Maria Gabriela Llansol escreveu: “É a minha própria casa, mas creio que vim fazer uma visita a alguém”. O trecho de seu diário Um falcão no punho ocupa toda página dedicada ao dia 10 de maio de 1979 e pode ter muitas leituras, mas, no momento em que conheci seu texto, me pareceu uma perfeita descrição do luto. Estou ancorada na autora e nesse trecho para falar desse estado de existência que conheci em 2018, quando minha mãe morreu. A frase já não provoca ânsia ou angina, mas ainda tem um quê de surreal.
Mães morrem. Tudo o que é vivo, morre. Aliás, esse é o pré-requisito universal para a morte. Estar biologicamente viva. Estar emocionalmente viva é outra coisa. Todos os dias experimentamos um luto. Agora, por exemplo, sentimos vários traumas sociais e políticos nos atravessarem. É fato que há um trauma coletivo, mas não sabemos se haverá a elaboração do luto decorrente desse trauma. Mas não é sobre isso que quero falar aqui. Quero falar sobre a falsa normalidade com que nós encaramos o luto.
Sim, no plural.
Há muitas obras que investigam o luto. Talvez a mais famosa seja Luto e melancolia, de Sigmund Freud. Nessa linha, há o Sobre a morte e o morrer, de Elisabeth Kubler-Ross, em que a autora descreve o que chama de os cinco estágios do luto. Correndo o risco desse parágrafo virar uma lista de indicações, preciso mencionar que o primeiro livro que li sobre perda após viver a morte da minha mãe foi Uma morte muito suave, em que Simone de Beauvoir narra os últimos dias de sua mãe e encerra a história pouco depois que a morte é consolidada. E depois? O que acontece depois? Pois bem, há vida após a morte e ela é bem diferente do que veio antes, mesmo que ainda seja igual.
Para viver a vida após a morte da minha mãe, escrevi e li. Escrevi um livro falando sobre sentir o luto individualmente e em público. Escrevi sobre não ter mãe, mas continuar a ser filha e a ser mãe de outra pessoa. Escrevi sobre os ritos fúnebres em meio à pandemia em que os mortos, todos nossos, são enterrados de forma mecânica, apressada e em escala. Para sobreviver, escrevi. Para escrever, li. Encontrei minha companheira de luto em Lila, da tetralogia napolitana de Elena Ferrante. Até então, eu havia lido apenas dois livros da autora e tinha me apegado tanto a Leda, de A filha perdida, e Olga, de Dias de abandono, que me recusava a conhecer outras. Isolada em casa, finalizando um livro sobre morte e luto e maternidade, precisei de um universo novo e envolvente e me permiti conhecer a tetralogia.
A leitura de A amiga genial foi arrastada. Não pelo texto, mas pela minha resistência em entrar naquele mundo. Apesar disso, eu não conseguia parar. Clássico sintoma da “Febre Ferrante”, certo? Os livros seguintes foram lidos em dois ou três dias no máximo. O que eu fazia era protelar o início da leitura para controlar minha febre. Mas foi com A história da menina perdida que entendi o quanto Lila me ajudou a devolver minhas margens em meio ao luto.
O desaparecimento de sua filha, Tina, soou como a concretização do desaparecimento gradual de Lila, que começa em sua infância. Desde criança, Lila está imersa em lutos decorrentes de perdas invisíveis às pessoas que a cercam. A cada momento, algo é tirado dela e suas invenções ou a forma como ela se adapta ao novo me parecem uma tentativa de recomeço. Mas quando Tina desaparece, a filha deixa à mãe a autorização de estar enlutada. De alguma forma, o vazio deixado por Tina coloca uma luz sobre todas as perdas de Lila que até então pareciam naturais ou esperadas dadas o contexto social. Nós acompanhamos as perdas de Lila pelos olhos de Lenù, com o filtro de todos os sentimentos conflituosos dessa amizade. As perdas e dificuldades de Lenù nos são mais palpáveis. Até mesmo o luto pela boneca. As bonecas de ambas desaparecem, mas é o luto de Lenù que nos orienta. O momento em que Lila procura pela mão da amiga diante de Dom Achille me parece a confirmação do dano e a necessidade de companhia para enfretamento do luto, ainda em negação. Entendemos a dor de ouvir um homem dizer que, após anos de estudo, a perspectiva de trabalho ainda é reduzida. Entendemos o cansaço extremo de tentarmos ser melhores para, quem sabe, sermos vistas. Entendemos a dor de avançar na carreira e nunca ter a certeza de estar indo bem. Mas quantas de nós sabe o que o é lutar para estudar a ponto de ser arremessada pela janela?
Reconheço que só fui entender o trajeto que fazia com Lila quando Enzo fala do episódio em que ela desmaia enquanto lava louça. A dimensão da dor. Quando lemos sobre luto ou sobre morte há sempre essa tentativa de nomear, explicar e categorizar o que é o luto. O luto é a realidade em sua essência. É a consciência do nunca mais. Lila tem essa consciência desde a infância. Ela nunca mais vai à escola. Ela nunca mais verá a filha. Diante do nunca mais, há a busca por concretude. Tina é a dúvida que Lila preenche com caminhadas, prédios e eventos históricos. Assim como preencheu a ausência das bonecas com o livro; preencheu a ausência da escola com os sapatos, ela passou a vida preenchendo. Nem ao menos substituindo. Cada perda tem seu próprio espaço. Mas o luto provocado pela morte é, por si só, preenchido. Há a lembrança, o desejo, a ideia do que poderia ter sido, a fatalidade e a realidade. Não há perna que sustente a realidade.
Depois desse trecho, confesso, precisei de semanas para terminar o livro. Talvez seja um exagero, talvez não. Mas não queria lidar com a possibilidade do retorno de Lila. Seu desaparecimento me conforta. É a personificação do seu constante estado de luto. Há uma cena, desta vez na série My brilliant friend (HBO), que conversa com esse processo de elaboração do luto em que vivi junto à Lila. Depois que Dom Achille é assassinado, ela narra no ouvido de Lenù como o crime aconteceu. Ela descreve cenário, roupas, emoções e envolve a amiga em seu processo de escrita. A morte nos ensina a imaginar, a fugir para outro lugar, mas o luto nos impõe a realidade da ausência. Aprendi com o meu luto que a morte inclui a realidade do desaparecimento. Aprendi com o luto de Lila que a realidade do desaparecimento não abrange só a concretude do luto, mas também a imaginação da morte.
Logo após enterrar minha mãe, passei meses dentro de casa, mudando móveis de lugar, estudando sobre luto e lutando para ter uma horta viável. Ainda não consegui. Comecei a escrever um livro e quando o luto havia assentado e senti que poderia, enfim, sair de casa. Isso aconteceu em março de 2020, quando todos tivemos que iniciar o processo de isolamento. Cinco meses depois, ainda em isolamento, mas já íntima de Lila e Lenù, nenhum de nós é a mesma pessoa. O luto, pessoal ou coletivo, nos moldou. Somos outra coisa ainda que continuemos as mesmas pessoas.
Por isso, e por tantas outras coisas, ler Maria Gabriela Llansol falar sobre sentir-se visitando alguém ainda que esteja em casa parece muito apropriado para descrever o luto. É nosso lugar de afeto, mas também é um lugar de perda. Assim como o bairro, o dialeto e a escrita. Quando Lila desaparece e leva consigo os rastros de sua existência, ela toma posse de seu luto e devolve aos outros aquilo que lhes cabe. Eu, assim como Lenù, não consigo desaparecer. Então, escrevo.
Fabrina Martinez é jornalista, escritora, mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal Mato Grosso do Sul e mediadora do Leia Mulheres na cidade de Marília (SP).
Imagem: A atriz Gaia Girace interpreta Lila na ‘My brilliant friend’.
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