Martin Scorsese passou a infância em quarentena. Ou, ao menos, assim é assim que agora identifico qualquer experiência de isolamento social que inclui longos períodos dentro de casa, com a morte à espreita do lado de fora. A infância reclusa é essencial na construção da mitologia pessoal de Scorsese, afinal deu a ele os principais elementos de seus filmes: o mundo do crime e a religião.
Asmático, o jovem Martin passou a juventude observando o mundo através de duas janelas: a primeira, literal, ficava localizada no número 253 da Elizabeth Street, no Little Italy de Manhattan, por onde ele via as figuras criminosas, violentas e fascinantes que vieram a inspirar seu universo cinematográfico. A segunda, claro, era o cinema.
É impossível assistir O irlandês, seu lançamento mais recente, sem lembrar de sua história. Quando Frank Sheeran (Robert DeNiro) entra pela primeira vez no restaurante Villa di Roma, ponto de encontro entre os mafiosos da Filadélfia dos anos 50, tudo parece familiar — para nós e para o diretor. É ali que o protagonista irá se ligar às figuras de Russell Bufalino (Joe Pesci), Angelo Bruno (Harvey Keitel) e Jimmy Hoffa (Al Pacino) e se tornar uma pessoa que pinta casas, termo usado para se referir aos assassinos de aluguel — a tinta, no caso, é o sangue das vítimas espalhado no chão.
Aos 76 anos, Martin Scorsese voltou ao universo do crime com um roteiro de 3 horas e 29 minutos embaixo dos braço, cobrindo cerca de 50 anos da vida de seus personagens e da sua também. Talvez por isso exista esse estranho sentimento de familiaridade quando Frank Sheeran entra pela primeira vez naquele restaurante, como se já tivéssemos estado ali antes. Boa parte do mérito está no trabalho de Bob Shaw, designer de produção, mas O irlandês só funciona tão bem pela forma como Scorsese usa suas memórias de vida e de cinema não para contar mais uma história de máfia, mas o peso que tem uma história de máfia sobre aqueles que viveram nelas. Na primeira cena do restaurante, é possível ouvir as notas mais famosas do tema de O poderoso chefão, maior clássico do gênero.
Assisti a O poderoso chefão pela primeira vez ainda na infância, dublado na televisão, junto com meu avô. Foi por causa dele que comecei a gostar de filmes de máfia e juntos já vimos incontáveis títulos, sempre no meio da tarde, de surpresa na TV a cabo, suspendendo qualquer compromisso por duas horas e meia ou mais. Ainda hoje falamos de Al Pacino, Joe Pesci e Robert De Niro como se fossem conhecidos (“E esse aí, tá vivo ou já morreu?”, ele sempre pergunta quando vê o Joe Pesci), e durante os filmes meu avô costuma narrar algumas cenas enquanto elas acontecem como quem conta uma anedota pessoal: “Agora ele vai lá cobrar o favor do Bonasera”.
Meu avô também é um homem cheio de anedotas e andar de carro com ele é ouvir histórias sobre sobre sua infância e juventude, as mudanças na cidade e como era viver ali quando realmente tudo era mato. Penso que envelhecer é gradualmente se despedir do mundo que te formou e tenho pensado muito sobre como será o mundo que vou descrever para os meus filhos, se é que vou tê-los, e qual será o ponto de ruptura entre a paisagem que vou compartilhar com eles e uma que só eu conheci, que me formou, e não vai existir mais.
Quando penso na importância da memória para o filme, entendo o polêmico uso de computação gráfica para rejuvenescer e depois envelhecer o elenco de O irlandês. No começo, fiquei incomodada, mas depois entendi que aqueles 50 anos tinham necessariamente que se passar sobre eles, atravessar seus corpos. Chamar atores mais novos seria romper com a história que Scorsese está realmente contando, e que precisa do lastro das figuras de De Niro, Al Pacino Joe Pesci e companhia, suas pessoas jurídicas.
É por isso que a opinião que mais incomodou no período de repercussão do filme foi a que associava O irlandês a um apego nostálgico de Scorsese a esse velho mundo, como um típico velho branco que se recusa a largar o osso. Esses apegos, é claro, não estão nos laços de afeto que se constroem entre Sheeran e Bufalino ou Sheeran e Jimmy Hoffa. O silêncio de todas as personagens femininas é usado para provar essa suposta falha do filme, mas a meu ver ele serve justamente ao contrário. Suas vozes foram preteridas em troca dessas outras conexões, um tipo de subjetividade difícil de articular, mas que a eles era muito mais acessível, talvez a única possível a homens velhos e brancos daquele universo. É bonito e completamente questionável, e a intenção do filme não é escolher um desses lados. It is what it is.
Essas escolhas cobram seu preço: todas as pessoas retratadas no filme estão mortas, a maioria delas violentamente assassinada, como revelam as legendas que apresentam os personagens. Conhecemos essas figuras fumando charutos no Villa di Roma e sabemos que elas vão morrer. A janela que olhamos esse mundo não comporta mais um olhar romântico e deslumbrado de um garoto asmático do Little Italy, e para olhá-lo dessa forma, segundo Scorsese, é preciso ser jovem e estúpido, como algumas pessoas são e ele também já foi, mas não mais. As mortes em O irlandês são cruas, quase um anticlímax, principalmente o grande assassinato que marca a história, que também é de uma grande amizade.
Não há redenção dramática, monólogo moralizante e, menos ainda, triunfo na linha de chegada: as coisas são como são e todos morrem no final, inclusive o próprio Sheeran, sozinho numa casa de repouso, sem nunca ouvir o que a filha tem a dizer. Scorsese não chora o fim desse mundo, mas o abraça como seu último ato por reconhecer que é um privilégio ter a chance de escolher em quais termos partir. Se O irlandês é, de alguma forma, uma representação de uma masculinidade supostamente ameaçada por novos olhares e novas histórias, seu papel talvez seja o de tomar a frente na hora de apagar as luzes e seguir adiante.
Outra anedota recorrente sobre a juventude de Scorsese tem a ver com sua proximidade com a morte desde cedo, primeiro como coroinha em missas fúnebres e, depois, trabalhando como entregador de flores para funerárias. Em entrevista ao New York Times, ele relembra: “É assim que termina? Eles apertam a gente em um pedaço de terra no Queens (…)? Foi um choque e um despertar — um despertar não sei para o quê, mas uma mudança”.
Recentemente, meu pai me disse algo parecido. Nós somos vizinhos que agora se encontram na calçada para conversar mantendo uma distância segura um do outro. “Que loucura pensar que um organismo invisível mudou nossa vida. De repente tudo que a gente fez não vale de nada.” Não era uma fala saudosista, mas um despertar para o que eu também não sei o que é. É como olho para o mundo de antes, em que passava espremida pela rampa rolante do metrô vendo os anúncios gigantes de O irlandês, e penso em como descrevê-lo: bonito e completamente questionável. It is what it is.
Anna Vitória Rocha é jornalista e mestranda em Comunicação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo.
Imagem: cena do filme ‘O irlandês’ (2019), de Martin Scorsese.
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