Copo vazio, livro publicado pela Todavia, marca a estreia de Natalia Timerman na categoria romance. Ela já havia publicado Desterros: histórias de um hospital-prisão (Elefante, 2017) e a coletânea de contos Rachaduras (Quelônio, 2019). Este último, inclusive, ficou entre os dez finalistas do Prêmio Jabuti.
Em Copo vazio, a história é narrada por Mirela, uma arquiteta de 32 anos, independente e bem-sucedida em sua carreira profissional. Incentivada pela irmã, ela instala um aplicativo de encontros em seu celular. Ao mesmo tempo envergonhada e ansiosa, percorre os rostos masculinos na tela. Nenhum lhe agrada, até se deparar com a foto de Pedro. Fica fascinada pela beleza dele: os olhos azuis, os cabelos loiro-escuros, o nariz ossudo e a barba rala deram-lhe “[…] a garantia de que era um homem-feito”.
Após um match e trocas de mensagens, marcam um encontro numa quarta-feira à noite, num bar da esquina da Augusta. O bar estava vazio, passava uma partida de futebol na televisão. Pedro chega depois do horário marcado. Eles se olham, pedem uma cerveja, conversam. Ele era mineiro, viera a São Paulo para o doutorado em Ciência Política. Após esse primeiro encontro, passam a se ver e a se falar diariamente. Vivem um relacionamento intenso por três meses. De repente, Pedro desaparece, sem dar explicações. Mirela sofre um “ghosting”— o que em português poderia ser entendido como “tornar-se um fantasma”—, fenômeno que tem sido recorrente nas relações modernas, uma forma de terminar uma relação sem colocar palavras, sem uma despedida: a pessoa simplesmente desaparece.
O livro inicia com o “Depois”, narrando o encontro casual entre os dois, no supermercado, dez anos após a separação. A trama é contada através de fragmentos temporais, intercalando o “Antes” e o “Hoje”, com várias sequências de idas e vindas. A história é narrada em terceira pessoa, mas, nos momentos de desespero ou raiva, como num grito, Mirela explode em primeira pessoa: “Pedro, seu covarde, seu merda, seu babaca”.
Natalia Timerman constrói a alternância entre o “Antes” e o “Hoje” nos colocando diante da confusão de Mirela. O tempo da narração é o “Hoje”. É o tempo da dor, do desespero, de tentar entender: “Uma pedra incrustada no peito: Mirela não entende. […] Pedro sumiu. Uma dor física pontiaguda […] Não sabe para onde ir […] Percorre a memória atrás de palavras afiadas, atrás de gestos que sinalizassem aquele fim, mas não encontra”. Uma dor física, em que se faz a pergunta: Para onde foi aquele Pedro? Chegando até mesmo a duvidar se havia alguém diante dela ou se teria imaginado. Ontem (ou “Antes”) ele estava aqui. “Hoje”, nada.
Ela escreve mensagens no WhatsApp, no Facebook e no Instagram. Ele visualiza e continua em silêncio. Pedro está ali, do outro lado da tela, on-line, tão longe, tão perto. O mesmo mundo virtual que, no início, os aproximou agora é distância, é afastamento. Mirela desfaz a amizade nas redes sociais. Arrepende-se, não suporta deixar de seguir seus passos. Um simples like ou um desbloqueio é suficiente para alimentar a certeza de que ele está arrependido: quer retomar o contato. Como é possível “matar” Pedro dentro de si, se ele ainda continua vivo no mundo?
A desorientação da narradora aparece na fragmentação temporal, quando passado, presente e futuro se misturam. A dor da perda modifica a noção da passagem do tempo linear. Entre o passado e o futuro, o “Hoje” não passa. Da mesma forma, a contagem do tempo é realizada a partir da perda, da ausência. Como Mirela mesmo diz: “Parece que o tempo é outro, Pedro se transformou nos ponteiros do meu relógio, ou no silêncio sobre o qual todas as outras coisas se movem e interrompem”.
A autora, também psiquiatra e psicoterapeuta, descreve os sonhos da protagonista como tentativas de elaborar o trauma vivido. Neles, Mirela vê Pedro, tenta falar com ele, mas ele desaparece, some. Ela acorda assustada, geralmente chorando. Sonhos de angústia. A realidade cruel que insiste em se repetir noite após noite.
Natalia Timerman, na voz de Mirela, oferece-nos uma importante reflexão acerca das expectativas que são depositadas em nós, mulheres. Crescemos ouvindo que “[…] uma mulher precisa ter alguém, precisa ser em dupla, ter um par, senão é como se fosse menos, ou até se não fosse nada, a gente não tem a chance de se perguntar, será que eu quero estar com alguém?”
Assim como a personagem Olga em Dias de abandono, romance de Elena Ferrante, Mirela é uma mulher contemporânea, que sabe que não deve se entregar ao desamparo ao ser abandonada. Ela vive a dor do abandono com muita vergonha, como se sofrer por amor fosse algo ultrapassado. Quantas Mirelas estão por aí? Quantas se desmancham quando o castelo de areia dos contos de fada (“viveram felizes para sempre”) é desmoronado pela maré da vida?
É no âmago desse sofrimento que Mirela vai narrando, indo e voltando, no antes, no hoje, no agora e até mesmo no futuro. Vamos encontrá-la perdida, longe de si, procurando os vestígios de Pedro ou de quem ela era com ele. Ao tentar sair do buraco, faz um mergulho profundo dentro de si mesma. Como leitora, me senti convidada a olhar para o abismo, para o vazio e a refletir sobre os desencontros do amor. Gosto de histórias vertiginosas como a de Natalia Timerman, com passagens poéticas que me levam a habitar meu mundo interno e tantos outros mundos paralisados pela dor de deixar de existir. Mas, Mirela consegue escrever uma despedida, endereçando palavras a Pedro, e também a si mesma. Palavras que agora não espera mais que venham dele. A carta é muito bonita, deixando-nos um relato de sua travessia do luto:
“Mas enfim.
Já passou.
Já passou, acho.
Já passou o que é possível passar, porque tem coisas, entendi ao longo do tempo, que não passam nunca.
Os restos.
O amor envernizado pelo nunca.
Espero que você esteja bem. E que de vez em quando se lembre de mim quando escutar uma música, ou num instante de silêncio” .
Giovana Serafini tem mestrado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é psicóloga e psicanalista membro da Associação de Psicanálise de Porto Alegre (APPOA).
Imagem: Empty glass, pintura de Bill Sharp.
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