Uma mulher está sozinha, soterrada debaixo de uma pilha de coisas que parecem ser pacotes de papel higiênico. Em um esforço extenuante, ela emerge dos entulhos. Enquanto tenta entender o que está acontecendo consigo, ela é surpreendida por uma imagem insólita. Acima de sua cabeça, um braço lhe oferece um copo de água e ela o aceita. Bebe com voracidade. O braço continua ali e espera que ela mate a sede que parece não ter fim. Quando ela termina, o braço lhe estende a mão com um convite. Ela hesita por um breve instante, mas logo agarra a oportunidade. De mãos dadas, seu corpo é alavancado para o andar de cima.
A cena é comovedora e funciona por si só. Mas se agiganta dentro do filme em que se encontra: O buraco, de Tsai Ming-Liang, foi lançado em 1998, e hoje soa como uma mensagem de um futuro muito próximo.
A história se passa na última semana do ano de 1999. Taipei enfrenta uma estranha epidemia. A rádio informa que o serviço de coleta de lixo foi cancelado e que na virada do ano será cortado o fornecimento de água. O governo solicita que os cidadãos abandonem as áreas afetadas.
Mesmo assim, algumas poucas pessoas se recusam a sair de suas casas. Dentre elas, um homem e uma mulher que não se conhecem, mas são vizinhos. Ele mora no apartamento de cima. Ela, no de baixo. Ele tem um problema em um encanamento que afeta a vida dela. Um encanador é chamado e começa uma obra, mas não a termina, deixando o buraco que dá o nome ao filme e que representa visualmente tudo aquilo que falta nestes tempos tão estranhos.
Pelo buraco, ela vê uma barata e corre para dedetizá-la. O inseticida atinge ele e ele decide tapar a abertura inconveniente. Mas, uma vez permitida a brecha entre estes dois mundos, eles estão conectados. Pelos sons, os vizinhos percebem que não estão sós. Não demora para que o homem se arrependa de ter tapado o vão. Ele abre o buraco e começa a explorá-lo.
E ela?
É difícil saber com precisão já que este não é um filme que conta a história de forma clássica. Enquanto os dois vizinhos lidam com problemas do cotidiano, há uma outra narrativa que se desenvolve em um outro plano mais lúdico representado por pequenos números musicais que avançam sobre a história e indicam que um romance está sendo desenhado entre estes dois personagens.
Sonho? Delírio? Desejo? Tsai Ming-Liang tem se dedicado a revelar histórias de amor que fogem dos cânones consagrados pela indústria hollywoodiana. Frequentemente, seus personagens não sabem lidar com o que sentem, cometem erros, se confundem, tem medo. Não são heróis. São demasiadamente humanos. Não por acaso muitas vezes o diretor aposta em histórias de amores platônicos, onde os personagens não chegam a viver a relação amorosa que desejam, como em Que horas são aí?, O sabor da melancia, Vive L ‘amour e Cães errantes.
O que torna O buraco tão interessante é que há um jogo de expectativa a partir da inserção desses sonhos musicais românticos que dão novo significado à história que está sendo contada. E o que poderia ser apenas um amor platônico ganha vida e se concretiza. Pouco importa se é real ou sonho.
Mesmo que seja apenas uma ilusão, a mensagem é poderosa. A mulher fica doente e o homem lhe estira a mão. Ela aceita o convite e vai com ele para o andar de cima. Juntos são mais fortes do que qualquer epidemia. É um gesto de solidariedade. De amor.
Há mais de vinte anos, Tsai Ming-Liang parecia invocar a potência do “ninguém solta a mão de ninguém”, lema que reverberou nas redes sociais depois da eleição de Jair Bolsonaro no Brasil. Hoje, este pequeno gesto parece gigante porque, como bem dito por Mariangela Gualtieri, “agora sabemos como é triste ficar a um metro de distância”. Se o isolamento é imperativo, que o cinema nos dê as mãos.
Camila Agustini é roteirista e consultora para desenvolvimento de projetos audiovisuais, formada pela Escuela Internacional de Cine y TV, em Cuba.
Imagem: Cena de ‘O buraco’, de Tsai Ming-Liang.
0 Comments