
Imagem: fotografia de Selva Amada por Leandro Teysseire
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