Abril de 2014, Guarujá, interior de São Paulo. Dois retratos-falados de uma suposta sequestradora de crianças, que usava os pequenos para magia negra, se espalharam pela página Guarujá Alerta, criada no Facebook em em 2012 para divulgar casos de assaltos, desaparecimentos e dicas de segurança na região. As fotos foram amplamente compartilhadas, muitas vezes com os comentários de “ela vai ter o que merece”.
Com o passar dos dias, descrições foram aparecendo: o carro que a mulher supostamente tinha, a cidade onde estaria, crianças sendo encontradas sem o coração. Até uma diretora de escola informou para os alunos que a suposta sequestradora estava no portão da unidade.
Ao fim de abril, a mesma página esclareceu que não havia registros de sequestro na região, tampouco de crianças feridas, e que tudo aquilo era um boato. Um dos links divulgados para o esclarecimento mostrava que o retrato-falado divulgado era o mesmo encontrado em um site de humor. Outro conduzia a um mesmíssimo rumor na cidade de Três Rios, no Rio de Janeiro. Mas nem lá nem no Guarujá houvera sequestro de crianças e magia negra. A sequestradora que tanto movimentava o medo e o ódio dos moradores não passava de uma mentira.
Três de maio, Morrinhos, um bairro do Guarujá. Sob o grito de “É ela! É ela!”, a moradora Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, é identificada como “a sequestradora de crianças”. Ela começa a ser espancada. A Bíblia que segurava cai no chão. Vem um, vem dois, vem dezenas de pessoas. Crianças e adolescentes participam também. Vinte minutos de agressões físicas e vociferações. Pelo olhar dos envolvidos, todos em prol de um bem comum: zelar pelos jovens da cidade.
Julgaram que Fabiane não merecia escuta, nem mesmo de um fundamental “não fui eu”. Não perguntaram seu nome, não zelaram por suas crianças, não pensaram em seu marido. A dona de casa chegou a ser socorrida, mas morreu no hospital dois dias depois do linchamento.
Antes da tragédia, a página Guarujá Alerta publicara posts em que desmentia a existência de uma sequestradora de crianças. Em um deles, de 28 de abril, vinha a informação “Nossa equipe informa que não há registro policial de sequestro de nenhuma criança em nossa cidade. Muito menos registro policial de criança encontrada morta no bairro Maré Mansa. Tudo não passa de boatos”. À época, trabalhando em um plantão jornalístico, percebi que os posts alarmistas eram expressivamente mais compartilhados do que a informação desmentida. Mas o que é o desmentido depois que o estrago é feito? Quem imaginou que aquela ilustração fosse um pretexto para tamanha violência?
É impressionante como a barbárie tem berço fértil na luta do “bem contra o mal”. Em Psicologia das massas e análise do eu (1921), em que Freud reflete sobre as relações humanas no social, há uma afirmação sobre o caráter influenciável e acrítico da massa: “Os sentimentos da massa são sempre muito simples e muito exaltados. Ela não conhece dúvida nem incerteza”.
Um pouco adiante, Freud observa sobre como se dá o processo de influência: “Quem quiser influir sobre ela, não necessita medir logicamente os argumentos; deve pintar com as imagens mais fortes, exagerar e sempre repetir a mesma coisa.”
O avanço brutal e demasiadamente humano sobre Fabiane possivelmente seria contido se ali entrasse a ponderação individual de cada um dos envolvidos. Se ao menos uma dúvida de “será que estamos exagerando” pudesse furar aquele transe do justiçamento. Mas a coletividade é premissa do linchamento, dada a impulsividade típica de uma massa. Afinal, como nos mostra Freud, ela é guiada pelo inconsciente, cujos impulsos são imperiosos e resistem às tentativas da moral e da autopreservação. Algo naquela situação trágica havia sido libertado ferozmente de seus participantes, retroativo a um aprisionamento sentido como insuportável, uma vez que, “na massa, o indivíduo está sujeito a condições que lhe permitem se livrar das repressões dos seus impulsos instintivos inconscientes”.
Em 2018, assistimos aos efeitos das fake news sobre os brasileiros. Muitas delas beneficiaram a eleição do presidente Jair Bolsonaro, a partir da disseminação de mentiras acerca dos demais adversários. Nos Estados Unidos, a eleição de Donald Trump em 2016 também foi favorecida por uma série de informações mentirosas disseminadas durante o pleito, a exemplo da falsa rede de pedofilia comandada por Hillary Clinton em uma pizzaria. A gravidade da notícia ficou ainda mais explícita depois que um homem de 28 anos disparou com um fuzil na pizzaria Comet, em Washington, a pretexto de “investigar o crime”. O restaurante estava cheio de famílias. Felizmente, dessa vez ninguém foi ferido.
Em agosto de 2018, mais uma demonstração das consequências nefastas das fake news: dois homens foram espancados e queimados vivos por uma multidão em Acatlán, no México. Uma notícia falsa espalhada pelo Whatsapp “alertava” sobre a atuação de sequestradores de crianças no país. “Parece que esses criminosos estão envolvidos com o tráfico de órgãos. Nos últimos dias, crianças de quatro, oito e 14 anos desapareceram e algumas foram encontradas mortas com sinais de que seus órgãos foram removidos”, dizia a mensagem. Inocentes, Ricardo Flores, de 21 anos, e seu tio Alberto Flores, um agricultor de 43 anos, foram assassinados por causa de um boato. A barbárie foi transmitida ao vivo pelos celulares de algumas das testemunhas, um cruel encontro da realidade com a assustadora ficção da série britânica Black Mirror, que retrata a desumanização amplificada pela tecnologia.
Mentiras e boatos não são derivados da tecnologia, mas encontram nela uma potente maneira de se alastrar. O “desafio da baleia azul” — uma série de 50 “tarefas” ordenadas nas redes sociais por um “curador” em que a última delas seria o suicídio —, deixou brasileiros desesperados em 2017 e se tornou uma ameaça concreta a partir de uma notícia falsa divulgada na Rússia. Se antes o desafio não existia, acabou se materializando a partir dos medos que encapsula. E em se tratando de medo, seu trânsito do virtual para o real é bastante fluido; que o diga Orson Welles.
Em 1938, a população da costa leste dos EUA entrou em pânico após ouvir uma suposta invasão de marcianos narrada por Welles em um programa de rádio. Era véspera do Dia das Bruxas. Milhares tentaram fugir, com aglomerações nas ruas e congestionamentos, além de sobrecarregarem as linhas telefônicas. A narração da invasão, feita em forma de programa jornalístico, como Welles habitualmente apresentava, nada mais era do que uma dramatização do livro de ficção científica A Guerra dos Mundos, do escritor inglês Herbert George Wells. A invenção que capturou os ouvintes e fomentou seus temores ilustra bem a imprevisibilidade humana.
Ficção traduzida em realidade, ódio sem mediação simbólica, medo exercido em ato. A propagação de uma notícia falsa ou de um boato parece compactuar com nossos desejos inconscientes, e, portanto, à revelia da moral e, especialmente, da civilização. Onde deve atuar o freio da consciência, na aniquilação da notícia falsa ou na sua ponderação? O projeto fragmentário de coletividade desenhado pelas fake news parece estar apenas começando. É importante enfatizar que há todo um sistema tecnológico a cargo de alimentar as engrenagens da suscetibilidade a elas. Os filtros adotados pelas redes sociais têm uma significativa participação na customização dos pavores. No impactante livro Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais (Intrínseca, 2018), o cientista Jaron Lanier, figura conhecida do Vale do Silício e estudioso do mundo digital, faz um alerta quanto ao recorte deliberado feito na informação que recebemos via redes sociais:
“Um exercício de raciocínio pode nos ajudar a expor como nossa situação se tornou estranha. Já imaginou se a Wikipédia mostrasse diferentes versões de verbetes para cada usuário, com base em um perfil de dados secreto? Visitantes pró-Trump veriam um artigo completamente diferente daquele mostrado a pessoas anti-Trump, mas não haveria qualquer esclarecimento sobre o que seria diferente ou a respeito do motivo. Pode parecer distópico ou bizarro, mas isso é semelhante ao que você vê em seu feed Bummer. O conteúdo é escolhido e os anúncios são customizados, e você não sabe o quanto foi alterado por sua causa nem por quê.”
Cada vez que uma informação apurada é negligenciada por uma fake news, penso nas acusações iniciais de “foi ela” ou “foi ele” que sucedem um boato. Na calúnia que, para alguns, basta ser relativizada depois. No fato de os efeitos, sempre imprevisíveis, serem ignorados. O boato que gerou o linchamento — prática abominável por definição — de Fabiane é diferente de uma fake news, criada especialmente para o propósito de enganar. Mas o lamentável destino de Fabiane nos faz pensar na adesão das pessoas a algo que se revela mentiroso. Uma mentira isolada parece delírio. Uma mentira bancada por um grupo se torna uma teoria conspiratória. Mas a mentira abraçada por vários se torna “verdade”, pânico, atalho para a selvageria em palavra e em ato. Quando uma mentira é compartilhada por milhões, o anonimato simula certa proteção, um aval para não se responsabilizar.
Pretender que as fakes news tenham um fim chega a ser utópico, considerando as reflexões acima. Os cuidados com sua assimilação podem ser um ponto fundamental. No que tange à consciência, uma imprensa com qualidade é prioritária, assim como é crucial que os leitores e internautas tenham ferramentas críticas para a leitura e o compartilhamento de conteúdos. Já as questões inconscientes nos convocam à implicação da subjetividade e ao reconhecimento daquilo que parece estrangeiro a nós mesmos. Daí a importância de instâncias mediadoras que busquem “soluções de compromisso” rotineiras em nossas relações. Que o ódio possa encontrar o sigilo e o acolhimento sem julgamento das sessões de análise, em vez de alçar expressões raivosas na internet e reverberar intolerância na sociedade.
Amanda Mont’Alvão Veloso é psicanalista, jornalista e mestranda em Linguística Aplicada e Estudos de Linguagem pela PUC-SP.
Ilustração de Sumaya Fagury
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