Em O Gigante Enterrado (2015), o escritor Kazuo Ishiguro, vencedor do prêmio Nobel de Literatura em 2017, nos apresenta uma fábula em que um casal de idosos, Axl e Beatrice, vive em uma vila que sofre uma espécie de magia que causa a perda parcial de memória de seus habitantes. Assim, os moradores não se lembrem de grande parte do que viveram. A sinopse no site da editora Companhia das Letras, responsável pela publicação do romance no Brasil, com tradução de Sonia Moreira, conta que se trata de uma terra “marcada por guerras recentes e amaldiçoada por uma misteriosa névoa do esquecimento. Uma população desnorteada diante de ameaças múltiplas. Um casal que parte numa jornada em busca do filho e no caminho terá seu amor posto à prova — será nosso sentimento forte o bastante quando já não há reminiscências da história que nos une?”.
Em certo momento do romance, um dos personagens (o barqueiro), diz:
“(…) já vimos tantos viajantes ao longo dos anos que não demoramos muito a perceber o que está por trás das aparências. Além disso, quando os viajantes falam de suas lembranças mais caras, é impossível para eles ocultar a verdade. Um casal pode declarar estar unido por amor, mas nós, barqueiros, podemos ver em vez disso ressentimento, raiva e até ódio. Ou um enorme vazio. Às vezes, só o medo da solidão e mais nada. Um amor infinito, que resistiu à passagem dos anos, isso nós só encontramos raramente.”
É a primeira vez que Ishiguro escreve uma história de fantasia e parece que este não é o gênero que lhe cai melhor. Mas a reflexão que o romance traz sobre a importância da memória é interessantíssima. Logo no início, fica claro que um sentimento muito forte une Axl e Beatrice. Mas, apesar do amor intenso, temos a sensação de que o casal vive algo superficial. Demorei para compreender que esse incômodo vinha da ausência de uma memória compartilhada. Se não temos uma história de vida em comum, com lembranças boas e ruins, como podemos sentir que uma relação, ainda que longa, tem raízes profundas, verdadeiras?
Somos o acúmulo de nossas vivências, a bagagem das experiências que tivemos, aquilo em que nos transformamos durante a nossa trajetória. São essas lembranças que nos emocionam, entristecem e alegram. Sem memória, nossas vidas se tornam esvaziadas e mecânicas. Tudo parece igual, estático. Quando uma música toca no rádio e nos recorda de algo, seja bom ou ruim, somos tomados pela lembrança que fez daquele momento especial, diferente dos outros milhares de momentos vividos. Esse momento às vezes é capaz de transformar o nosso dia. De outro lado, se não existe memória, é só mais uma música, que passa por nós ilesa enquanto continuamos vivendo. Para o bem e para o mal, a existência perde o peso, é como um presente eterno.
“Você acha possível que seja verdade aquilo que o Ivor disse sobre a névoa ontem a noite, Axl? Que Deus que está nos fazendo esquecer? … Talvez Deus esteja sentindo uma vergonha tão profunda de nós, de algo que fizemos, que ele próprio esteja querendo esquecer.
E como o estranho disse ao Ivor: se Deus não lembra, não é de espantar que nós não consigamos lembrar.”
Mas o que podemos ter feito para deixar Deus tão envergonhado?
Ishiguro também mostra que o pouco de memória que resta ao casal transforma coisas que para nós seriam banais em acontecimentos importantes. Seria uma tentativa de encontrar ou construir um sentido para a existência que extrapole o de sobreviver?
Sobre a fantasia em Ishiguro, durante toda a leitura havia um ruído que me distanciava do texto. Foi em um artigo da escritora Úrsula K. Le Guin, “Are they going to say this is fantasy?” [“Eles vão dizer que isso é fantasia?”], que encontrei a resposta: “Parece que o autor [Ishiguro] leva a palavra [fantasia] como um insulto. Para mim, isso é um tremendo insulto, reflete um pensamento tão preconceituoso, que precisei escrever esse texto em resposta. A fantasia é provavelmente a ferramenta literária mais antiga para se falar sobre a realidade. ‘Elementos de superfície’ que imagino sejam ogros, dragões, cavaleiros arturianos, barqueiros misteriosos etc acontecem em certas obras literárias de grande mérito literário (…) e também são imitados em livros mais comerciais. Sua presença ou ausência não é o que constitui a fantasia. A fantasia literária é o resultado de uma vívida, poderosa e coerente imaginação criando impossibilidades plausíveis aliada a uma história vívida, poderosa e coerente, como as mencionadas antes ou em Odisseia ou Alice no País das Maravilhas.”
E aí que está: não há fantasia em O Gigante Enterrado. Ou melhor: não é porque uma história tem dragões ou magia que temos fantasia nos termos propostos por Le Guin. Depois de ler o romance, a entrevista de Ishiguro no New York Times e o artigo de Le Guin, restou apenas uma dúvida: o que levou o autor a escolher tais artifícios para contar essa história, se ele próprio parece ter tanta resistência ao gênero?
É difícil arriscar uma resposta. Mas Ishiguro é um escritor habilidoso, que domina o texto — é impressionante como consegue transmitir para o leitor as sensações que acometem seus personagens. A forma como aborda a falta de memória e escreve sobre a relação entre memória e identidade é muito comovente.
“O gigante, que antes estava bem enterrado, agora se remexe. Quando ele se levantar, como com certeza fará em breve, os elos de amizade existentes entre nós vão se mostrar tão frágeis quanto os nós que as meninas fazem nos caules de pequenas flores. “
Thiago Tizzot é autor, editor e livreiro na Arte & Letra, em Curitiba.
Ilustração de Carolina Nazatto.
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