A expressão Geração Beat surgiu de uma conversa entre os escritores Jack Kerouac e John Clellon Holmes em meados de 1948, depois passou a aparecer com frequência para designar o grupo de autores que transformavam suas ações e aventuras contra o status quo e o chamado american way of life em literatura. Como define Cláudio Willer sobre a Beat: “Representou a busca de alternativas que ultrapassassem a polaridade típica da Guerra Fria, entre stalinismo e macarthismo, ortodoxia soviética e reacionarismo burguês”.
O projeto do que viria a ser a Beat já estava em andamento há pelo menos uma década antes do rótulo. Na época da Segunda Guerra Mundial, os encontros em pubs e cafés, a escrita espontânea, o flerte com o ritmo do jazz e o estilo de vida alternativo já eram bastante conhecidos por Nova Iorque. Temas como a estrada, o sexo e as experiências envolvendo drogas e música já ressoavam por publicações em prosa e poesia. Como produtos de uma geração que convivia com a guerra, os beats surgiam como um alívio — e confrontação — aos valores conservadores que ressurgiam no pós-guerra.
Três momentos foram decisivos para que a Beat passasse a fazer parte do cenário literário: a leitura de O Uivo, de Allen Ginsberg, em 1955, e as publicações de On The Road (1957), de Jack Kerouac, e Almoço Nu (1959), de William S. Burroughs. Os três autores se tornaram uma espécie de tríade sagrada do movimento e passaram a ser referência quando se fazia menção dele.
Apesar da Beat ser caracterizada como basicamente masculina e homossocial, existiram mulheres que podem ser consideradas como parte do movimento e suas construções de identidade e subjetividade foram tão fortes e importantes quanto as dos homens, inclusive optando por caminhos bastante diferentes das figuras-chave em questão. Nomes como Diane Di Prima, Joyce Johnson, Joanne Kyger e Elise Cowen são superficialmente citados em antologias e críticas ao movimento, mas comumente recebem atenção por seus papéis de coadjuvantes como amantes e datilógrafas.
Uma das forças da Beat é justamente a forma heterodoxa que tratava de si mesma. Pelo menos três gerações posteriores a da publicação de On The Road se relacionaram com a poética do movimento, mostrando que mesmo que existissem polêmicas no entorno da produção literária (por conta do New Criticism, era comumente tratada como esvaziada de estética e discurso), a força de alcance junto aos leitores acontece ainda hoje de forma dinâmica, direta e passional. Justamente por essa heterodoxia proposta é que as mulheres também fizeram parte da revolução que acontecia no Village, em Nova Iorque, e em São Francisco, na Califórnia, escrevendo e tentando encontrar suas identidades, em uma sociedade pouco receptiva às mulheres que se negassem a ocupar os papéis designados pelas tradições.
Se a face mais famosa da Beat foi a dos homens e da sua fraternidade, a das mulheres foi mais contida, mas imensamente mais crítica e dialógica com o momento e com passado, principalmente com outras consideradas rebeldes e pioneiras.
Nem musas, nem namoradas: escritoras
Durante um tributo ao poeta Allen Ginsberg, no Instituto Naropa em 1994, uma ouvinte da plateia questionou a falta de mulheres durante o evento e, principalmente, a ausência delas quando se fala na produção da Geração Beat. A resposta do poeta Gregory Corso ficou famosa e é usada constantemente quando há tentativas de amenizar o vazio deixado no que concerne à autoria de mulheres durante o período mais prolífico do movimento. Existiram mulheres na Beat? Elas pegaram a estrada e romperam com o status quo? Por onde andaram e quais foram as suas aventuras? Sobre o que escreveram, quais eram seus anseios e o que movia a sua arte? E principalmente, por que desapareceram e são pouco lembradas?
“Existiram mulheres, estiveram lá, eu as conheci, suas famílias as internaram, elas receberam choques elétricos. Nos anos de 1950, se você era homem, podia ser um rebelde, mas se fosse mulher, sua família mandava trancá-la. Houve casos, eu as conheci, algum dia alguém escreverá a respeito.” Gregory Corso
Através das obras dessas autoras é possível definir não apenas uma outra face da Beat como também perceber as vozes únicas dessas mulheres, que trabalhavam não apenas com a ideia de experiência aliada à escrita espontânea. Tanto nas memórias, quanto nos romances e poesias, há um cuidado com a originalidade estética e, exatamente como Joyce Johnson definiria mais tarde, a possibilidade, finalmente, de tomar escrita como a forma profissional de levar suas vidas, colocando mulheres como protagonistas, assim como os homens já faziam com liberdade. Percebe-se que ela queria viver intensamente como os supracitados protagonistas da Beat, mas ia além, almejando também desmistificar a figura da mulher retratada pela mídia — e a própria literatura — da época, criando uma nova voz do movimento:
“Um dia, os editores que não me teriam como secretária, me teriam como escritora. Como escritora, viveria ao limite o meu eu inaceitável, justamente como Jack [Kerouac] e Allen [Ginsberg] tinham feito. Teria como objetivo escrever sobre jovens mulheres, muito diferentes daquelas retratadas semanalmente nas páginas do The New Yorker. Escreveria sobre quartos decorados e sexo. Acreditava que sexo deveria ser abordado criticamente. Não sucumbiria ao estratagema refinado [comum às mulheres] de glamurizar meu caminho em direção a discretos desaparecimentos.”
As mulheres da Geração Beat — como viriam a ficar conhecidas — ganharam certa notoriedade com publicações como Women of Beat Generation (1996), Girls Who Wore Black (2002) e Breaking the Rule of Cool (2004), nos Estados Unidos. Pesquisadoras como Ann Chartes, Brenda Knight, Ronna C. Johnson e Nancy M. Grace foram pioneiras em apresentar de forma minuciosa os trabalhos das mulheres partindo de diferentes perspectivas e pensando o trabalho de cada uma das escritoras de forma autônoma, porém inserido em um cenário coletivo.
No Brasil, apenas Diane Di Prima ganhou tradução de Memórias de uma Beatnik (2013), quase quarenta e cinco anos depois de sua publicação original — justamente o único livro que foi escrito sob encomenda. É sintomático que apenas a obra mais comercial da autora, considerada a verdadeira Beat honorária, tenha saído no Brasil. Faz-se necessário pensar buscando realocar essas mulheres como integrantes de uma época e contexto específicos, mas principalmente como autoras, detentoras de uma voz própria.
Entre os papéis de musas, esposas ou meras amantes casuais, as escritoras veiculadas ao círculo Beat construíram seus discursos através de suas próprias ausências. Algumas como Di Prima ganharam status de membro honorário do grupo por insistir em não ser apenas uma personagem secundária e várias vezes ser tratada com elogios de que escreveria “como um homem”. Outras como Hettie Jones — importante editora de revistas fundamentais para a Beat como Fuck You e a Yuge — e a própria Joyce Johnson acabaram ganhando destaque com o tempo através de suas memórias reveladoras sobre a visão das mulheres do movimento, mas sempre lembradas mais pelos seus relacionamentos com homens do que por suas incríveis produções literárias.
No livro de memórias Minor Characters (1983), Johnson relata sua relação de idas e vindas com Jack Kerouac. Enquanto o nome masculino mais proeminente da Beat aguardava o lento processo de publicação de On The Road, Johnson também escrevia seu primeiro romance, Come and Join the Dance (1962). O livro teve seus direitos vendidos ainda na década de 1950 para a Random House, mas foi publicado apenas cinco anos depois.
Elise Cowen
Elise Nada Cowen (1933-1962) foi uma das escritoras que circulou no meio Beat durante as década de 1950 e 1960. Ficou mais conhecida por ter tido um breve relacionamento amoroso com Allen Ginsberg (e uma conseguinte amizade) e ter sido datilógrafa de seu livro de poemas Kaddish (1961). Como define Trigilio, o principal difusor do que restou sobre ela, Elise “aparece apenas como uma figura efêmera na maioria das histórias e biografias no período Beat da literatura americana, muitas vezes retratada meramente como a louca-namorada-datilógrafa que reluziu brevemente na vida de Ginsberg”. Coube a Elise ser relegada a um papel secundário, seguido de um aparente esquecimento após cometer suicídio aos vinte e oito anos, em 1962. Após sua morte, a família judia de classe média queimou boa parte de seus pertences. Mas é através da sua própria ausência — dispositivo para a ação da memória — que a vida e o pequeno excerto de sua obra permaneceram vivos e ganharam vários contornos com o decorrer do tempo.
Um único caderno com oitenta e três poemas, escrito durante o outono de 1959 e a primavera de 1960, foi suficiente para pesquisadores como Tony Trigilio se sentir impelido a resgatar o que houvesse na produção de Elise. Há um flerte sutil, porém de grande força, entre a escrita da poesia — ora em prosa, ora metricamente desenvolvida — e a verve da produção de Allen Ginsberg e Gary Snyder, por exemplo. Mas ela vai além, fazendo referências a Mary Shelley, T. S. Eliot, Dylan Thomas e Emily Dickinson, a quem chegou a dedicar alguns poemas do caderno.
Este é o poema que abre o caderno sobrevivente de Elise Cowen:
Sonho
Não consigo lembrar de tudo.
Ar limpo. Eu estou com Mamãe &
Papai. Estão me levando ao médico
porque estou doente, neurótica. Estão
enojados de mim, cansados, por todo
o sonho, especialmente Papai, como na
vida real (?). Depois de falar com o médico
cujo o rosto não lembro, ele, o
médico, senta em uma cama & retira
uma atadura de sua longa perna mostrando
uma ferida secando.
Na introdução de Poems and Fragments (2013), Trigilio compara a poeta com a grega Safo, de quem também restaram mais histórias sobre sua vida do que sua poesia. Como Safo, Elise também sofreu edições de seus poemas com mudanças significativas, com supressão ou adição de palavras. Em menos de um ano após a sua morte, Léo Skir — na época, acreditava-se que ele era o único detentor dos direitos sobre o caderno de Elise — começou a publicar uma série de poemas que funcionariam como uma espécie de homenagem à memória da jovem. Skir trocou palavras, mudou sentidos, suprimiu trechos e ainda contou histórias sensacionalistas sobre a vida da amiga morta.
A recuperação — isso inclui o tríplice trabalho de ser crítico literário, biógrafo e historiador — da obras dessas autoras, aqui especificamente de Elise Cowen, é uma uma forma de reconstruir o movimento literário recolocando essas mulheres na história que sempre lhes pertenceu.
Tanto em Gender of Modernity (1995) como em Literature After Feminism (2003), a proposta da teórica de literatura Rita Felski, é de rever a ideia de cânone e de literatura feita por mulheres através de um viés da crítica feminista, mas também rompendo com um senso comum do que seria esta última, não se limitando em apenas apresentar esses trabalhos, mas também criar um diálogo com a produção masculina e a crítica da época.
A ideia é ir além de abordar as memórias, romances e poesias das mulheres da Beat sobre uma ótica única e costumeira de literatura feita por mulheres. Como bem define Felski: “Ser classificada como uma escritora mulher é, muitas vezes, ser categorizada como uma autoridade em assuntos de mulheres, como se fosse apenas capaz de escrever sobre certos tipos de experiências femininas”. É necessário romper o entendimento do que seria uma autoria de mulheres e, nesse caso, também de uma autoria tipicamente Beat. Felski faz outra proposta certeira sobre como perceber a experiência das mulheres:
Em vez de perseguir a quimera de uma feminilidade autônoma, desejo explorar alguns dos diferentes modos que as mulheres basearam, contestaram, ou reformularam as representações de gênero e modernidade, compreendendo sua própria posição dentro da sociedade e da história. A experiência das mulheres não pode ser vista como uma ontologia pré-determinada que precede sua expressão, mas é constituída através de um número de fios contraditórios, embora conectados, que não simplesmente refletidos, mas construídos através das “tecnologias de gênero” de culturas e períodos particulares.
Em Elise Cowen, por exemplo, é plenamente possível fazer uma análise estética aliada à busca de referências e captando o que seria o zeitgeist do período em que viveu. Isso pode ser feito colocando a figura da autora lado a lado dos homens do movimento e daqueles que ajudaram a construir o seu projeto poético, como T.S. Eliot e Dylan Thomas.
Felski também assume que o gênero da autoria “é um fator crucial que influencia na circulação e na recepção do significado textual”. É necessário não apenas partir de uma ideia de tornar disponíveis os trabalhos dessas mulheres que produziram — e viveram, com suas próprias singularidades — mas também rever o conceito que se tem da Beat como um movimento marginal, vazio de conteúdo e fora dos conceitos de cânone. Se dependesse apenas do que restou do caderno de Elise Cowen, seria basicamente inviável, tendo em vista a manipulação de Leo Skir.
Mas Elise também permaneceu viva pela sua ausência, através das memórias das que conviveram com ela como Joyce Johnson e Janine Pommy Vega. Há muitos pontos de convergência que unem Elise Cowen e os elementos dispostos nos oitenta e três poemas deixados. Há muitas referências e intertextos presentes em Poems and Fragments, deixando claro que ela não escrevia ao acaso, apoiando-se apenas na espontaneidade Beat. Há referências minuciosas à Emily Dickinson e à sua biografia, relatos de sonhos que apontam as internações psiquiátricas, além de situações corriqueiras como uma série de poemas sobre baratas, que fariam referência a uma infestação no apartamento em que vivia com Janine Pommy Vega. As analogias que podem ser feitas aprimoram a reconstrução da história dessas mulheres e, principalmente, de Cowen, que passa a ganhar contornos nítidos para além de sua obra.
Uma barata
Uma barata
Rastejou para dentro
Do meu sapato
Gostou daquela escuridão perfumada
Uma barata
Escalou
Meu sapato
Longe do frio & luz
Escorrego minha mão
A
Seguindo
Barata
O melhor que posso fazer por você
É compará-la ao bronze
E aos judeus
Não é bem-vinda
a usar o meu sapato
Como descanso de viagem
Óbvia
Da sombra da minha mão
Você sempre volta
pelo chão
Mais? – olhe –
Você perdeu uma antena
Eu trato você
seriamente afetiva como um bebê
Em muitos versos, há relações entre o corpo e o sagrado, evocando também questionamentos da filosofia oriental, um mote comum nas produções masculinas. Por ser judia, Cowen também evoca a Cabala e desconstrói vários símbolos da religião e da tradição que cresceu inserida. Willer diz que “a oscilação entre pólos, do mantra ao sexo explícito, do sagrado ao profano, do espiritual ao material, é típica da beat e especialmente característica de Ginsberg. Faz parte de sua religiosidade transgressiva” e isso é plenamente aplicável como analogia entre a poesia de Cowen e Ginsberg.
A importância de uma abordagem de gênero é fundamental para ressignificar os processos sociais como também define Rita Felski: “O gênero não afeta somente o conteúdo factual do conhecimento histórico — o que é incluído e o que fica de fora —, mas também os pressupostos filosóficos subjacentes a nossas interpretações da natureza e dos significados dos processos sociais”.
A pesquisa e tradução desses poemas permite que a recepção da obra da autora também faça questionamentos, mais do que tenha respostas. Com algumas traduções feitas e outras em andamento, já é possível encontrar os pontos que instigam uma investigação maior dos escritos, principalmente para compreender as abordagens de como apresentar essa obra a um público.
A voz de Elise Cowen reverbera pelas palavras minuciosamente escolhidas e pede que sua ausência seja dispositivo para que a presença seja sentida no verso. No fim, Gregory Corso tinha razão: um dia teríamos que falar sobre isso.
Às vezes em minha masmorra há algo que rasteja
Em algum lugar nesta masmorra
Algo rastejante
Uma lagarta eriçada
Uma vir-a-ser borboleta
Ficará desapontada
Se não houver dia para ver?
Se tornar-se uma mariposa?
Que triste visão
Pois não há nada além dessas paredes
Sou o único clarão
Este artigo foi escrito a partir de minhas pesquisas para o projeto de mestrado em Estudos Literários na Universidade Federal do Paraná. Ele faz parte de um estudo em desenvolvimento com outras pesquisadoras e tradutoras das escritoras do círculo Beat.
Texto de Emanuela Siqueira
Ilustração de Beatriz Leite
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