“Eu era menina e já escrevia memórias, envelhecida. O tempo se fazia ao contrário. De noite não dormia enquanto meus olhos viam as luzes dos automóveis velozes no teto. Quando me virava de bruços vinha o diabo e me furava as costas com o punhal de prata. As mãos se interrompiam à meia-noite quando chegava o anjo mais escuro que o silêncio”.
Ana Cristina Cesar
Na obra Re/Trato, o artista colombiano Oscar Muñoz usa pinceladas com água tentando desenhar no cimento seu auto-retrato. Um rosto que não pode ser completado porque quando se traça uma linha, a anterior já começou a desaparecer. A tentativa parece ser a de guardar algo de uma experiência, buscar incessantemente o registro da imagem do próprio corpo que escapa. Tentativa esta que mostra a impossibilidade de guardar uma memória sem desorganizar as instâncias que compõem o tempo. “Restos de uma demolição de alma, cortes laterais de uma realidade que me fogem continuamente” é a forma como Clarice Lispector apresenta as pulsações de sua escrita no livro Um sopro de vida. Logo depois ela afirma que quem aparece ali naquelas páginas não é ela, não se trata de um livro autobiográfico, declara: “Eu sou vós mesmos”.
O registro que Muñoz tenta capturar é semelhante à realidade que foge continuamente no texto de Lispector e ao que compõe a obra da poeta brasileira Ana Cristina Cesar, que construiu seu texto no tencionamento entre confissão e literatura. Partindo de poemas apresentados em formas de diários, cartas, cadernos terapêuticos, Ana Cristina nos apresenta uma poesia que dialoga com a tradição literária, revelando segredos que parecem não pertencer a apenas uma pessoa, mas são compartilhados por sujeitos poéticos que a antecederam. E, por revelar o que não é apenas seu, há algo nessa poesia que escapa, como o traço que é feito com água no cimento, e está em constante transformação no ato mesmo de se escrever. Um texto que é composto pelo vestígio de várias vozes, usando aqui o que Derrida entende como vestígio: os restos de todos os significados e marcas que não estão presentes mas que aparecem por causa de sua ausência. É o traço que mesmo aparentemente não estando ali mostra a sua inscrição.
Ana Cristina ensaiou os primeiros passos de sua escrita muito cedo quando ainda criança ditava poemas à sua mãe. Em um volume publicado depois de sua morte chamado Inéditos e Dispersos, Armando de Freitas Filho organizou muitas das coisas escritas pela poeta que não foram pensadas como um livro e que contém suas primeiras brincadeiras com a literatura. São histórias contadas por uma menina de 9 anos que já demonstrava uma imensa intimidade com a poesia. Em seu ensaio “O poeta e o fantasiar”, quando aborda a relação do brincar com a escrita criativa, Freud também começa a falar sobre a fantasia, localizando nos primeiros anos de vida o início da atividade imaginativa que não é diferente do fantasiar do adulto. A fantasia do adulto é comparada ao devaneio do poeta que propicia a criação de cenas encobridoras para a realidade que ali está. Nesse ponto, também a leitura é criativa, uma vez que o leitor subjetiva o texto e estabelece uma nova produção de sentidos a partir desse contato.
É comum encontrarmos referência na crítica literária ao caráter confessional da poesia de Ana Cristina Cesar, que atua como um operador do movimento que borra a fronteira entre ficção e realidade. A começar pela maneira como escolheu assinar parte de sua obra: ao escrever, Ana Cristina Cesar pode transformar-se em Ana C. No entanto, esse não é um jogo de cartas marcadas, ela também se identifica com outros nomes. “Não sou idêntica a mim mesma/ sou e não sou ao mesmo tempo, no mesmo lugar e sob o mesmo ponto de vista” é o que diz em seu Poema Óbvio, deixando evidente para quem lê que sua escrita não vai seguir nenhuma fórmula pré-estabelecida e ao mesmo tempo fazendo um convite para compartilhar desse desconhecimento.
O endereçamento do que ela escreve também é desconhecido. Como dito anteriormente, Ana C. usou as características dos diários íntimos, correspondências, cadernos terapêuticos e até cadernos de viagens – como aqueles usados pelos marinheiros em longas trajetórias em navios — na constante tentativa de subverter a banalização que esses gêneros tem no meio literário e, tornando, por sua vez, cada poema seu único. O estilo fragmentário que sobressai quando lemos um poema que é escrito em formato de carta suspende o sentido e faz quem lê tropeçar em seu ritmo, escorregando entre as fendas que se abrem quando diante de algo inesperado. Fenda parece ser a palavra mais apropriada para falar do texto de Ana Cristina Cesar, um campo onde a lacuna permite que o poema sempre fabrique dobras, redobras, texto que deixa o silêncio em seu rastro.
“A escrita como experiência de deslocamento, traslado, deriva” é a forma como Flora Süssekind se refere à poesia de Ana C., deixando ambíguo se a poeta também está sem um porto que a ancore. A poeta nos oferece um vislumbre a partir de outro elemento que também aparece bastante em seus escritos: a reprodução de sua própria imagem, seja através do espelho ou da fotografia.
16 de junho
“Decido escrever um romance. Personagens: A Grande Escritora de Grandes Olhos Pardos, mulher farpada e apaixonada. O fotógrafo feio e fino que me vê pronta e prosa de lápis comprido inventando a ilha perdida do prazer. O livrinho que sumiu atrás da estante que morava na parede do quarto que cabia no labirinto cego que o coelho pensante conhecia e conhecia e conhecia. Nessa altura eu tinha um quarto só para mim com janela de correr narcisos e era atacada de noite pela fome tenra que papai me deu.”
Nesse poema que começa como uma entrada de diário, os olhos são pardos, através deles não há como definir quem se esconde no labirinto junto com o livrinho. A própria forma é uma simulação. O fotógrafo feio e fino consegue? Ou ele também se perde, caindo na toca do coelho de Alice, atrás de conhecer e conhecer e nunca chegar a lugar nenhum? Os olhos são a janela da alma, é o que ouvimos como ditado popular, então que olhos são esses que embaçam a lente do fotógrafo que tenta capturá-los? Em outro momento, Ana Cristina descreve um espelho que cai sobre ela e gera um movimento de fragmentação do corpo que tanto pode ser o físico como o corpo do poema. Espelho que “fere e contunde nossa cara” e provoca silêncio. A quebra do que poderia ser a solução de uma busca leva a poeta a um caminho de descentramento e dissolução.
“O poeta recorda no canto aquilo que, no canto, desejaria apenas esquecer, ou então para sua felicidade — esquecer no canto o que ele queria recordar” é o que diz Agamben e tomo emprestada essa ideia para falar do movimento errante da poesia de Ana Cristina Cesar que, ao tentar apropriar-se da escrita que a antecede, aponta para o esquecimento como possibilidade da literatura. É quando eu esqueço o que já foi dito antes de mim que eu permito o aparecimento da escrita e, através do que esqueço, posso também lembrar. Recuperar aquilo que se experimentou no passado através de uma narrativa levam a diferentes maneiras de lembrar e esquecer e, consequentemente, também de escrever. A causalidade e linearidade do tempo não mais existem, sendo este marcado por uma descontinuidade que produz em seu movimento a ruptura onde, como nos diz Freud, “passado, presente e futuro se alinham como um cordão percorrido pelo desejo”.
Na experiência da escrita, o sujeito do poema e o narrador são efeitos da linguagem e, ao mesmo tempo, fundam a experiência poética. O jogo de revela/esconde que Ana Cristina Cesar faz a partir das diversas personagens que surgem com Ana C. é um convite a pensar nessa escrita que se direciona para o silêncio. Em um ensaio intitulado “A estética do silêncio”, Susan Sontag diz que Mallarmé pensava ser tarefa da poesia utilizar as palavras para limpar a nossa realidade atravancada de palavras, através da criação de silêncios ao redor das coisas. O que destrói a linguagem é, paradoxalmente, o que lhe dá a vida.
É Lacan, em seu retorno à Freud, que revela na psicanálise a potência da letra, aproximando a escuta da escrita em um texto chamado “Lituraterra”. “A importância da literatura em meus escritos? Eu diria mais da potência da letra”, é o que ele diz e demonstra assim um interesse pela palavra que quer ir além, fazer aparecer uma nova língua que resista a um molde de estilo e não se submeta a convenções.
No prefácio de As palavras e as coisas, Foucault conta como o encontro com o conto O idioma analítico de John Wilkins de Jorge Luis Borges provocou nele um estranhamento que o levou a querer escrever aquele livro. Nesse texto, Borges fala sobre uma enciclopédia chinesa em que os animais se dividem de uma forma curiosa: “a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas.” Ao ler esse conto, o filósofo francês diz que não conseguiu parar de rir por um bom tempo e junto com o riso surgiu a inquietação. Reproduzi as categorias para ilustrar como é nos intervalos dessa ordem, nas “casas brancas desse quadriculado” que o pensamento surge. Se a ordem não pudesse ser quebrada, se não tivéssemos um item que englobasse os “inumeráveis” ou o “et cetera” o pensamento não teria de onde surgir. É através da fratura, dessa brecha que ele pode vir à tona. Esse também parece ser o movimento da poesia.
Um rasgão no tecido do discurso é o corte por onde a obra expõe a busca pelo que não pode alcançar, cerca o que não pode ser dito, o Real. Desde Freud, sabemos que é para o inconsciente que vai o que a consciência rejeita tornando, dessa forma, o seu conteúdo algo inacessível. Ao trazer a noção do inconsciente estruturado como linguagem, Lacan define o Real como o impossível que se constitui no registro do não-simbolizado, constituído das experiências não nomeadas e que, por isso, encontram-se à margem da linguagem. O que não pode ser completamente simbolizado através da escrita e que o sujeito não cessa de tentar nomear. Ana Cristina Cesar está sempre buscando o que “não cessa de não se escrever” e parece fazê-lo a partir de um diálogo que, por vezes, inclui a própria psicanálise:
“sou eu que escrevo, agora, aqui neste cais deserto onde entra sem ser visto um velho cargueiro inglês. Percebo que o seu segredo é que, ao dizer “eu”, este texto realiza a conjunção entre o real (esta minha vida ou quem a viva), o simbólico (este discurso ou o pronome em que aqui deliro) e o imaginário (este ouvir constante da minha própria biografia)”.
A tentativa de nomear aquilo que não pode ser dito encontra na poesia e na psicanálise um caminho que leva ao vazio, ao silêncio. A pergunta permanece, de forma inquietante, como o ausente que se inscreve no tempo e na escrita, “a necessidade de voltar e olhar de novo aqueles dois quartos vazios”.
Tatianne Dantas é mestranda em Psicanálise: Clínica e Cultura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autora da newsletter Um Lapso Sutil.
Ilustração de Carolina Nazatto.
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