Lubi Prates é dona de uma das vozes mais relevantes no cenário da poesia contemporânea. Quando digo contemporâneo, lembro-me do texto de Agamben, penso no que há de intempestivo e dis-crônico que enfim anuncia o contemporâneo mesmo antes de sua chegada.
Os poemas que abrem Um corpo negro falam de mátria e de pátria, falam de maternidade e paternidade em outra chave. Lubi diz “o útero geográfico/ que me pariu”, mas também expulsou, pois enfim “uma mãe não cabe numa pátria”. Releio-o agora com outros olhos, essa obra de Lubi, mas também sua plaquete Permanece, requer uma volta ao texto, conforme o leitor se transforma, renova-se também a leitura. Percebo desde uma revisitação histórica — no sentido mais complexo do universal e do pessoal — quanto um lance de dados mirando ao futuro.
Naquele então da escrita (seja em pensamento, seja em versos), naquele momento em que os versos se inscreviam dentro da poeta e eram escritos sobre o papel — havia já um sinal da presença de um filho. No sentido de um outro futuro. Releio “bem-vindo a este mapa/ de um território sem fronteiras.// bem-vindo a este mapa://onde guardo/no meu ventre/ uma revolução” — e vejo nesses versos o sonho do filho que agora encarnado divide o tempo da vida e da literatura, ocupa o corpo da poeta (desde o ventre até o seio). Mas leio também a possibilidade de uma mudança no mundo, uma mudança que passa também pela revolução dessa nova vida e da organização dos mundos internos e externos a partir dessa chegada.
Meu apreço pela escrita de Lubi, assim como meu afeto por ela, se expandem na direção de um interesse em saber o que virá em versos a partir dessas novas vivências.
Deixo aqui alguns fragmentos do nosso encontro à distância.
Francesca Cricelli — Acho difícil encontrar um lugar para começar uma conversa entre nós, Lubi. São tantas lembranças que é difícil dizer “vamos começar por aqui”. Eu poderia dizer da primeira vez que a vi, no Hussardos Clube Literário, se não me engano você ainda morava em Curitiba e veio para o lançamento da revista Parênteses, que você editava. Mas a memória mais forte, para mim, acaba sendo algo mais recente, quando você me chamou para uma conversa pelo perfil no Instagram do Centro Cultural São Paulo. Eu estava grávida (não me lembro de quantas semanas, mas minha barriga já era evidente, cinco meses?) e tempos depois soube que foi naquele mesmo dia que você descobriu que já estava grávida do Zuhri também. Eu acho isso muito especial. E você, por onde começaria?
Lubi Prates: Minha tendência, em muitos casos, costuma ser “começar pelo começo” e eu confesso que a lembrança do momento em que te conheci pessoalmente é muito feliz. Naquele momento da vida, eu estava me cercando mais de mulheres, como amigas e parceiras de trabalho, eu estava pensando mais a respeito da presença das mulheres no meio literário. Mas, realmente, a nossa conversa na noite em que me descobri grávida é um marco especial da nossa amizade: duas escritoras e amigas vivenciando a mesma experiência, que não foi apenas a fase de gestação, e sim a maternidade.
Francesca Cricelli — Minha capacidade de concentração e pensamento estão bem alteradas com a maternidade, sei que preciso fazer o máximo possível durante uma soneca do Andri e que se o Luciano, meu companheiro, está em casa e cuidando dele, há mais chance que eu consiga fazer algo por mim. É o caso desse momento em que lhe escrevo — mas não sei ao certo quanto tempo irá durar. Agora que o Andri está com quase nove meses, sinto que as coisas estão melhorando, de um lado, mas não deixo de sentir que a solidão e marginalidade tenham sido (estão sendo) marcas da maternidade para mim. O que você me diz?
Lubi Prates — Nós percebemos a maternidade, com suas alegrias e complexidades, de forma muito semelhante. É um alento, para mim, encontrar um ponto de alento em você durante este período, que é a compreensão dentro de um “eu te entendo” ou um “vai passar”.
A solidão foi um dos aspectos mais dolorosos, para mim, durante o puerpério, junto com a percepção de que, sim, a sociedade foi estruturada para que nos sintamos assim. A solidão nos enfraquece, né? Nada mais cômodo para o patriarcado do que mulheres enfraquecidas. Agora, como somos mulheres rebeldes, perceber o machismo desse aprisionamento na solidão e na marginalidade é algo que por si só já nos faz querer nos libertarmos, não? Quais estratégias você tem usado para ser uma mãe inteira, e não apenas uma “parte” que pode ser desencaixada dependendo das circunstâncias? Pergunto isso porque me parece que esperam que só sejamos mães dentro das nossas casas…
Francesca Cricelli — É uma ótima pergunta, mas é difícil responder. Por agora o que tenho feito é entrega e negociação. Quando estou sozinha com o Andri, sou toda dele, seu corpinho ágil e rápido requer toda minha atenção, assim passo às vezes seis-sete horas seguidas do meu dia. Nesse ínterim, sinto que eu existo como sujeito separado do meu filho quando ele dorme. Quando ele dorme, faço três coisas (cada dia ou momento uma delas, enfim dentro das minhas possibilidades): traduzo, leio ou edito meu próximo livro. Em outros momentos é a possibilidade de entregá-lo ao pai que abre esse espaço e é também o momento de algum descanso. Quando ele era menor e eu já me sentia recuperada do parto e com a amamentação bem encaminhada, por volta dos quatro meses, voltei a trabalhar nas traduções e isso me fez juntar os dois amores, ele ficava no sling ou no colo, dormia segurando meu peito, e eu traduzia. Quando ele era ainda menor, dormia mais, eu lia muito e assistia a séries e filmes, escrevia poemas com uma mão. Só escrevi sobre ele, sobre a experiência da maternidade, desde que ele nasceu. Acho que minha estratégia é essa, fazer o possível, no tempo possível. Caminhar longamente à beira-mar, quando ele dorme e eu escrevo na minha cabeça (tipo o que diz a Glória Anzalduá), quando estou na cozinha e o Luciano está com ele, ouço audiolivros. Enquanto houver espaço na minha mente, haverá a sensação de liberdade e “agência”, num sentido de ser agente de mim. Acho que ficou confuso, mas é o que consigo pensar agora. E você? O que tem feito? Você sabe que é uma imensa inspiração e companhia para mim — também senti muita solidão no começo da maternidade, você, a Pilar Bu e Anita Deak foram minhas companheiras escritoras-mães. Foram e são.
Lubi Prates — Para mim, estar (mesmo que virtualmente) com outras mães tem sido essencial. Eu tenho estado bem acompanhada por mulheres que questionam o lugar social da maternidade, que não romantizam essa construção. Acredito que essas conexões fizeram com que eu continuasse tendo saúde mental mesmo no puerpério. Além disso, sinto a maternidade, como você pontuou, como um exercício de presença — e essa noção, para mim, é atravessada pela questão racial, já que um dos estereótipos de mães negras é a ausência, a falta. Quando estou com meu filho, só quero estar com ele, vivendo o momento que for, seja de brincadeira ou de um banho fora do hora porque o cocô sujou a roupa (risos). Nos outros poucos momentos, me manter um ser pensante também a respeito de outros assuntos (não apenas da maternidade) tem sido refrescante: escrever, pesquisar — mesmo com a licença-maternidade no doutorado, me mantive lendo e entrevistando, editando, fazendo curadoria. Sem dúvida, são atividades que me permitem ser uma mãe inteira.
Pensando nestes espaços adequados e inadequados para sermos mães, como tem sido a sua experiência de ser mãe no meio literário, como escritora e como tradutora?
Francesca Cricelli — Talvez eu diga uma besteira, mas algo do mundo literário me preparou para a maternidade, tanto do literário como do acadêmico… a necessidade de “cavar” um espaço. Mesmo na literatura, na academia, para existir tive que insistir, trabalhar duro e com afinco e depois com o tempo vieram laços, amizades, parcerias… mas também não foi fácil. Sinto que a partir da maternidade se criaram caminhos muito claros: os que admiram meu trabalho e continuam me incluindo e convidando — não só não-obstante a maternidade, mas especialmente com a maternidade, digo isso sobre as editoras com quem trabalho, os parceiros acadêmicos durante a Abralic ou Trema na Universidade de São Paulo. Para os que nunca fizeram muita questão (risos), com a maternidade fui me tornando ainda mais invisível. E para além disso há o machismo estrutural, não é? Recebi um e-mail “simpático” de um professor me dizendo que agora ao menos eu havia “me livrado” das chatices da vida acadêmica. Claro, para ele, ter me tornado mãe significa que desisti completamente de seguir uma carreira na academia. Sinto que meu trabalho como tradutora literária tem me fortalecido, não só do ponto de vista da realização profissional, mas dos laços respeitosos e amigáveis de verdadeira admiração e bem-querer com editoras, editores, revisores, preparadores de texto. Isso é um alimento para a alma e para as outras áreas. E o que você acha? Como tem sentido isso?
Lubi Prates — Nesses primeiros meses de maternidade, eu senti que houve um esquecimento do meio literário que só tinha experimentado uma vez. Lembro que escrevi para um amigo: “as principais palavras da maternidade são ‘esquecimento’ e ‘impermanência'”. Passei semanas sem convites… e sofri uma porção de desrespeitos quando mencionei minha limitação de horários, fui cortada de projetos e, sim, existe o machismo estrutural, e além do que você citou, nunca vi nenhum escritor ser esquecido porque se tornou pai (risos).
Francesca Cricelli — Pois é, isso me fez pensar naquele tuíte da Giovana Madalosso, algo como os escritores têm bloqueio criativo e as escritoras, bloqueio doméstico. Mas para voltar à solidão, se tem um poema que amo (sei que é um hit seu) na poesia contemporânea brasileira é “condição: imigrante”.
Muitas vezes, atravessada pela minha solidão materna, relembrava seu poema, era o próprio cão com seu hálito quente a me rondar. Uma solidão difícil de descrever. Uma solidão acompanhada por um bebê, mas uma solidão. Uma solidão que nasce quando se é mãe e muda a configuração de como se é percebida pela própria mãe, por algumas amigas que são mães, uma solidão que por mais que se explique … como traduzir um corpo puérpero para o companheiro? Exaustão e medo. No meu caso, agravada por estar em outro país. No primeiro mês de vida do Andri, li A pediatra, de Andrea del Fuego, Morra, amor, de Ariana Harwicz, e reli A filha perdida, de Elena Ferrante. A dupla mãe-bebê parecia funcionar, mas como abrir espaço para outras relações e vínculos nesse começo tão denso? Muitas vezes, encontrei o espaço para pensar na própria literatura. E por sorte não parei de fazer análise. Aliás, pari numa quinta-feira, mandei mensagem para meu analista dizendo que estava em trabalho de parto, depois avisei que Andri e eu havíamos nascido, e uma semana depois retomei nossas sessões virtuais. A mesma cultura que continua pressionando as mulheres para serem mães não dá estrutura para essas mulheres quando isso acontece.
Francesca Cricelli é poeta, pesquisadora e tradutora literária. É doutora em Letras pela Universidade de São Paulo.
Imagem: colagem feita por Sumaya Fagury a partir da fotografia das autoras Francesca Cricelli e Lubi Prates.
0 Comments