Eu tenho um carinho especial por manhãs como essa, em que posso ficar estirada na grama, encharcada de primavera, e cochilar sob a copa do salgueiro. Você consegue cheirar a grama? Ela forma uma cama quente e sangrenta debaixo de mim.
Espere. Isso soou estranho.
Que tal uma piada? Eu acabei de pensar em uma. Essa é boa.
Um pit bull entra em um bar. O que ele pede? Um Bloody Mary!
Vamos, é uma piada boa. Veja bem: eu sou a Mary, uma yorkshire. Venho de uma longa linhagem de cães ingleses distintos. Há poucos instantes, a minha cabeça foi arrancada por um pitbull chamado Bullie.
Sim, esse é o nome dele. Bullie, com dois eles. Embora eu duvide que ele esteja familiarizado com a grafia do próprio nome. Ele respondeu tantas vezes ao meu nome no passado, o idiota. “Venha, Mary,” o nosso dono chamava, a bola de tênis na mão, e Bullie corria até ele, sua cauda girando no ar como uma hélice.
Olhe para ele agora, jogando a minha cauda para cima como um brinquedo. Faz sentido. Eu pareço um brinquedo. Eu parecia um brinquedo? Desculpe, estou tendo uma pequena dificuldade com a linguagem.
Sobre a morte: é cedo para tirar conclusões precipitadas, mas por enquanto não me parece tão ruim. O céu azulado, por exemplo: dez segundos atrás, eu mal lembrava que estava lá. Mas com o que sobrou do meu rosto apontando para cima, eu devo admitir que é extraordinário. Você sabia que o céu começa na ponta do focinho? O céu tem cheiro de sol, é como o hálito delicado de uma flor.
Ei, Bullie. Responda rápido: eu sou mais gostosa do que filé mignon?
Ha ha. Brincadeirinha. O Bullie não saberia a diferença.
Uma mosca acaba de pousar em minha testa. Eu teria odiado isso. As nuvens passam apressadas, sussurrando. Como é?—eu quero perguntar a elas. Falem mais alto. Isso aqui não é um velório.
Ops.
Okay, eu tenho uma reclamação: o som da campainha desacompanhado do meu latido.
E lá vêm as formigas, uma atrás da outra. Eu posso ouvi-las rindo baixinho sob a terra, a antecipação borbulhando em suas antenas ao se aproximar desse banquete.
Agora, eu te digo: as coisas nem sempre foram difíceis. É a primeira vez que eu morro—isso tem que contar para alguma coisa. Eu me deliciava com a grama. Eu papagaiava com as aves. Eu passava inúmeras horas de barriga para cima, o meu pêlo quente reluzindo feito ouro no gramado. Eu era esperta: eu não chegava perto da tigela do Bullie, e me afastava de minha tigela no meio da refeição para o Bullie aspirar a minha comida. Eu ignorava todos os brinquedos, até mesmo a bola de borracha com o sino dentro.
Mas hoje de manhã, o Bullie me viu contemplando a vida na grama, tranquila, e decidiu que tinha cachorros demais no quintal, eu suponho. Uma decisão simples, sabe? Para alguns cachorros, é muito simples.
Ele me encurralou no portão. Como eu sou ágil, eu corri e me escondi atrás do salgueiro. Mas o Bullie me encontrou. Ele rosnou, mostrou os dentes e me atacou.
Então eu o mordi. Bem forte. Minhas presas rasgaram o pêssego macio do nariz dele. E Bullie, você já sabe disso, arrancou a minha cabeça.
Foi tudo muito rápido: na fração de segundo entre morder o seu nariz e acabar em sua boca, eu vi algo no olho do Bullie. Um brilho repentino atrás da pupila, ardente, o raio antes do tornado. Eu reconheci na hora aquele sentimento: medo. Como deve tê-lo assustado, perceber que eu era capaz de causar dor. Fez a minha vida inteira valer a pena, ver Bullie com medo daquele jeito.
Muito bem, aqui está a minha última piada. Preparados?
Como é a vida do cachorro que mexe com Bloody Mary? É osso!
Flávia Stefani é escritora e tradutora, com mestrado em escrita literária pela Universidade de Nevada, nos Estados Unidos.
Imagem: fotografia de Magda Ehlers
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